quinta-feira, abril 24, 2008

Teatro - Crítica

O poder da metáfora – Onde você estava quando eu acordei potencializa fragilidade e resistência do ser humano

A peça começa quando a atriz Cristina Flores, que interpreta Sara, dirige-se para fora do teatro, na verdade um casarão, enquanto o público entra na pequena sala de espetáculo. Os bancos de dois ou três lugares, arrumados de modo quase aleatório, tornam a sala capaz de abrigar apenas trinta pessoas. A luz é baixa, quase penumbra. Nota-se, então, Vera (Márcia do Valle), sentada, encostada à porta corrediça; o teatro um dia teria sido uma loja. Quando todos já silenciaram e esperam, Sara entra e Vera a recebe. Estamos na verdade dentro de uma casa e lá chega uma mulher, não esperada por outra, que foge de um mundo envelhecido, está em busca de abrigo e talvez de uma vida nova. Do embate entre as duas, suas convicções, esperanças e dúvidas o texto se desenvolve.
Escrito por Sidnei Cruz, inspirado no livro de Valérie Solanas: Scun Manifesto: uma proposta para a destruição do sexo masculino, o texto é instigante e cumpre seu papel ao colocar duas mulheres como agentes do próprio destino. A literatura, no caso o texto dramático, não escapa do poder da metáfora; essas mulheres são vozes que representam talvez séculos de opressão, são seres à procura de liberdade, mesmo que, para atingi-la, tenham que praticar com esmero e alegria seus crimes. Não se pode acusar o texto de datado devido à obra de origem pertencer a um momento do movimento feminista. O que está em jogo não é a questão de gênero, mas do ser humano. Ao mesmo tempo em que explora a fragilidade – de modo explícito a da mulher –, o texto mostra a necessidade de um outro (ou outra), que sirva como reflexo do próprio eu, uma espécie de cúmplice que da própria fraqueza construa a resistência.
A direção de Sidnei Cruz é eficaz e consegue exigir o máximo das atrizes. A encenação opta pela movimentação intensa, e muitas vezes em separado, das duas por toda a sala e por entre a platéia, obrigando a cada um optar a qual delas seguir, sugerindo a impossibilidade de qualquer espécie de experiência totalizante. Vale ressaltar a interpretação de Cristina Flores, que dá intensa vitalidade à sua Sara.
A precariedade do local acaba por reforçar a temática da precariedade do ser humano, sempre às voltas com suas intempéries. O cenário de José Dias e a iluminação de Juju Moreira são bastante úteis, porque conseguem situar todos no patamar da permanente sombra e transitoriedade. Interessante também a trilha sonora e música original de Jean Mafra, que pode ser baixada no sítio dos Leões de Circo.
É importante que grupos como este façam a diferença no panorama teatral contemporâneo, como diz o próprio programa do espetáculo: “desenvolvendo uma pesquisa cênica centrada sobretudo na conjugação orgânica de três fatores: a primazia do ator em cena, a economia de elementos cenográficos e o jogo aberto com o público”. Esse jogo que não deixa de ser compartilhado quando as atrizes bebem de uma garrafa de vinho e comem sanduíches, servindo também ao público.

Onde você estava quando eu acordei?
CASA MERCADO 45
Rua do Mercado, 45
De sábados a segundas, às 19:00h
Temporada: até 19 de maio.

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