sexta-feira, dezembro 20, 2013

A literatura que não deve nada a ninguém

Resenha de “Barba ensopada de sangue”, de Daniel Galera, Companhia das letras, 423 páginas.

Daniel Galera tornou-se um escritor respeitável nos últimos anos. Após três livros de muito boa repercussão (“Até o dia em que o cão morreu”, “Mãos de cavalo” e “Cordilheira”), o autor lançou, em 2012, “Barba ensopada de sangue”, romance extenso, algo incomum entre os autores contemporâneos. O livro é digno de ser lido não apenas pela história narrada, mas pelas questões que apresenta. Galera é um escritor auspicioso para a nossa literatura, porque se revela um autor maduro, que não se deixa levar pelas exigências de mercado.

O livro começa com uma espécie de prólogo onde um narrador em primeira pessoa fala sobre a morte de um tio que ele nunca conheceu pessoalmente e que viveu a maior parte da vida no litoral catarinense, em Garopaba. O narrador está na cidade com a família devido à morte desse tio. Portanto, desde o início, percebe-se que o personagem principal do romance já está morto. Esse fato incomoda um pouco, mas não é tão relevante para o desenrolar da história. Tudo não passa de um intrincado jogo em que Galera nos mostra as entranhas da tessitura de um romance. Após o breve prólogo, a narrativa se apresenta em terceira pessoa. É o momento, então, em que passamos a conhecer a vida desse personagem, que não é nenhum escritor, nem mesmo um intelectual, mas um homem que treina atletas para as mais diversas competições, sobretudo as de triatlo.

Na literatura brasileira de hoje, é grande o número de romances que trazem em primeiro plano a vida de um escritor, ou mesmo de alguém importante no mundo das ideias. Não é aqui o caso. Embora um personagem adjacente seja escritor, o fato é apenas mencionado, trata-se do pai do personagem que nos fala no prólogo. O romance desenvolve-se em torno do homem que vê a atividade física como meio de lhe garantir a sobrevivência. Ele não só prepara atletas, mas também dá aulas de natação, e nas temporadas de verão do litoral catarinense ainda trabalha como salva-vidas.

O primeiro capítulo apresenta o motivo de todo o restante do livro. Num sítio em Viamão, no Rio Grande do Sul, pai e filho conversam. O assunto é sobre o avô do rapaz, que desapareceu numa praia do litoral de Santa Catarina. O pai toca em fatos que jamais revelou a pessoa alguma da família. O filho, que o está visitando, escuta e passa ter interesse pela história. Mas no fim deste primeiro capítulo, quem se surpreende é o próprio filho (e também o leitor!). O pai lhe pede que dê um fim à cadela que já o acompanha durante mais de quinze anos, porque, no dia seguinte, vai-se matar.

Contando assim, este início de romance soa meio absurdo, mas a história transcorrerá dentro da mais perfeita coerência e se mostrará muito próxima a uma narrativa policial em grande estilo.

No momento seguinte o filho chega a Garopaba, a mesma cidade em que viveu e desapareceu o avô, e ali se instala. Ele tem a intenção de desvendar o mistério.

Dentre as questões que o livro apresenta, pode-se ressaltar que a literatura para ser boa não precisa querer provar nenhuma grande ideia, ou mesmo filosofia. Outro ponto, também digno de nota, é sobre as relações familiares, ponto turvo no relacionamento humano.

O romance de Daniel Galera leva o leitor a paisagens muito bonitas e a acidentes da natureza dignos de nota. É muito boa a criação de tipos e também de personagens complexas, como a ex-mulher do treinador de atletas, que pouco aparece na narrativa mas tem grande importância. Num mundo pleno de contradições, a amizade e o companheirismo são temas relevantes no enredo.

Enfim, trata-se de uma história bem tramada, com todos os componentes necessários para mostrar que a boa literatura não precisa de firulas, e que as pessoas comuns podem ser ótimas personagens de romance. O mais interessante em tudo isso é que o autor conduz a narrativa sempre de modo a surpreender o leitor, não fazendo concessão alguma.