segunda-feira, março 31, 2008

Três histórias do tamanho do mundo

Por Elinete Oliveira

A primeira história de Tinha uma coisa aqui começa por um narrador em primeira pessoa, na verdade uma mulher; suas lembranças de infância são apresentadas como positivas, já que foram importantes no seu processo de formação. Ela precisará enfrentar um mundo complexo, cheio de desafios que, se não resolvidos, poderão transformar sua vida adulta num enorme fardo.
Os dois contos seguintes se diferenciam muito do primeiro. Pema, a personagem principal do segundo, tem uma vida passiva. Sabemos de suas lembranças, quando o narrador, um menino frágil que está sempre a observar o que vai à volta dela, diz que “[ela] viaja por entre as rachaduras de uma parede branca, sem vê-las.”
À medida que cada conto se vai desenvolvendo nosso interesse aumenta. A risada da personagem é comparada à fala de seu próprio avô quando ele diz que “mulher com dedão menor que o indicador tem característica de ser dominadora”. Pema, porém, não possui tal atributo físico. Fica-se sabendo que sua “risada [é] como a de um homem” que teria assim sempre “esse sentido de domínio sobre as mulheres.”
Pema, uma mulher que parte várias vezes devido a conflitos familiares e sempre retorna, é para o narrador, a tia que quebrou o tabu imposto às crianças sobre a existência de um deus onipotente. Quando já idosa, sentada no sofá e entregue a seu mundo interior, mostra-se resignada ante a incompreensão dos parentes que, durante a juventude, foram seus algozes.
O narrador acorda de suas lembranças e se vê diante de uma situação comum, a de massagear os pés de Pema. Revive as injustiças sofridas pela tia, como num filme. A mulher é forte: agüentou sozinha a vida na cidade com um filho na barriga, ao mesmo tempo em que sofria o desprezo dos familiares.
Outro momento importante no segundo conto é a incansável fadiga de uma barata, que tenta se proteger do esmagamento. A mesma fadiga poderia sentir um ser humano diante dessa corrida desenfreada pela sobrevivência, como a vida de Pema. Embora, como nos assegura o narrador, as baratas corram pela vida mais do que as pessoas, o avô de Pema nos é apresentado como um bravo que não fugiu da morte. Sua alma vive rondando a casa, com ar de alegria, porque morreu pelo motivo do que mais o deixava contente: a cachaça. A questão da existência é discutida e deixa muitas interrogações sobre o que seja uma vida feliz.
No terceiro conto, Tina sente saudade de um amor perdido, um homem chamado Léo. Ela nos dá a dica do que seria o amor verdadeiro – sem cobranças, somente anseios. Desse relacionamento, teria um filho, porém é mais ousada que Pema, ao decidir pelo aborto.
Todos temos medo, vivemos injustiças e amamos; tentamos sempre resistir, mesmo que tudo venha cair por terra.

Tinha uma coisa aqui
Ieda Magri
Ed. Sete Letras, 65 páginas.

domingo, março 16, 2008

A alegoria e o símbolo em duas narrativas de Murilo Rubião

A literatura, de modo geral, sempre se mostrou resistente ou avessa a qualquer tipo de definição. É comum nos depararmos com as seguintes questões: o que é exatamente o literário?; o que faz um texto tornar-se literatura?; será suficiente a definição de literatura como a língua trabalhada esteticamente, como queriam os formalistas russos? Durante a história dessa arte feita de palavras, a captura e definição de sua essência enveredaram por caminhos sinuosos, chegando-se muitas vezes ao seu conceito pelo lado negativo. Tornava-se literatura o texto que não se enquadrava nas classificações referenciais. Ainda não se coloca aqui a questão do valor, a questão do que é boa ou má literatura, ou mesmo quais as obras dignas de serem nomeadas literárias. O juízo de valor também tem variado através dos tempos e ainda hoje é um tanto incerto. Como exemplo nós, professores, às vezes enfrentamos com certo temor o seguinte dilema: quais das obras recentes devem ser trazidas para a apreciação e estudo na universidade e, de modo geral, nas salas de aula? Tememos equívocos quanto às escolhas. Às vezes, em meio ao clamor recente do público ou da crítica ante um novo autor, preferimos esperar, aguardamos o passar do tempo para que nos sirva como ponteiro a ajuizar o valor do novo.

As ramificações do literário ainda assim se mostrariam mais problemáticas. Se já era difícil, arriscada e fugidia a definição do que é ou não literatura, como adentrar o terreno específico? A literatura chamada de realismo mágico, realismo fantástico, ou realismo irrealista aqueceria o caldo das discussões.

Quando se fala em ficção, todo aquele que tenta encontrar sentido nas páginas que percorre, depara-se com um momento de hesitação. Vejamos, exemplifiquemos dentro da nossa própria literatura; atentemos o olhar a um livro relativamente fácil como “Memórias de um sargento de milícias”, de Manuel Antonio de Almeida. Logo no início da narrativa, ao percebermos o nascimento marginal de Leonardo (o filho) e seu conseqüente destino “irregular”, chegamos a “torcer” para que ele se volte ao caminho que entendemos como certo; na verdade o queremos bem sucedido, como esperamos aos heróis, sendo estes grandiosos ou pequenos (às vezes pode parecer paradoxal desejar a alguém diminuto a posição de herói – preconceitos que o classicismo nos legou). Mas o momento de desequilíbrio surge ao percebermos que o personagem não se enquadra no modelo de herói que nos ensinaram. Então, atirado ao destino traçado pelas ruas e pelos vagabundos locais, Leonardo se perde e nos faz também perder a esperança de vê-lo um dia bem sucedido. Há na obra o momento do desvio, da hesitação, o instante que podemos nomear de conflito. No final, este irá se resolver (ainda que de modo precário), mas durante boa parte da narrativa, somos espectadores vãos seguindo o herói (ou anti-herói) pelos caminhos tortuosos que a narrativa instaurou.

“Memórias de um sargento de milícias” e seu personagem principal nada ou pouco tem a ver com a discussão que desejamos estabelecer aqui a respeito do gênero fantástico ou denominado realismo irrealista. Mas, através dessa linha de raciocínio, não se pode classificar o realismo irrealista como aquele em que há apenas um momento de hesitação, um desvio. Pois a literatura é composta de desvios. O que se poderia dizer a respeito dos realismos irrealistas é que estes se instauram a partir da quebra de uma aparente verossimilhança “com o real”; um momento em que não existe uma causalidade explicável e aparente ao que nos é apresentado pela narrativa (TODOROV, 1975, p.31)[1]. Classificação também um tanto arriscada, porque aquilo que denominamos real é construído pelas subjetividades que o habitam.

Devido a esse terreno pouco seguro, desejamos trilhar outro, que talvez seja um tanto mais escorregadio. Tentaremos percorrer algumas páginas de Murilo Rubião – autor que optou por escrever toda a sua obra nesse viés discursivo propenso a ludibriar qualquer tipo de verossimilhança – por uma linha de leitura em que se jogue por um lado com a alegoria e por outro com o símbolo.

O texto sobre o qual nos tentaremos basear para desenvolver esse trabalho é “O segredo de Golem”, um dos capítulos que compõe o interessante livro O livro por vir, de Maurice Blanchot.


“O homem do boné cinzento”[2] se inicia com uma acusação feita pelo narrador. Nesse momento, já se estabelece de antemão uma ruptura na narrativa, apesar de ela mal ter começado.

Numa narrativa convencional, a normalidade é quebrada por algum acontecimento, o que fará um dos personagens – possivelmente o protagonista – ter que providenciar soluções para que ela seja restabelecida. Talvez um dos componentes do literário, no caso do gênero narrativo, seja o estabelecimento dessa complicação e sua respectiva solução, fato que levará o enredo adiante.

O que talvez acentue a originalidade dos contos de Murilo Rubião, antes mesmo do conteúdo surpreendente de suas histórias, seja esse início abrupto, surpreendendo o leitor desde a primeira frase, a qual não deixa de comportar um forte fator desestabilizante. Apenas no parágrafo seguinte nos é dada a situação. Tratava-se de um trecho de rua tranqüilo “o trecho mais sossegado da cidade” (p.11), até que surge um homem enigmático que, segundo esse narrador em primeira pessoa, desencadeará uma série de acontecimentos que mudará totalmente a vida não só desse narrador, mas também e, sobretudo, de seu próprio irmão.

A oposição – vida tranqüila versus vida mergulhada no caos – vai se instalar na narrativa de forma irremediável. Ainda no terceiro parágrafo da página 11, é-nos mostrado o movimento de caminhões que trazem a mudança do novo morador ao casarão que havia tempos estava abandonado; na verdade, o prédio de um antigo hotel. O movimento dos veículos indicia o antagonismo que vai pôr abaixo a paz que existia anteriormente. Mais uma vez se acentuam os conflitos: uma construção que jazia fechada, sem movimento algum, se contrastando com a idéia de que se tem de um hotel: um estabelecimento movimentado, pleno de hóspedes que se deslocam constantemente; aqui, o edifício se encontra abandonado. O ambiente calmo que resiste em determinadas localidades é rompido e nada mais será como antes. Os volumes do forasteiro como um tumor que surge do inesperado vão “empilhados na vasta varanda do edifício” (p. 11).

Até aqui temos um culpado, uma ex-rua tranqüila, um homem estranho e sozinho que se estabelece no local.
A partir do quarto parágrafo, surge segundo o narrador “Meu irmão Artur, sempre ao sabor de exagerada sensibilidade” (p.11). Esse irmão, na verdade, passa a ser o “ator principal” do espetáculo. É ele que vai observar atentamente o homem que chega para habitar o casarão, é ele que a princípio abastecerá o narrador sobre o que acontece com o novo morador, é ele que antecipa os acontecimentos ao afirmar que “as casas começavam a tremer e apontava-me o céu, onde se revezavam o branco e o cinzento” (p. 11), imagem antecipatória da cor do boné usado pelo futuro morador. É importante observar que o narrador qualifica o irmão de pessoa de exagerada sensibilidade, fato que já nos pode adiantar algum desequilíbrio vivido por este, que vai ser na verdade o interlocutor de tudo que acontecerá na narrativa.

Os contos de Murilo Rubião, como outros analistas já observaram, não comportam explicações que transitam numa lógica realista, em que os fatos são esclarecidos e resolvidos no término do relato. Antes disso, apesar de os personagens se mostrarem até mesmo suscetíveis a determinados desequilíbrios, sujeitos a algumas enfermidades, eles serão atropelados pelos acontecimentos, porque não se poderão dar explicações lógicas ou coerentes a episódios como à metamorfose a que será submetido o novo morador e à conseqüente também transformação que Artur sofrerá. Mas não antecipemos os fatos.

Na página 12, o narrador nos apresenta algumas características de si próprio: revela-se como alguém que possui uma “mania de contradição” e diz que “Daquela vez, a mania de contradição me arrastara a um erro grosseiro” (p. 12). Murilo Rubião cria para esse conto um narrador cético, irritadiço com o próprio irmão, predisposto a não acreditar em suas prédicas e a não lhe seguir os passos. Mas o desenrolar da história vai mostrando-nos alguém que pouco a pouco se deixa levar por esse “outro”, que é seu irmão Artur.

Uma observação interessante, que se pode fazer a partir dessa narrativa, é a respeito da formação da personalidade, ou mesmo características dela. O século XX foi um período em que as teorias psicanalistas se impuseram; inicialmente através de Freud, depois, por meio de seus seguidores, entre eles Jacques Lacan. Sabemos que este autor desenvolve um estudo peculiar sobre a formação do “Eu”, diferenciando-o do que chama de sujeito. Para Lacan, a constituição da personalidade – ou do “Eu” – é semelhante à psicose paranóica; o autor chega a dizer que uma e outra são a mesma coisa. Explica que a personalidade se forma através do processo de alienação, isto é, a criança, até em torno dos dois anos de idade, se espelha na imagem que pode ser a sua ou de um "outro". Tal fenômeno, na linguagem lacaniana, se denominaria estádio do espelho. Teríamos o processo de formação do indivíduo baseado em alguma coisa que se encontra fora dele; a singularidade construída a partir de um processo que vem de um “outro”, na verdade um processo de alienação (SAFATLE, Unesp, 2006).

No conto de Rubião, através de Artur, podemos perceber esse fenômeno. Em momento algum há qualquer preocupação dele com o próprio “Eu”, ou com a própria vida, ou a vida do irmão. Ele, indiferente a si, estará sempre preocupado com o “outro”: Anatólio, o homem do boné cinzento. A vida do personagem é o objetivo da vida de Artur, que passa a vigiá-lo constante e continuamente, chegando ao termo de contaminar o irmão com seu modo de vida, capturado in extremis pela imagem do vizinho. Teríamos, assim, dois personagens que em momento algum se situam como sujeitos, mas vão a reboque de um “outro”, mergulhando num processo paranóico. Quando o personagem se torna uma bolinha negra, no final, a ponto de ser recolhido pelo irmão, não é difícil perceber a nulidade do sujeito, sujeito que entra num processo de reificação. A leitura psicanalítica desse conto põe em destaque a questão premente de todo o século XX, que é a da fragmentação, alienação e anulação do indivíduo, questões caras não só à psicanálise, mas também às vanguardas européias.

O narrador em primeira pessoa é uma boa opção utilizada pelo autor, porque acentua a característica de unilateralidade da narrativa. Além de hiperbolizar o contágio que ele sofre através do irmão, mostra que a vizinhança também não passa imune ao acompanhar o dia-a-dia do novo morador: “Os seus hábitos estranhos deixavam perplexos os moradores da rua” (p. 12).

O terceiro parágrafo da página 12 apresenta Artur já totalmente transtornado, tendo o novo vizinho se tornado alvo de sua loucura: “A sua excitação crescia à medida que se aproximava o momento de defrontar-se com o solitário inquilino do prédio vizinho” (p. 12). O que se pode ver como enigmático ao mesmo tempo se mostra revelador. É o que acontece quando reparamos o personagem a alertar o irmão (o narrador): “– Olha, Roderico, ele está mais magro do que ontem!” (p. 12) Ao observá-lo continuamente, Artur percebe que pouco a pouco o vizinho vai desaparecendo. Esse desaparecimento, no entanto, não seria também um reflexo da gradativa extinção da própria personalidade do observador? O viver tendo como motivo apenas a observação de um “outro”, tendo sido deixado de lado o próprio “eu”, na verdade revela que o personagem se tornou o “outro”, passando a acompanhá-lo não só em todos os passos, mas também em todas as deformações e metamorfoses.

Roderico ainda se agarra ao que tem de amor a si, ou à própria personalidade: “[...] dizia que não me aborrecesse, nem se ocupasse tanto com a vida dos outros” (p. 12)

No segmento seguinte, há o aparecimento de uma mulher, também enigmática. É vista apenas duas vezes: ao chegar e ao partir.

Na obra de Murilo Rubião, a presença e a companhia da mulher – quando simboliza o amor ou mesmo a tentativa de realização dele – são fugazes, não correspondendo aos desejos do outro; a relação normalmente não se concretiza e o destino do homem é viver mergulhado em extrema solidão. Ela acaba por se tornar objeto de sofrimento e de incompletude. Parece que, para o autor de “O homem do boné cinzento”, a tentativa de diálogo entre os seres humanos – sendo esses diálogos de qualquer espécie – não é viável. A concretização da relação amorosa, o que se poderia classificar como tentativa suprema de entendimento e correspondência num processo dialógico, sempre se corrói e tudo o que acontece é que há sempre uma partida após cada momento de chegada.

É o que se dá nesse trecho do conto. Uma mulher bonita chega, o que contrasta com a afirmação inicial de que Anatólio é um celibatário; aparentemente se pensa que ela lhe vai fazer companhia. A personagem, entretanto, desaparece por completo dentro do próprio casarão (seria outro indício do desaparecimento futuro de Anatólio?), para surgir apenas três meses depois e partir a pé e sozinha. Talvez aqui, tivéssemos mais uma vez a frustração de todo e qualquer tipo de relacionamento. O ser humano estaria destinado à solidão e ao desaparecimento.

No penúltimo trecho do conto, após a partida da mulher, nos deparamos com o narrador já totalmente transtornado pela observação do vizinho. Como mencionamos no início desse estudo, agora é ele que se vê numa ânsia semelhante à de Artur. A presença desse “outro” assaltou-lhe o espírito, e o personagem não tem outra preocupação: “Eu não tirava os olhos do homem. Sua magreza me fascinava. [...] Anatólio tornara-se minha única preocupação.” (p. 14)

A seguir, é o momento da transparência. O homem observado além de emagrecer continuamente torna-se transparente a ponto de os dois observadores poderem vislumbrar o que se encontra através dele. No mundo alegórico de Murilo Rubião, o que significaria essa invisibilidade? Mesmo que tentemos alguma resposta, adentraremos a terreno pantanoso, de difícil caminhada. O que se pode insinuar, mesmo que timidamente, seria talvez que tal fato expressasse a insignificância da condição humana, fragilidade e fugacidade da vida, vida essa capaz de se manter por um fio como também possível de desaparecer, deixando como vestígio apenas os objetos sem função aparente.

No último trecho da narrativa, os dois irmãos testemunham o desaparecimento de Anatólio. Tal acontecimento, esperado por ambos os espectadores, se dará de forma apoteótica, em meio a espasmos, jato de fogo “que varreu a rua” (p. 15), vômito e um incêndio. Não basta a Murilo Rubião fazer seu personagem simplesmente desaparecer, é necessário como preparação para esse desaparecimento uma espécie de show; talvez isso represente a culminância da insignificante e enigmática passagem do homem sobre a face da Terra. Mas eis que ainda nos resta um sobressalto: Artur também sofre uma assustadora metamorfose: sob o olhar perplexo do irmão, transforma-se em uma bolinha negra.

A literatura que contempla o absurdo comporta algum tipo de significação, apresentando questões em forma de símbolos ou alegorias, já que não seria possível uma literatura só de significantes. Quando procuramos nela, porém, a decifração dessa simbologia, sentimos o terreno não tão seguro. Vai-se para um lado, escorrega-se para o outro. Isso sem querer diminuir as qualidades do autor, muito pelo contrário, porque é essa ambigüidade proposital que dá ímpeto a tal movimentação.

Talvez, uma das possibilidades de leitura desse conto, além da questão da formação da personalidade – como tratamos acima –, seja a falta de sentido da própria vida, onde os seres humanos são extremamente sós, perdendo-se qualquer possibilidade de diálogo, extinguindo-se todos os meios de comunicação ou relação entre os homens.

O mais interessante, porém, em lugar de buscar uma significação, uma interpretação da diegese, mesmo apontando-a como alegórica, seria constatar a impossibilidade de interpretá-la ou de nomeá-la.

Maurice Blanchot em seu Livro por vir[3], no capítulo “O segredo do Golem”, desenvolve um ensaio sobre o símbolo, em que o situa e distingue as diferenças dele em relação à alegoria[4]. Começa o autor “A palavra ‘símbolo’ é um vocábulo venerável na história das literaturas” (p. 125). Adiante continua: “O pensamento é simbólico. A existência mais tacanha vive de símbolos e lhe dá vida.” (p. 125) No segundo parágrafo desse texto, Blanchot já diz aonde quer chegar ao comentar o que poderia dizer um autor quando dizemos que sua obra é simbólica:

“pode ser que ele [o autor] aí se reconheça e se deixe lisonjear por esse belo vocábulo. Sim, é um símbolo. Mas, nele, algo resiste, protesta e secretamente afirma: não é uma maneira simbólica de dizer, era sempre real.” (p.125)

Blanchot investe no terreno de que o símbolo tem por meta ele mesmo, não tendo qualquer pretensão que não seja o real, isto é, o que é apresentado na obra; mas, ao mesmo tempo, o que se encontra muito longe dela. A seguir desenvolve seu raciocínio sobre a alegoria, com o intuito de diferenciá-la do símbolo.

“A alegoria não é simples. Se um velho com uma foice significa o tempo, e uma mulher sobre uma roda significa a fortuna, a relação alegórica não se esgota nessa única significação. A foice, a roda, o velho, a mulher, cada detalhe, cada obra em que a alegoria apareceu, e a imensa história que aí se dissimula, e sobretudo o modo de expressão figurado, estendem a significação a uma rede infinita de correspondências. [...] A alegoria desenvolve até muito longe a vibração emaranhada de seus círculos, mas sem mudar de nível, segundo uma riqueza que podemos classificar de horizontal: ela se mantém em seus limites de expressão medida, representando, por algo que se exprime ou se figura, outra coisa que poderia ser expressa, também diretamente.” (p. 126)

A seguir, o autor desenvolve sua própria concepção a respeito do símbolo:

“O símbolo tem pretensões muito diferentes. De imediato ele espera saltar para fora da linguagem, da linguagem sob todas as suas formas. O que ele visa não é, de modo algum, exprimível, o que ele dá a ver e a entender não é suscetível de nenhum entendimento direto, nem mesmo de qualquer tipo de entendimento. O plano de onde ele nos faz partir é apenas um trampolim para nos elevar, para nos precipitar, em direção a uma região outra à qual falta todo o acesso.” (p. 126)

Esse acesso que, muitas vezes, não conseguimos encontrar na leitura de Murilo Rubião. Seriam as epígrafes um acesso ou elas estariam presentes para nos desviar ainda mais de qualquer tipo de significação? Como pudemos discutir nas aulas, durante o curso[5], a palavra bíblica já é portadora de uma imensa carga de mistério. Dentro das próprias escrituras, não há consenso sobre o que significa. As expressões bíblicas e suas respectivas significações acabam por se tornar questão de crença. Trazidas para o universo da literatura, tais expressões não deixariam de se tornar ainda mais enigmáticas. Outro ponto: as constantes metamorfoses a que são submetidos os personagens rubianos. Seria um tanto simplório afirmar de forma absoluta o que significa o apoteótico desaparecimento de Anatólio, como que num festim, entre fogos de artifícios; outra explicação temerosa seria assegurar sentido ao acompanhamento que Artur lhe proporciona, também desaparecendo e se transformando em uma pequena bolinha negra. Seria por demais diminuir a narrativa com possibilidades de leitura que a conduzisse de volta ao universo lógico e racional a que estamos acostumados e condicionados. O símbolo com todo o seu grau de arbitrariedade se espraiaria como a categoria mais reluzente em meio ao opaco balburdio.

Com a alegoria, ainda assim estaríamos procurando retirar véus que nos conduziriam a algum tipo de esclarecimento. Esta figura, como mencionamos através das palavras de Blanchot, é um recurso da linguagem que visa o ato de representar; por outras palavras: a alegoria nada mais é do que um tipo de linguagem figurada.

O conto que acabamos de analisar, dado a seu caráter ambíguo, enigmático, de transcurso e final arbitrários, contrafeito a todas as regras de verossimilhança, teria como bom termo a classificação de simbólico. Por quê? Porque o símbolo tem a arbitrariedade como característica e em conseqüência não tem o dever de ser decifrado, como acontece à metáfora, ou à alegoria. A decifração do símbolo estaria mais próxima à crença, ou à paixão (Blanchot, 2005, p. 128); ele apenas poderá significar alguma coisa por convenção, tal como o vocábulo, ou melhor, como o signo lingüístico.

Como já estudamos a constituição da semiose literária e a classificamos como um sistema lingüístico de significação em segundo grau, o símbolo transitaria num grau de arbítrio ainda mais avançado. Teríamos aqui de lidar com alguma coisa incômoda, algo de decifração quase impossível: grupo de palavras organizado como texto literário que está elevado à potencialidade máxima de arbítrio. Quando falamos em literatura do absurdo, ou realismo irrealista, não seria avançar demais ao estendermos em mais um grau todo esse arbítrio. Assim, a literatura a princípio não escaparia de sua característica interna, tendo como referente o real instaurado por ela mesma mas, para logo depois, variar de tom dentro da sintaxe não estabelecida pelo autor, mas pelo leitor, que com toda sua capacidade de crença e paixão, nomeando e convencionando símbolos (que escorregam quando beiram a esterilidade) trafegaria no itinerário dessa intensa aventura simbólica.

Para estender a questão simbólica e sua conseqüente classificação como algo sujeito a crenças e convenções, podemos dar como exemplo o caráter simbólico e arbitrário dos idiomas, ou mesmo de qualquer outro tipo de linguagem. É consenso entre os especialistas da linguagem o caráter arbitrário do signo lingüístico, o aspecto simbólico de toda e qualquer linguagem, sendo o ato de nomear fruto de pura convenção.


Outro conto de Rubião, “Marina, a intangível”[6], também é digno de nota à hipótese da aventura do símbolo.

Essa narrativa, também em primeira pessoa, apresenta-nos um narrador atormentado, que procura por socorro. Alguém que está na mais absoluta solidão, no mais profundo estado de desamparo, não encontrando saída nem mesmo na bíblia, crente que ele demonstra ser. Em determinado momento, chega a afastar o livro sagrado de sua frente. Após perceber que algo está para acontecer, esse personagem, ainda obscuro para nós, encerra o pequeno parágrafo inicial com a frase enigmática: “Certamente seria a vinda de Marina”.

Essa espera por alguém que possivelmente emanará alguma luz e levará o personagem ao estado oposto àquele sob o qual jaz, juntamente com a presença do livro sagrado revelam as características religiosas do episódio, que ainda nos oferece de acréscimo a vinda de Marina como a chegada de um messias, de alguém que traria algum tipo de revelação.

Um clima noturno se instala em contraste à expectativa de luz que o personagem aguarda.

É interessante observar, já que aqui tratamos do símbolo, que é a religião a portadora talvez da maior parte deles. Veja-se o livro sagrado, veja-se essa Marina que pouco a pouco, vai se mostrar na figura de uma santa, veja-se a iconografia cristã nos objetos ligados ao culto dela. Ao atingirmos o clímax da narrativa, daremos conta de que toda essa simbologia se desloca a outro possível símbolo, a poesia; que, da mesma forma, vai apresentar-se problemática, ambígua, escorregadia; visto que nem escrita vai se dar.

Percorramos o texto, no entanto, como num longo e descansado passeio, onde seja possível ora caminhar, ora parar para admirar uma bela paisagem, ora bebericar um pouco de água fresca, para que, refrigerados, possamos seguir em frente.

O conto elenca outros elementos religiosos como a referência à capela dos capuchinhos e a uma oração, de que o narrador se utiliza como que para “reprimir a angústia” (p. 25).

O elemento primeiro que desestabiliza a narrativa arremessando-a ao árido terreno do realismo irrealista é o momento em que esse personagem que nos conta a história diz a respeito das “duas pancadas longas e pesadas” que seriam de um relógio da capela: “Sem me impressionar com o fato de a capela não possuir relógio [...]” (p. 25). Observamos algo que se anuncia, mas sem a presença de seu corresponde físico; há o som das duas pancadas, mas o que soa? Temos o anúncio de algo que está por vir? O que, na verdade, significa o soar de um relógio inexistente? Ainda é cedo para se ter uma resposta. Se é que a teremos. Ao mesmo tempo percebe-se o espaço em que o personagem se encontra e o que faz. Trabalha numa redação de jornal e permanece sozinho no plantão da noite.

Nesse momento, a narrativa já nos apresenta algo interessante, que contrasta ao elemento noturno em que está encerrada: as folhas brancas de papel. A seguir, há a revelação da esterilidade desse autor, cronista noturno de um jornal, alguém que não consegue criar, não consegue escrever o que realmente deseja, isto é, não consegue simbolizar. Tudo que produz são “poucas linhas desconexas” (p. 26)

Daí em diante, todo o conto se forma através da impossibilidade desse homem escrever uma história, ou qualquer matéria que seja, vide as folhas amontoando-se no cesto. Ele chega a se desesperar: “Para vencer a esterilidade, arremeti-me sobre o papel, disposto a escrever uma história, mesmo que fosse a mais caótica e absurda” (p. 26) Num processo que diz de esterilidade, se considerarmos esse narrador o autor do texto, veremos que mesmo assim esse texto se vai construindo. A escritura emergente é, portanto, fruto da não-história, ou seja, da própria impossibilidade de escrevê-la (ou de simbolizá-la). Mas a narrativa se vai construindo e avança. A literatura, aqui, torna-se processo, ou seja, um texto metaliterário, fala de si mesma, de seus próprios limites e de suas impossibilidades.

Voltando à questão do que escrever, o personagem retorna à bíblia, onde diz ter encontrado a solução:

“Poucas páginas havia lido e descobri o assunto procurado. Iria falar do mistério de Marina, a Intangível, também conhecida por Maria da Conceição.” (p. 27) Sua alegria, no entanto, dura pouco e o que ele acreditava fácil lhe acaba escapando. Surge então um desconhecido, que diz o motivo de estar ali: “– Recebi o seu recado, José Ambrósio, aqui estou.” (p. 28)

A introdução desse novo personagem vai trazer-lhe esperança. De início, recusa a presença e a ajuda do desconhecido, mas, adiante, acaba cedendo. Suspeitamos que esse narrador tenha enlouquecido, ante o que nos revela o recém-chegado, que resiste às primeiras negativas quanto aos versos encomendados pelo próprio jornalista: “– Encomendou-me sim. Talvez não se recorde porque o pedido que me fez é anterior à sua doença.” (p. 28)

A seguir, sentimos a recusa da criação literária e da própria representação simbólica quando ouvimos mais uma vez a voz do narrador: “Morra a poesia, morram os poetas.” (p. 29) Afirmação nada sutil, mas reveladora, talvez por ser a poesia o processo máximo de arbitrariedade da língua. Pode-se até mesmo dizer que a verdadeira subversão só é possível na literatura, onde mudar significados e sentidos desestabilizaria talvez o pouco de possibilidade que o ser humano tem para manter o mundo como ordem ou organização. Aqui se esvairia o acordo tácito que existe entre os usuários dos idiomas de modo geral, tornando a representação estética através da língua como algo de extrema potência.

A expressão do interlocutor: “– São versos para Marina, a Intangível”, funciona como passe de mágica para que José Ambrósio recue e caia de joelhos. A analogia que existe entre esse aposto “a Intangível” com a própria poesia é importante ser assinalada. A mulher, praticamente elevada à categoria de santa, assume para o personagem altura inatingível, assim como o próprio ato criador, ao qual ele se mantém estéril.

Daí em diante, há toda uma aventura para que os versos se tornem realidade, desde gestos do homem recém-chegado como a percepção do narrador de que a poesia realmente acontece, apesar de ele não conseguir simbolizá-la, ou registrá-la.

Mas a representação acontece, independente da vontade de ambos, num desfile delirante e surreal em que Marina aparece em meio a uma procissão silenciosa e ao mesmo tempo trepidante, meio santa (trazida em um andor), meio mulher (o vestido amarfanhado e rasgado, as coxas à mostra, as olheiras muito negras e os lábios pintados). Nessa festa de delírios, em que a própria narrativa oscila em temperatura alta, há mais uma vez a potencialização de uma simbologia que intencionalmente beira o inexprimível. A representação artística, no caso a literária, surge na imagem de uma mulher que, ora beira o sublime, ora o erótico, não nos dando tempo ou não nos permitindo – como acontece ao personagem que a observa – fixá-la por mais do que alguns segundos. E quando a festa termina e ele se vê só, no terreiro, não deixa de nos informar: “Sabia, contudo, que o poema de Marina estava composto, irremediavelmente composto. Feito de pétalas rasgadas e de sons estúpidos.” (p. 33)

Poder-se-ia dizer que esse conto, com muitos componentes que transitam no que costumamos chamar de realismo irrealista, talvez pudesse ser chamado de alegórico, já que o surgimento de Marina seria a representação do momento em que a própria arte encontra sua possibilidade de realização. Teríamos de fazer, no entanto, uma ressalva, por paradoxal que nos possa parecer. Para que a alegoria se estabeleça faz-se necessário a tessitura de toda uma cadeia simbólica. Vejamos quais são esses símbolos.

Em primeiro lugar há algumas palavras ou imagens religiosas, como a bíblia, os capuchinhos, e a prece. Por que podemos chamá-los de símbolos e não de alegoria? Porque os símbolos estão ligados a uma convenção, a uma crença; e nada melhor do que a religião para utilizá-los. A própria Marina, quando surge num andor, rodeada de outras mulheres e escoltada por anjos e padres está numa posição de destaque, como cabe às pessoas santificadas. Pode-se saber disso porque se convencionou aplicar àquele que vai num andor proeminência sobre os outros.

Em segundo há os símbolos mundanos; um deles é o relógio a marcar as horas através de badaladas, cuja inexistência é constatada pelo personagem-narrador. A questão principal, aqui, não seria essa, mas outra convenção: o tempo. O passar do tempo, não o passar dos dias e das noites e das estações do ano, mas o tempo como objeto linear e convencional, marcado por uma linguagem estabelecida pelos homens, um calendário. Este também pertence ao mundo das convenções; também é simbólico.

Um estudo sobre o tempo poderia ser feito à parte, o que não é nosso objetivo nesse trabalho. O tempo transcorre de diversas formas durante a narrativa e, em alguns momentos, poderíamos associá-lo a imagens, devido o ambiente noturno vivido pelo personagem. Há a marcação desse tempo através das badaladas de um relógio inexistente – como já nos referimos acima –, do surgimento do personagem que diz trazer os versos para serem publicados, e do diálogo que este estabelece com o narrador (o processo dialógico revela a passagem do tempo). Só então é que vislumbramos a possibilidade (reparem, digo possibilidade) de ele, o narrador, não estar delirando. Adiante, quando há o aparecimento de Marina, em respeito ao caráter mágico da aparição e representação, temos a desmistificação do tempo convencional para o elevarmos à categoria máxima de simbólico. O que demonstra que a viabilidade da representação artística também se daria num tempo fugidio, que escaparia a qualquer parâmetro de convenção ou medida; pois o desfile de uma infinidade de componentes tendo vários obstáculos a serem superados não se poderia dar num tempo tão exíguo a ponto de se comportar num piscar de olhos de quem nos narra.

A santa/mulher que surgiria como algum tipo de alegoria passa a ter lugar na categoria arbitrária do símbolo porque – se depende de uma questão de crença, de ritual, e até de paixão, se está sujeita a uma linguagem que precisa levar em conta tantos fatores significantes – pertence a um universo em que as convenções, num processo anterior de nomeação, passaram a dar significação (a criar uma linguagem própria) ao que era, por natureza, impossível de se traduzir.


Como contribuição às pesquisas sobre os realismos irrealistas, a abordagem do símbolo e da alegoria possibilitada por Blanchot só tem a enriquecer as apaixonadas discussões sobre esse assunto. Sem querer diminuir ou refutar teses consagradas de autores importantes (Todorov etc.) que se esmeraram no aprofundamento teórico referente a esse gênero, a lembrança de que vivemos num mundo simbólico nunca é demasiada, apesar de nos arremessar ainda de modo mais vigoroso à consciência da fragilidade de todos os nossos conceitos relativos ao mundo da cultura. Se tudo é símbolo, sempre estaremos pisando num terreno que jamais será seguro. Murilo Rubião, de certa forma, não deixou imune esse tipo de discussão e sua conseqüente representação. O realismo irrealista praticado pelo autor, que quase não nos permite qualquer referencialidade (aqui entendida como tradução à lógica convencional dos estudos científicos), atestaria o arbítrio de toda e qualquer linguagem.


Referências bibliográficas

RUBIÃO, Murilo. O homem do boné cinzento. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

RUBIÃO, Murilo. A casa do girassol vermelho. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

BASTOS, Alcmeno. Os realismos irrealistas na literatura brasileira contemporânea. Apostila utilizada em sala de aula.

BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

SAFATLE, Vladimir. A paixão pelo negativo: Lacan e a dialética. São Paulo: Unesp, 2006.

TODOROV, Tzevtan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara C. Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975.


[1] Na verdade, Todorov não fala em realismo irrealista, ele busca a conceituação do fantástico em oposição a outros termos como maravilhoso e estranho.[2] RUBIÃO, Murilo. O homem do boné cinzento. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 11-15.[3] BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.[4] É importante observar que Blanchot, na parte final do ensaio, faz comentários à narrativa A invenção de Morel, de Bioy Casares, cujo conteúdo também pode ser denominado de realismo irrealista.[5] Realismos-irrealistas, ministrado pelo Professor Doutor Alcmeno Bastos no segundo semestre de 2007, UFRJ, Faculdade de Letras.[6] RUBIÃO, Murilo. A casa do girassol vermelho. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 25-33.