sexta-feira, agosto 18, 2006

High society

O cabelo caiu-lhe sobre a testa quando estendeu o fósforo aceso. A noite ainda amparava-se nas últimas sombras. Acendi o cigarro e continuei olhando um ponto indefinido no horizonte. O pensamento entretanto não se mantinha ali.
Voltei-me para Gilberto, mas ele não percebeu. Eu ainda pensava na mulher que havíamos deixado desacordada dentro da casa.
Não sabíamos o que ocorrera. Pedi a ele que lhe tomasse o pulso. Não acreditei quando me disse que nada ouvia. Tentei ampará-la, apalpá-la; mas a senti fria; os lábios pouco a pouco perdiam a cor.
"Vista-a!", ainda gritei revelando todo meu desespero.
"Vamos embora, vamos!", foi tudo o que disse.
"Vamos procurar ajuda".
Minha proposta não encontrou eco.
"Não há quem possa nos ajudar, e logo vai amanhecer; estaremos encrencados".
Alguma coisa crescia dentro da casa, nos revolvia o estômago; o ar faltava, faltava-nos fôlego. Abandonamos tudo e corremos até o outro lado da estrada. As estrelas luziam indiferentes; um resto de lua nos aguardava, paradoxos de um mundo distante, paraíso tenebroso. A mulher ainda quase menina talvez morta.
O cigarro acesso indo e vindo a meus lábios acalmava-me. Cheguei a pensar que se o tempo parasse ali talvez fôssemos felizes.
"Eu lhe disse, ela não estava acostumada, não devia ter nos acompanhado".
"Agora não adianta mais", soltou a fumaça junto às palavras e atirou longe a ponta de cigarro.
Eu procurava uma saída que antecedesse às primeiras luzes. Queria não acreditar no que vivíamos, mas tudo era vão. Explosão precipitada de mina plantada por nossas próprias mãos.
"Vamos", Gilberto gritou de dentro do carro.
"Vou ficar".
"Você está louco?"
Desceu do jipe, me pegou pelo braço, tentou me arrastar. Uma das mangas do agasalho ficou em suas mãos. Pegou-me então pelo pescoço.
"Você tem que ir, precisa ter sangue frio neste momento, não podemos mudar o que aconteceu".
"Mas a mulher está morta!", meu grito se perdeu no ar.
Conseguiu que eu entrasse no carro. Depois, o ronco do motor.
Ao manobrar, a poeira da estrada misturou-se à neblina.
Partimos.
Descemos a serra sem mais palavras.