sábado, junho 30, 2012

Espetacularização e tecnologização da cultura

Segunda feira (25/06) no Roda Viva, na TV Cultura, Muniz Sodré afirmou: “na sociedade atual há espetáculo demais”. O ex-diretor da Biblioteca Nacional e professor emérito da UFRJ queria dizer, naturalmente, que a educação se vê prejudicada pelos excessos da indústria cultural e de sua divulgação cada vez maior através dos instrumentos da cultura de massa. Os entrevistadores lhe foram impiedosos nas perguntas, queriam a todo custo que ele respondesse qual a fórmula para o país vir a ter educação de excelência. Mas, como todos os intelectuais, o professor também não tinha a resposta. Ele chegou a citar como exemplo os colégios de aplicação das universidades federais. Mas não foi sobre eles que os jornalistas esperavam ouvir, queriam saber como faria caso dirigisse uma escola pública municipal ou estadual nas atuais circunstâncias; qual seria sua estratégia para que os alunos avançassem no estudo e na leitura, alcançando um patamar pelo menos satisfatório.

Um problema contra o qual toda a intelectualidade se depara atualmente e não vê saída é a tal espetacularização da cultura. Somos bombardeados dia e noite por chamados à audiência, sejam eles oriundos das mídias impressas, audiovisuais convencionais (se é que ainda se pode usar essa palavra) ou mídias digitais. Os apelos são tão intensos e colocados através de estratégias de tamanha sedução que acabam por convencer que o espetáculo é imprescindível. Chega-se a pensar que ele é totalmente natural e que não se pode pensar em outra forma de sociedade.

Outro problema que expande a questão acima é o crescimento do aparato tecnológico, como smartphones, notebooks, tablets e tudo mais que tem surgido através do desenvolvimento da microtecnologia. Está claro que não devemos nos opor ao progresso, mas nos dias de hoje quase não há reflexão sobre se a atualização constante e o consumo de todo esse aparato é mesmo imprescindível.

Quando observamos a utilização que a maioria das pessoas faz da tecnologia, ficamos assustados. São poucas que a utilizam com o real sentido de galgar conhecimentos que realmente lhes serão úteis, como os advindo do mundo acadêmico, o universo onde há método e fundamento para pesquisa e estudo. Querendo ou não, a escola é uma ramificação da cultura erudita, pois para se lecionar é necessário ter cursado a universidade. Mas eis que a tecnologização acaba levando as pessoas a utilizarem esses aparelhos não com fins de pesquisa, mas como distração e mesmo como meio de autoafirmação. Veja-se o narcisismo presente nas redes sociais; quase todos se tornam (pseudo) atores e atrizes da espetacularização de suas próprias vidas,  buscando também a audiência.

Quem há de se enfronhar numa biblioteca, sobretudo nos anos de formação, para ler um livro por puro prazer ante a avalanche de apelos ao consumo de instrumentos que proporcionam imagens em movimento, som, comunicação em tempo real, jogos, efeitos especiais e interatividade? Quem ainda desejará tatear o mundo da alta cultura como um meio de obter conhecimentos para a sua profissão ou mesmo para a reflexão sobre a vida? Melhor talvez fazer parte do oba-oba que as mídias alardeiam tentando envolver a todos, fazendo acreditar que, assim, cada cidadão é participante ativo da nova sociedade.

Ao invés do incentivo à leitura e ao estudo, o que vemos, no entanto, quando analisamos a questão, é a formação de um forte mercado consumidor de tecnologia muitas vezes desnecessária, o que acaba afastando ainda mais o ser humano do que ele realmente precisa.

Quem há de se colocar contra o apelo da tecnologização excessiva da cultura e sua consequente espetacularização? Quem há de mostrar que os argumentos utilizados por essa indústria apontam mais a pseudoverdades? A problemática em que estamos inseridos ainda é a mesma da discutida por Theodor Adorno e pela Escola de Frankfurt em meados do século passado, quando utilizaram como objeto de análise o cinema americano do período.

O pensador contemporâneo tem o dever de denunciar o exagero de tal empreitada consumista e mostrar que está imbuído do espírito de pesquisa e de crítica. Caso não o faça, sonegará à intelectualidade o papel de colocar as coisas nos seus devidos lugares.

Em qualquer sala de aula dos colégios de hoje, mesmo no ensino público, a maioria dos alunos possui grande parte desse aparato tecnológico, além de muitos também terem acesso à internet. Até aí tudo bem. Muitos professores, porém, já não conseguem convencer que internet não significa apenas jogos e redes sociais, traduzindo: divertimento.

É preciso sempre desenvolver o pensamento crítico e mostrar que o apelo da indústria tecnológica e cultural não é levar as pessoas ao mundo da alta cultura, um patamar em que a reflexão possa ser mais intensa e daí surgirem soluções para os problemas do mundo atual, inclusive soluções conceituais e de valores. Mas a intenção da ideologia é aproveitar o silêncio dos inocentes e impingir a produção e o consumo avassaladores.

Por isso as palavras do professor Muniz Sodré, no programa Roda Viva.

sábado, junho 23, 2012

Bloomsday

Na semana passada, mais precisamente no dia 16 de junho, foi o Bloomsday. A data é comemorada em Dublin, na Irlanda, onde é feriado nacional, e em quase todo o mundo onde se lê Ulisses, de James Joyce. Convencionou-se escolher esse dia porque é justamente nele em que se desenrola a ação do famoso romance que veio mudar a história da literatura. Bloom é o sobrenome de Leopold, o protagonista da narrativa, daí ter sido escolhido seu nome como o dia de exaltação ao livro. Em consequência, também se dignifica o herói moderno, aquele que vive a pequenez do dia a dia e, por suportá-la e nela encontrar sentido, descobre seu aspecto grandioso e heroico.

No Rio, este ano, a data foi comemorada duas vezes. A primeira aconteceu na Escola Letra Freudiana, uma escola de psicanálise que não despreza a literatura como objeto de discussão da subjetividade. Ali esteve presente a tradutora de uma das versões do romance (no Brasil acaba sair a terceira tradução de Ulisses), professora Bernardina Pinheiro. Ela apresentou, no evento, um tema interessante para a contemporaneidade: Joyce e a política, onde ressaltou através de passagens de os Dublinenses e de Retrato de uma artista quando jovem, trechos em que o autor irlandês discute o assunto. É bom saber que o pai de Joyce pertencia ao partido nacionalista irlandês e queria os ingleses longe da Irlanda. Os segmentos escolhidos foram dramatizados por um casal de atores, que soube personificar um Joyce preocupado não só com a literatura, mas também com a política na Irlanda de seu tempo.

No domingo, dia 17, houve outra comemoração, desta vez na Livraria da Travessa, no Shopping Leblon. Ali esteve presente, para o lançamento da terceira e mais recente tradução de Ulisses, o professor e tradutor curitibano Caetano W. Galindo. No mezanino da livraria, houve uma exposição de Galindo sobre a obra de Joyce e sobre as dificuldades de traduzi-lo para o português.

O que chama a atenção nesse volumoso romance de mais de mil páginas é o enredo, que praticamente não existe. Joyce retrata as vinte quatro horas na vida de um homem, o já citado Leopold Bloom. Como um livro dessa extensão pode ter “apenas” isso como trama? É simples, estão incorporados à obra quase todos os aspectos da natureza humana, como memória, ruminações interiores e sentimentos mais diversos de muitos personagens que aparecem no decorrer desse dia. Há também referência a outros livros e a clássicos da literatura, como Willian Shakespeare.

A completude e a totalidade, tanto na vida como na literatura, sempre foram objetos de discussão entre diversos autores, e o romance como gênero literário tentou inúmeras vezes dar conta da questão. Ao narrar uma história e, sobretudo, ao colocar o ponto final, todo autor, ainda que disfarçadamente, faz de conta que conseguiu tal façanha. Mas sabemos que o romance é um gênero aberto, que mais revela o caráter partido do ser humano do que sua totalidade. Temos exemplos de autores que criaram suas obras tentando dar continuidade a personagens de outros autores. Pensemos em qualquer livro de ficção que tenhamos acabado de ler. Por melhor ou pior que o classifiquemos, a vida dos personagens, pelo menos na nossa imaginação, continua. Portanto, mesmo quando mais extenso possível, conclui-se que esse gênero não pode dar conta da totalidade nem da completude, pois sempre há algo mais a dizer. É ponto pacífico que o ser humano deseja a totalidade. Talvez a própria necessidade da existência de Deus seja uma forma de atestar essa afirmação. Mas fiquemos apenas no universo da literatura.

Aí é que entra o Ulisses, de James Joyce. Por mais que recupere o mito grego presente na Odisseia atribuída a Homero, apresenta “apenas” as 24 horas na vida de Bloom. Para isso, contudo, precisou de mais de mil páginas, uma narrativa onde aparecem a grandiosidade e, ao mesmo tempo, a pequenez do ser humano. O Ulisses grego, cantado na antiguidade, viaja todo o mundo possível de seu tempo, passa por todas as experiências, chega a ir ao Hades e lá descobre seu pai morto, fato ocorrido enquanto ele, Ulisses, esteve na guerra de Troia e ainda não conseguiu volta para casa. A Leopoldo Bloom não é possível tal envergadura. Mas ao circular durante o dia 16 de junho pela Dublin de 1904, faz o percurso do herói moderno. E ainda que não seja tão grandioso como o de Homero, acaba acompanhando-lhe o vulto. Alguns críticos quiseram atribuir a Joice a especulação de que a heroicização do humano na contemporaneidade seria impossível. Mas pode-se dizer exatamente o contrário. O encontro do sentido de vida em um mundo industrial, longe dos alicerces humanistas, é o verdadeiro ato de heroísmo. Junto a essa questão, percebe-se outra, a incomunicabilidade entre os seres humanos. Por mais idiomas e por mais palavras que dominamos, nossa possibilidade de comunicação e cumplicidade de sentimentos quase não existe. Isso é comprovado pela intensa presença do corpo em todo o romance.

A monumentalidade que o romance atingiu, apesar da trama tão simples, não foi por acaso. Assim como um homem simples se torna o grande herói dos dias da modernidade, o escritor que consegue retratá-lo e contar-lhe os feitos torna-se também o maior clássico.

Por isso o Bloomsday, uma exaltação ao Ulisses moderno corporificado na pele de Leopoldo Bloom, talvez seja, no fundo no fundo, a celebração de todos nós. Vivemos nossas ânsias não realizadas, traímos, sofremos traições que mal disfarçamos e ainda assim insistimos cultuando a esperança. Somos homens e mulheres que avançamos estilhaçados, incapazes das certezas e dos grandes feitos homéricos, ou se ao menos atingimos as bordas, é através da celebração do nosso desejo.

sábado, junho 16, 2012

O mundo sem transgressão

Nos dias de hoje, a transgressão quase já não é possível. Quando falo nesse ato não discuto apenas ataques às instituições, como atitudes fora da lei, vandalismos e destruição, geralmente perpetrados por pessoas sem senso de responsabilidade pela vida em sociedade; também não me refiro a atitudes antes cerceadas mas pouco a pouco absorvidas e incorporadas à ideologia pela perversão sistêmica do capital. Mas à transgressão no sentido da tentativa de não compactuação, de não cumplicidade, de desvio ao caminho único que se afigura na pós-modernidade, esse modelo sempre difundido até a exaustão pelos telejornais mundo afora, durante as 24 do dia.

Nas tevês, sobretudo, propaga-se a diversidade, mas sabe-se que é só máscara. Na verdade, a tal diversidade não existe. Todos estão enfronhados num mundo em que se precisa trabalhar, ganhar dinheiro para sobreviver e consumir para gerar novos empregos. Caso alguém queira criar outro modo de vida, digamos um modo de vida contemplativo, logo é criticado e taxado de louco ou vagabundo. O bom sujeito é aquele que trabalha e não reclama.

Caso remontemos à antiguidade clássica, perceberemos que muitos filósofos trafegaram no contrassenso do modo de pensar da maioria de seus concidadãos. Vejamos Sócrates, Platão e até mesmo Aristóteles. Suas teorias, que hoje soam tão sensatas, estabelecedoras da civilização ocidental, não foram logo aceitas. Sócrates acabou condenado à morte; Aristóteles exilou-se no fim da vida para que a filosofia não sofresse a segunda baixa; e Platão, cronologicamente entre ambos, safou-se ao criar um sistema invisível que, na aparência, afigurava-se muito inofensivo. O que podemos salientar entre esses pensadores, no entanto, é que conseguiram pensar alternativas ao seu tempo.

Voltando ao mundo contemporâneo, pode-se perceber que o século 20 foi pleno de tentativas de vida alternativa conhecidas como utopias, e muito anterior à época do movimento hippie a vida em pequenas comunidades já tinha sido experimentada em vários cantos do mundo, inclusive no universo judaico. Mesmo antes de um capitalismo tão avassalador, já se percebia, porém, que tais comunidades estavam fadadas à dissolução. As fábricas, nos subúrbios das grandes cidades, necessitavam de mão de obra. O socialismo veio como consequência a esse chamamento, surgia com a intenção de humanizar o setor produtivo. Com a impressão de que os meios de produção eram propriedade coletiva, a vida talvez parecesse mais fácil de ser suportada, embora desde o começo ficasse claro que poucos seriam aqueles que realmente teriam o poder de mando, e que os bens do estado estariam sempre distantes do povo.

Finda as utopias, sobretudo as de caráter universalista, a esperança de vida alternativa ainda tentou sobrevier em pequenas comunidades espalhadas pelo mundo, mas a informação massificada, cuja expansão foi alavancada em meados do século 20 pelo surgimento de novas tecnologias, não deixou que essas comunidades sobrevivessem. Sempre seria melhor criar um imaginário em que todos pudessem se tornar felizes usufruindo os benefícios da civilização, e a reboque disso consumissem produtos que multiplicassem o capital de quem os produzia, potencializados estes ainda com a hipotética possibilidade de participação dos cidadãos no capital das empresas cujas ações são negociadas em bolsas de valores. O instrumento útil à propagação dessa ideologia foi inicialmente a imprensa escrita, depois o cinema, a seguir o rádio e, enfim, a TV. Hoje temos o computador, com a internet a propagar o que, no entender do mundo do Capital, está mais à mão de todas as pessoas, os produtos que supostamente tornam a vida mais confortável. E tudo está à distância de apenas um clique. A conta? Bem, isso a gente depois resolve.

Mas apesar do avassalador progressismo, ainda existe a vida contemplativa. Ela está presente em algumas sociedades que divulgam uma espécie de gozo interior com o estar no mundo, com a apreciação da natureza e de obras de arte “puras”. Como o nirvana do budismo, a união em um só ser entre o humano e a natureza. O budismo e as práticas que levam em conta a meditação vão por esse caminho, criando para o ser humano certo distanciamento dos apelos comerciais, que parecem não levar em conta outros modos de vida.

A vida cuja razão de existência seja a arte (mas não arte de especulação financeira), ainda que para pequeno público, como a leitura, a escrita de poemas e de romances, a criação de espetáculos teatrais e pictóricos, também se apresenta como alternativa. O ser humano se sentiria satisfeito pelo prazer proporcionado pelo processo de criação. Mais uma vez fugiríamos da reprodutibilidade, cujo motor inicial foi o processo de industrialização.

Refletindo sobre a questão da recusa a um modelo, ou modo único de vida, já estamos lucrando, porque aqui existe pelo menos a reflexão, fato que a engrenagem de produção e consumo tenta solapar.

Outra possibilidade de recusa e ruptura à via de mão única da contemporaneidade seria a loucura. Mas essa se tornaria problemática, porque o mundo dos loucos carece de sintaxe, ou se ela se apresenta é aleatória, em constante mutação, o que afastaria a possibilidade de qualquer tipo de organização social. Talvez o ponto positivo dessa hipótese seria especular sobre a série de surtos coletivos (uma espécie de sintoma) observados nas sociedades que vêm apresentando assoberbamento da neurose consumista.

O gigantismo e a complexidade de um mundo em que predominou a repetição através da industrialização em massa provocaram o modo de vida onde o mais importante é ocupar o imaginário das pessoas, não o território. Quanto mais imaginário conquistado, mas fãs e adeptos a determinados mecanismos de repetição guiados pela cultura de massa. Esta, enfim, chegou a um ponto de total expansão com a internet, mas por maior a ironia, seu gigantismo passou a autodevorar todo o sistema, todos os mecanismos criados anteriormente.

Ainda talvez não seja a hora, porque temos na rede mundial de computadores a repetição das audiências do chamado “mundo real”, como a dos jornais impressos, a das emissoras de tevê e até mesmo a das estações de rádio. Mas quando já tivermos distantes de tudo isso, e com a possibilidade de todos também serem “agentes”, as audiências tenderão a se pulverizar. Então, a saída será voltarmos às pequenas comunidades de interesses, e só sairemos delas nos poucos momentos em que precisemos procurar uma padaria para comprar o pão de cada dia.

Para que não sejamos tão céticos e catastróficos, um dia desses descobri um grupo de poetas que publica seus poemas em pequenas tiragens e os divulga apenas entre os amigos. Um deles falou que poesia não é para dar lucro. E ainda foi mais longe: a única transgressão possível é a da poesia, porque transforma a linguagem, o referencial com que o ser humano se entende, num terreno não tão seguro. Uma vez por mês reúnem-se para ler seus versos em voz alta. Talvez esse pequeno exemplo de comunidade possa servir de alternativa a quem almeja um mundo mais humano, sem preocupação com a audiência e, em consequência, sem o instinto exacerbado de competição.

Comecei discutindo a possibilidade de algumas atitudes de recusa ao mundo intensamente comercial em que vivemos, esse universo reprodutivo que devora todos os sonhos. E chego à conclusão de que, salvo essas pequenas e talvez importantes tentativas de insistir em opções alternativas, há a atitude mais drástica, talvez a chamada recusa total, às vezes utilizada por poetas e filósofos entre outros e outras, a maior de todas as transgressões: o suicídio, ainda que através do álcool e das drogas.

sábado, junho 09, 2012

“Memórias de uma guerra suja”

Na última terça-feira (05/06), quem assistiu ao programa “Observatório da Imprensa”, no canal Brasil, pôde testemunhar a longa entrevista concedida por Cláudio Guerra, ex-delegado do Dops (a polícia política dos anos de chumbo), a Alberto Dines. O assunto já não é novidade, porque está no livro Memórias de uma guerra suja, onde este mesmo personagem relata aos jornalistas Marcelo Medeiros e Rogério Netto sua ativa participação num dos mais tenebrosos episódios da nossa história, a ditadura militar que se instalou a partir do golpe de 1º de abril de 1964 e vigorou até meados dos anos 1980.

O que eu gostaria de ressaltar não é o avanço do direito ao esclarecimento sobre o paradeiro dos desaparecidos políticos. Está aí a Comissão da Verdade, em cujos componentes depositamos nossa confiança para que nos revelem os crimes e os excessos cometidos, sobretudo por quem detinha na época o poder. O que destaco é a atuação desse jornalista que, apesar da idade avançada, persiste vigoroso em seu trabalho. Dines viajou a Vitória para entrevistar o tal personagem, como viajaria a qualquer outro lugar se houvesse a perspectiva de fazer um programa esclarecedor e sempre a serviço do cidadão.

Nos dias de hoje, quando impera a busca desenfreada pela audiência a qualquer preço, o programa “Observatório da Imprensa” tem atuado no sentido de colocar em questão a própria imprensa, isto é, os meios de comunicação, incluindo aí as poderosas emissoras de TV. É sempre bom destacar o papel da TV Brasil, pois se trata de uma emissora pública que procura trazer à sua audiência programas de natureza cultural, plenos de apuro e sofisticação.

Vivemos num século dominado pelo consumo exacerbado, por isso muitos jornais, revistas, rádios e TVs existem quase que somente para corroborar essa ideologia. O Observatório, no entanto, fazendo crítica à imprensa, mostrando que publicações, rádios e TVs não devem se colocar como empresas comerciais quaisquer, traz ao espectador a consciência de que informação digna não é mercadoria que se fabrica de qualquer maneira e se vende a qualquer preço.

O ponto forte do último programa não foi apenas ouvir da própria voz as atrocidades cometidas pelo ex-delegado do Dops, mas também mostrar que, durante os anos em que estiveram no poder, não apenas os militares se beneficiaram, mas muitos civis sob a proteção deles abocanharam sua parcela de lucro sem precisar dar satisfação ao povo. Daí a dificuldade de se esclarecer os crimes da ditadura. Para muita gente, seria melhor que tudo ficasse esquecido. Como revelar a verdade do período se quem mais colaborou com os militares encontra-se hoje na crista da onda da audiência? O entrevistado deu nome a vários profissionais de imprensa e também a jornais, rádios e emissoras de TV. Árdua tarefa a de Dines, mas ele é um obstinado e apaixonado repórter. Seu programa continua a mostrar a qualidade que é possível existir mesmo numa pequena parcela da imprensa brasileira, incluindo aí a própria TV.

Assunto muito discutido atualmente, mas de pouco empreendimento, é a leitura. A própria TV gosta muito de anunciar que o brasileiro lê pouco. Mas, uma vez que as mesmas emissoras apelam para nos manter horas a fio hipnotizados ante suas programações, como a leitura seria possível, principalmente considerando a enorme audiência entre a população de baixa renda? Percebem-se ardilosas estratégias que objetivam manter o espectador com a TV ligada durante o máximo de tempo. Há espetáculos esportivos durante todo o dia, uma enxurrada de notícias desnecessárias, reality shows, passando inclusive por telenovelas e programas religiosos. Às vezes o espectador sente-se, ainda que inconscientemente, participante de uma irmandade da qual não se pode desligar porque, caso o faça, mergulhará num estado de mais profunda solidão. Com essa questão parece que me desviei do assunto inicial, mas tem tudo a ver.

Por mais importante que sejam todos os meios de comunicação, quando se deseja transmitir algo deveras importante, recorre-se ao livro. E foi isso que aconteceu. O torturador arrependido, em crise de consciência por causa de sua religiosidade tardia, recorreu a dois jornalistas que acharam melhor publicar sua confissão em livro.

Não esperem da grande imprensa, inclusive da TV comercial, grande destaque à questão. Não pela falta de importância histórica do assunto nem pelo fato de um país de leitores ameaçar a audiência das TVs. Mas porque existe algo de podre, difícil de levar para longe da porta da própria casa.

sábado, junho 02, 2012

Depois daquela cena

Um dia desses um amigo professor, numa conversa de bar, contou sobre um diálogo que tivera com uma de suas alunas. Sem motivo aparente, a jovem lhe perguntou: “professor, por que o senhor não namora a minha mãe?” Ele não se mostrou surpreso com a pergunta. Pois, atualmente, são muitos os (as) adolescentes que continuam, como nos velhos tempos, tendo relações platônicas com alguns de seus mestres. Não podendo realizar fisicamente o amor, transferem-no à mãe, ou a uma tia, mulheres que geralmente vivem sozinhas e em dificuldades. Um interlocutor, que também segurava o copo, perguntou se a aluna era bonita e por que ele não se aproveitara disso. Houve ainda alguém que insinuasse a boa ideia de dar uma namoradinha com a mãe da dita cuja só para saber se ela era gostosa.

Voltei para casa e a questão não se resolveu na minha cabeça. Alunos e alunas do ensino público são pessoas, sobretudo, muito carentes e, caso mal direcionadas, o problema lá na frente tende a aumentar.

Lembrei-me, então, de um professor universitário amigo meu. Após vivenciar um episódio arriscado, fez uma espécie de reflexão sobre o tempo em que vivemos.

Voltava ele da faculdade no seu Peugeot, havia acabado de deixar duas alunas que trouxera de carona. Ao parar no sinal luminoso junto ao Passeio, naquela avenida que cruza com quem vem da Praia do Flamengo em direção à Lapa, um garoto o abordou com uma faca. Ele, que já não é jovem e ainda por cima deficiente físico (seu carro é adaptado para quem não pode fazer uso das pernas), instintivamente tomou nas mãos a muleta, que jazia no banco ao lado, e, com a destreza de um bom esgrimista, começou a travar pela janela do carro uma renhida luta contra o agressor. O grotesco embate durou menos de um minuto. O desvalido, como não esperava a pronta reação, assustou-se e fugiu. Depois, o episódio serviu como motivo para um livro de crítica da cultura. Por que a nossa sociedade produz esse tipo de violência? Qual a nossa parcela de responsabilidade nisso tudo, já que temos o conhecimento? O professor, que como intelectual também não deixa de ser desvalido – suas armas são sempre precárias e duvidosas –, acabou concluindo depois de 300 páginas que nossa indiferença pode ser a causa de tudo.

Não sei se ele chegou ao cerne da questão, mas foi mais fundo do que o professor lá do início, o do chope com os amigos, que terminou sem reflexão e sem deixar qualquer tipo de recado. Ou, se deixou algum, é o de que sempre se pode tirar proveito de alguma situação.

E fomos todos ao cinema

Para completar, vi num shopping, em dia de semana, uma turma de adolescentes do ensino público. Eles estavam na fila de “Paraísos artificiais”, filme brasileiro dirigido por Marcos Prado. Pensei: se jovens do ensino público estão dispostos a assistir a um filme que trata de problemas pertinentes a eles, nem tudo está perdido.

“Paraísos” é um filme que aborda uma juventude sem perspectiva, ou mesmo sem ideologia. São pessoas cuja principal tarefa é aproveitar a vida e, dependendo da oportunidade, obter algum lucro: drogas de graça ou mesmo viajar ao exterior e ganhar um dinheirinho servindo de mula para trazer de Amsterdã algumas cápsulas de ecstasy.

Mas o filme não é só isso. Há belas paisagens, boas músicas, alegria e o entendimento de que, se usadas com esperteza, as drogas não são tão letais. Ou seria o contrário? Pode ser que eu não tenha entendido a história. Mas, ao mesmo tempo, não se pode dizer que o filme faz apologia às drogas. Apenas parte da ideia de que não há nada de errado em se aproveitar do assunto para se fazer um bom filme. Enfim, a arte pode abordar todos os temas porque, não sei se infelizmente, vivemos numa economia de mercado. Portanto, é preciso ganhar dinheiro.

Após a sessão, uma aluna gritava a outra: você é burra, por acaso não entendeu? O rapaz que sai da prisão é o pai do filho da DJ. Eles transaram naquela festa rave na Bahia. Ela trepava com o cara enquanto a amiga lésbica se enrolava numa overdose.

Como eu vira o filme, percebi que a garota tinha razão. Eu mesmo não havia prestado atenção nesse ponto. Nas idas e vindas do roteiro, a moça entendeu que o tempo é pura abstração. E era apenas uma aluna do ensino público.

Onde o professor que tomava chope e contava suas vantagens em cima da solidão das alunas? Onde o duelista e sua afiada muleta? Sobressaía agora alguém quase menina a quem, depois daquela cena, o mundo jamais seria o mesmo.