quinta-feira, maio 25, 2006

O manequim

O homem olhava a vitrine. Parecia impressionado com o que via. Aproximou-se mais um pouco, bem junto ao vidro. Tomou cuidado para que sua respiração não o embaçasse e continuou olhando demoradamente. Estava como que enfeitiçado. Do outro lado, um manequim feminino muito bem vestido. A vitrine tinha outros, mas não eram tão bonitos. Aquele andar do shopping enfileirava numerosas lojas, atrativas vitrines, diversos produtos, mas era aquele que o havia enternecido.
Todos os dias ia ali passear. Morava num prédio lateral, apartamento pequeno, quente. O shopping era refrigerado, via bastantes pessoas, distraía-se. Tinha feito até algumas amizades. Pessoas sozinhas como ele. Era, porém, discreto, limitava-se apenas a algum cumprimento, de preferência um ligeiro aceno, ou um leve movimento com a cabeça. Gostava de andar só, ou melhor, como dizia, em sua própria companhia.
Sempre olhava as vitrines. Sabia até de cor a disposição das lojas, dos produtos. Conhecia os cafés, as mesinhas que tentavam imitar estilo antigo, as funcionárias que atendiam, etc.
Aquele manequim, no entanto, era algo novo. Ele não estava ali antes. Havia lojas que nem mais os usavam, substituíam-nos por madeira, fibra ou por moldes imitando pedaços de corpo. Possuíam apenas as partes necessárias para armar as vestes, não tinham cabeça, nem beleza alguma. A loja nem era nova, mas aquele manequim era uma grande novidade, um grande motivo para apreciar em suas tardes de passeio pelo local.
Passou dois meses admirando-o. Ia todos os dias àquela loja. Às vezes logo após o almoço; outras, no começo da noite. Demorado, olhava o manequim. Observou que uma vez por semana mudavam suas vestes, eram modelos novos. Qualquer peça de roupa deixava o manequim deslumbrante. Concluiu que fora feito baseado na deusa da beleza. Mesmo sem peça alguma, seria maravilhoso.
Numa segunda feira de maio, pela manhã, assim que o shopping abriu, entrou e dirigiu-se diretamente à vitrine da loja. Não era seu costume passear ali durante as manhãs. Naquele dia, porém, não resistiu ao desejo de visitá-lo cedo. Verificou se não errara de andar, ou mesmo de loja. Olhou as outras vitrines iluminadas, olhou as lojas de frente, reparou que não errara. Mas onde estava a que procurava? Aquela loja chique não poderia ter desaparecido como num toque de mágica. Os vidros que protegiam os elegantes manequins estavam cobertos por papéis do próprio shopping, com dizeres de que em breve ali se inauguraria uma famosa papelaria.
Começou a sentir o rosto molhado de suor. Sentia também o corpo frio. Olhou para os lados como se procurasse socorro. Queria agachar-se vagaroso, mas o que fez foi virar-se, encostar no vidro, secar o rosto com a palma das mãos e procurar recompor-se. Após alguns instantes, caminhou até um banco de madeira que estava vazio, no outro lado do corredor. Sentou-se e começou a pensar no que iria fazer dali em diante.
Sua primeira providência foi dirigir-se à administração. Queria saber o que acontecera à loja. O funcionário que o recebeu não estava preparado para aquele tipo de informação. Na verdade, nem sabia que loja era e nem que tinha fechado. Pediu que aguardasse. Voltou após longos dez minutos com a seguinte informação:
"A loja fechou, o dono resolveu encerrar o negócio.”
"Mas como?" Ainda quis argumentar, mas o funcionário disse que era tudo o que sabia.
Na Rua Gonçalves Dias havia muitas lojas sofisticadas, dentre elas uma da mesma marca.
“Eu já disse ao senhor, isso aqui é uma franquia, eu não sei de nada sobre outras lojas que usam o mesmo nome e ainda que soubesse não poderia dar informações.”
O ar-condicionado suavizara um pouco a caminhada. Tentava obter de alguém que trabalhava ali, não sabia se um dos donos ou um funcionário, informações sobre a loja que fechara. Foi, porém, inútil. O homem, quando observou que aquele senhor não compraria nada, que fazia perguntas sem sentido, sentiu intenso desconforto. Estava atrapalhando-lhe os negócios e precisava despachá-lo. A imagem do velhinho não correspondia à clientela da loja.
Ao voltar à rua e ao calor sufocante, ainda virou-se para a vitrine. Tentava encontrar o mesmo manequim. Não conseguiu, não havia modelo algum parecido com o que procurava.
O jeito foi recorrer à lista telefônica. Havia alguns representantes daqueles manequins. Possivelmente o dono da loja os devolvera, ou mesmo os colocara à venda. Tentaria assim chegar a ele por outro caminho.
“Pois não, em que lhe posso ser útil?”, a voz da recepcionista lhe soou agradável.
Depois de obter dois ou três endereços resolveu ir ao local, não gostava de telefonemas.
“Eu gostaria de saber sobre manequins...”
“Manequins?”
“Sim, desses que ficam na vitrine das lojas, principalmente nos shoppings.”
“Qual a sua empresa?”
'Empresa?' Chegou a tomar um susto. Como sairia dessa? Não poderia contar a ninguém a verdadeira história. Seria tomado por louco, ficaria desacreditado. Tentou manter firmeza.
“Eu ainda a estou registrando”.
“Ah, sim”.
“Gostaria de saber alguns preços; pretendo fazer uma boa encomenda”.
Saiu dali tendo deixado para contato telefone, endereço e tudo mais. Na verdade informações inventadas na hora. Não obtivera pista alguma do que almejava.
Depois daquele dia, passou a percorrer todos os shoppings da cidade. Sabia onde ficavam todas as lojas da mesma rede onde descobrira o manequim. Aproveitava para olhar também outras vitrines. Apesar de desiludido, as idas e vindas pela cidade acabaram por distraí-lo um pouco. Passou a reparar outras pessoas como ele. Eram entes solitários, que caminhavam de um lado a outro e nunca pareciam ter destino certo. Só temia que eles também procurassem pelo mesmo objeto.
Certa noite acordou sobressaltado. Eram três horas da manhã. Na verdade sempre temera acordar durante a madrugada. Olhava o relógio e ao perceber que o amanhecer ainda estava distante sentia uma enorme angústia. Lembrou, então, de um sonho. Sim, sonhara com seu manequim. Sonhara e encontrara-o. Só não lembrava o local, mas parecia ser numa loja de objetos usados.
Ao amanhecer saiu cedo. Onde houvesse algum brechó, ele estaria lá.
Suou muito durante o dia. Esse tipo de loja, além de quente e abafado, deixava-lhe poeira por todo o corpo. No final do dia, tossia e espirrava pó.
Foi quando lhe informaram sobre um brechó que ficava na rua dos Inválidos. Decidiu que seria o último. Não agüentava mais. Quando chegou ao local, reparou que a própria rua tinha um ar decadente. Os sobrados se enfileiravam sujos, maltrapilhos. Alguns se haviam transformado em cortiços. Num andar térreo, tentando escapar da goteira de um cano d'água, adentrou entre papéis velhos e um tórax portando um paletó preto. Mais alguns passos, desvencilhando-se de uma pilha de revistas antigas, viu seu manequim. E estava tombado entre objetos menores. Havia junto dele até mesmo uma gaiola. Sentiu uma vertigem. O dono do estabelecimento correu em sua direção. Puxou uma velha cadeira e o fez sentar. Trouxe-lhe um copo d’água.
“Eu quero esse manequim”, entre a respiração ofegante, pronunciou essas palavras de um só jato.
O dono do lugar se surpreendeu. O cliente não perguntara preço nem regateara, o que não era comum neste tipo de negócio.
Levou o objeto com o máximo cuidado. Pediu que o ajudassem a pegar um táxi.
Depois disso, pouco foi visto. Dizem que quase não sai de casa. Ao seu lado, sempre o manequim. Vestido com as roupas mais caras.

quinta-feira, maio 04, 2006

Última noite em Bagdá
Não se deve voltar ao campo de batalha após abandoná-lo. É um ensinamento básico. Mas eu tinha de voltar. A causa: um livro esquecido. Logo eu que nunca gostei de ler, que comecei a me aproximar da leitura há pouco. O responsável disso: um professor que me fez representar pequeno papel numa peça, uma atividade escolar; ele disse que eu tinha talento, que era um artista nato. Me saí bem na apresentação, fui muito elogiado. Também nunca gostei da escola. O teatro começou a me mostrar que podíamos fazer alguma coisa diferente ali, além da chatice do dia a dia; o teatro e um jornal que havíamos criado. Agora, deitado sobre o chão da sala, na escuridão da noite, vejo pelo vão em escombros, local onde antes ficava a janela, as únicas luzes possíveis: a das estrelas distantes e a de morteiros e foguetes que cruzam o céu. Talvez tantas cores sirvam para orientar algum tipo de ofensiva, como estava acostumado a ouvir dos locutores, no pequeno rádio que possuíamos. Estou agarrado ao livro, apenas me movimento, vez ou outra percebo o cravar de projéteis no antigo forro da casa. O pó que se desprende e os cacos de cimento que caem sobre mim lembram meu pai e o tempo em que ele andava de uma lado a outro tentando melhorar nossa casa. Todos já se foram, dizem que para um campo de refugiados. Não tenho idéia do que seja isso. Voltei escondido, não posso abandonar este livro, deixar que se perca em meio ao monturo de destruição deixado pela guerra. Sempre pensei que iríamos sair desta situação. A guerra era uma coisa distante, não nos atingiria. O avanço do inimigo era apenas comentários de pessoas desocupadas que ficavam perdendo tempo com assuntos inúteis à porta das casas. Mas o inimigo veio. De início, mostrou-se em disparos e clarões distantes. As crianças se assustaram, procuraram os abrigos. Mas logo todos perceberam que eles eram frágeis e não comportavam toda a população. A seguir, vieram os aviões. E como voavam rápido. Pareciam invisíveis. Passavam furiosos, tinham como rastro o próprio barulho que faziam. Ouvimos também a aproximação dos helicópteros. Mas não estavam ali para nos retirar, como tinham prometido os americanos; num vômito constante, despejavam soldados. Mais tarde, nos deparamos com fileiras e mais fileiras de caminhões e carros de combate. Agora, eu, aqui. Na casa semidestruída que um dia foi nossa. Eu e meu livro. Bem apertado à minha barriga. A pequena sala onde estou permanece no escuro; apenas reflexos de um céu em fogos de artifício. Mas às crianças, ou ao que sobrou delas, é possível, entre outras coisas, enxergar no escuro e descobrir palavras. (Encontrado entre as páginas de um Hamlet)