segunda-feira, março 28, 2011

“Está bem, então vá”

Era o verão de 1972, uma época boa, tínhamos esperança quanto ao futuro e queríamos a liberdade absoluta. Uma vez que recusávamos as grandes cidades, morávamos em acampamentos à beira de praias distantes. Outras vezes íamos para locais de difícil acesso, no interior. As pessoas nos chamavam de hippies, e nós, até certo ponto, acabamos gostando do nome. Embora no mundo inteiro o movimento entrara em declínio, não queríamos pensar nisso. Andávamos de um lado para outro quase sempre em festa. Alegres, preocupávamo-nos apenas com o dia em que estávamos vivendo. Caso tivéssemos o que comer, beber e fumar naquele momento, estava bom.

Fui parar não sei como numa praia do norte da Califórnia. Se perguntar hoje onde fica essa praia, não sei dizer. Sei que havia um camping, e entre os acampados viviam alguns rapazes e moças. Os rapazes eram mais numerosos. Notava-se que eram de boas famílias, mas decidiram largar o conforto do lar e adotar aquela vida. Montavam e desmontavam barracas, subiam e desciam a serra, viajavam de carona. Com que dinheiro viviam? Não sei. Acho que alguns arranjavam com os próprios pais; outros se orgulhavam em dizer que eram artistas: pintores, escultores, artesãos etc. E vendiam o que produziam. Juntei-me a eles.

Um dos rapazes tornou-se meu amigo; depois, meu namorado. Aonde quer que eu fosse, ele me acompanhava. Naquela época eu tinha vinte e seis anos, nunca trabalhara, deixara para trás a cidade do interior em que nasci e viera me aventurar em Los Angeles. Tinha apenas uma pequena mala com poucas roupas.

No acampamento também apareciam pessoas em férias. Diziam gostar da vida em meio à natureza. Não era difícil fazer amizade com elas e até mesmo ganhar alguma coisa, como um prato de comida ou mesmo mantimentos para cozinhar nas nossas barracas. Os turistas gostavam de nos ajudar, acho que queriam ser como nós, mas não tinham coragem. Então, facilitavam-nos a vida.

O rapaz, meu amigo, era calado, não agia como os outros, que participavam de divertimentos, como jogos de vôlei e de futebol. Ele gostava de ficar na praia, principalmente ao entardecer, olhava o horizonte, pensativo. Eu o acompanhava nessas horas, nada falava, deixava-o entregue à sua meditação. Às vezes andávamos durante algum tempo pelas areias da praia. Lembro que na época eu não tinha biquíni. Tivera um, mas me roubaram no acampamento. Assim, não entrava no mar quando ele insistia. Dizia para eu tirar a roupa e mergulhar nua. Mas eu não tinha coragem.

Ele era muito jovem, acho que seis ou sete anos menos que eu, e tinha casa, pai e mãe. Mas não queria voltar para lá. Também não pensava muito como ia fazer dali para frente.

Certa vez, disse a ele:

“Você deve pensar bem sobre o seu futuro. É muito bonita essa vida, mas não é possível sobreviver assim por muito tempo. É preciso ter dinheiro, ou se morre de fome.”

Ele me ouviu, mas nada comentou. Começou então a rolar um amor entre nós. Mas sem combinação alguma. Não tínhamos compromisso um com o outro nem sentimento de posse. Acabei dormindo com ele. Nas primeiras noites, nada aconteceu. Mas, depois, começamos a fazer amor. Era muito comum na época a expressão, “fazer amor”. Dali em diante, passamos a ficar juntos, dias e noites. Divertíamo-nos muito. Seus amigos nos observavam e lhe diziam que se afastasse de mim, que eu não era boa companhia. Mas era tudo brincadeira. Na época, fumava-se muita maconha, cheguei até a experimentar ácido. Eu não era exceção. Ele, no entanto, não tinha a tendência de fumar muitos baseados. Dizia que preferia o ar puro das manhãs, e sempre carregava livros, principalmente de poesia, também escrevia.

Um belo dia – fazia uns três ou quatro meses que vivíamos juntos – quando estávamos prestes a partir mais uma vez sem destino, senti que tudo aquilo começava cheirar a um romantismo barato demais. Não sei se surtei, mas resolvi dar um basta.

“Você acha que dá mesmo para viver assim, sair viajando por aí de carona, sem dinheiro no bolso, sem destino?”, havia filmes na época que incentivavam nosso imaginário.

“Sempre dá”, eram poucas as suas palavras.

“Não vou com você, me entende? Não vou, já tenho dez anos de estrada, sei como é essa vida, não estou mais para isso.”

“O que você vai fazer?”, seus olhos sempre me transmitiam alguma melancolia.

“Vou com a Shirley. A mãe dela me ofereceu para morar com eles. Ajudo no serviço da casa, depois tento arranjar um emprego, quem sabe estudo...”

“Você vai ser empregada doméstica?”

“Não é isso, vou morar com ela, ajudar em alguma coisa.”

“E onde ela mora?”

“Ainda não sei, acho que num subúrbio, me dê um número que depois eu informo a você”, sugeri.

“Está bem, então vá”, não opôs resistência e ficou olhando na direção do mar.

Para dramatizar a situação e tentar comovê-lo, ainda falei:

“Tem mais uma coisa.”

“O que é?”

“Vou morrer cedo.”

“Morrer, como você sabe?”

“Fiz um exame do coração faz algum tempo, o médico é amigo meu, falou que não tenho muito tempo de vida.”

“Poxa, verdade?”, foram suas últimas palavras.

“Verdade”, levantei-me e saí dali chorando, sem olhar para trás. Ele não percebeu.

Hoje, penso onde andará toda aquela geração... Alguns se engajaram no mercado de trabalho, prosperaram, enquanto outros morreram, ou enlouqueceram devido ao consumo excessivo de drogas.

Sempre quando vou a uma livraria, olho os livros de poesia e procuro o seu nome sobre a capa de um deles. Mas nunca encontrei.

Quem sabe agora com o Facebook ou com o Google eu consiga localizá-lo? Ele vai se surpreender. Pode ser que tenha entrado para uma universidade, se formado, se tornado alguém importante. Pode ser realmente um poeta. Eu é que não tive até hoje competência para encontrar um livro seu.

“Você não falou que iria morrer logo?”

Terei que inventar uma desculpa.

sábado, março 26, 2011

sexta-feira, março 11, 2011



O poder ultrajovem


Reedição de crônicas de Carlos Drummond de Andrade surge num momento em que o gênero se encontra negligenciado


Era bom quando tínhamos um poeta maior que, além de produzir extensa e múltipla obra poética, também escrevia três crônicas por semana no antigo JB. Bons tempos que não voltam mais. Um poeta que não estava só a surpreender os costumeiros leitores do gênero, mas também àqueles que não liam poesia.


Talvez com Drummond, em termos de Brasil, a poesia se tenha tornado até certo ponto popular. Quem nunca ouviu falar de “José”, de “No meio do caminho”? O poeta, que tratava a palavra com tamanha maestria, não a renegava na crônica, gênero até certo ponto, conforme nos ensinam os manuais, fugaz.


Crônica vem de Cronus, deus do tempo na antiguidade clássica, também conhecido como Saturno, aquele que devorava os próprios filhos. Quem escreve crônicas não está apto a falar de deuses, mas de assuntos do tempo, desse tempo que passa muito rápido, deixando-nos com traços no rosto e mais próximos do fim. Logo, a crônica também acaba passando. Mas não é isso que acontece com o gênero quando se trata de Carlos Drummond de Andrade.


Caso procuremos nos muitas vezes soturnos departamentos de letras das universidades públicas, vamos encontrar dissertações e teses que tentam provar que a crônica drummondiana é do mesmo quilate de sua poesia. Quer dizer, poesia e crônica, quando se trata do autor de A rosa do povo, não possuem diferença. Portanto, é de se louvar e desejar que sempre se reeditem as crônicas de Drummond. É isso que faz a editora Record com a nova edição de O poder ultrajovem, conjunto de textos escritos pelo poeta por volta do final da década de 1960 e início da seguinte. Neles, predominam sutileza, leveza e sensibilidade. Mas não deixam de fazer profunda análise tanto do ser humano como da época.


O livro começa com histórias protagonizadas por crianças ou adolescentes, que, na sua vontade férrea, como o ferro das calçadas de Itabira, conseguem dobrar os adultos: a menina a convencer o pai, no restaurante, de que tem o direito de escolher o próprio prato; o caso das crianças desconfiadas, que, muito a contragosto, deixam o autor segurar suas pastas escolares, ele que vai sentado no banco de um ônibus lotado; a mãe que acompanha o filho até uma casa abandonada para que ele recolha algo dali, caso contrário será objeto de escárnio entre os colegas da escola; a professora que tenta fazer um plebiscito na sala de aula para saber se deve lecionar usando calça comprida, mas chega à conclusão de que ser democrática dá muito trabalho; a história da adolescente que recorre ao poeta porque seu cãozinho comeu a capa e as primeiras páginas de um livro de Fernando Pessoa emprestado a ela pelo namorado. Ela quer o autógrafo de Drummond, não importa que não seja ele o autor do livro, o que vale é não desagradar o namorado.


Dentre muitos assuntos, algumas crônicas abordam outros escritores, como Cecília Meireles, Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Guimarães Rosa.


Cecília é comparada a uma deusa, que chegou e se foi em novembro. Ela fez tudo que deveria ter feito para ter as feições de um ser humano, mas, na verdade, tratava-se de uma deusa. “Mulher bela? Sim, foi mulher bela. Grande poeta? Claro, foi grande poeta. Mas foi principalmente... deusa. Ah, o sorriso olímpico de seus olhos verdes, mas quem disse que o sorrir dos deuses é promessa de comunhão com os homens?”


Mário de Andrade é outro contemplado. O cronista rememora os vinte cinco anos da morte do autor de Macunaíma. “Até hoje não é fácil aceitar a perda de tudo que em Mário de Andrade foi criação e expansão humana.” Sobrepõe-se, no final do texto, a imagem do modernista de primeira hora morto, mas é um morto que ri, “junta os dedos em cacho e movimenta-os, exclamando: A própria dor é uma felicidade.”


Outro lembrado é Manuel Bandeira. Ao completar um ano de sua morte, Drummond escreve: “O poeta morreu coisa nenhuma. É abrir ao acaso qualquer de seus livros e tirar a prova.” O cronista relata três episódios interessantes. O primeiro, durante um almoço com Bandeira, em que este lhe diz que não se pode julgar com justiça os concursos literários, “tão melhor avaliar um poema, quando a gente o lê sem intenção de julgar.” Outro episódio é a revelação súbita de Bandeira: “Carrego comigo duas tristezas, nunca amei uma portuguesa nem uma negra.” E ante a surpresa de um admirador, que lhe pergunta na rua sobre o segredo de sua mocidade apesar da idade avançada, Bandeira responde: “Sofrimento.”


E nesse ritmo vão as crônicas. Para não ficarmos apenas nos episódios que relembram amigos que já se foram, há momentos que revelam humor e ironia, como na crônica “Assalto”, em que uma senhora, ao pronunciar a explosiva palavra diante do preço exorbitante do chuchu, numa feira livre, põe a rua em polvorosa.


Há crônicas de espírito bem carioca, como a que registra o aparecimento de dois operários num andaime, ante a janela do autor. Este oferece a eles um cafezinho, e logo descobre que um dos pintores é compositor. O homem entoa um samba, sobre o próprio andaime, e acaba muito aplaudido pelo público, as outras pessoas que aparecem nas janelas do prédio de escritórios.


Como vivíamos o início dos anos 1970, não poderiam faltar referências ao futebol, à copa do mundo, e à ditadura militar, que aparece várias vezes sofrendo crítica velada, como no último texto do livro, o poema denominado “Copa do mundo 70”: “e de repente o Brasil ficou unido / contente de existir, trocando a morte / o ódio, a pobreza, a doença, o atraso triste / por um momento de grandeza.”


O poder ultrajovem

Carlos Drummond de Andrade

Ed. Record, 287 páginas
Matéria publicada no JB online em 07/03/2011.