quarta-feira, maio 17, 2017

Queridos leitores, embora não esteja postando novos textos aqui, agradeço o grande número de visitantes ao blog. Creio que a boa literatura não envelhece, e os livros sobre os quais escrevo fazem parte deste universo. Continuo publicando resenhas no Jornal Rascunho, que podem ser acessadas através do site do jornal. Ao mesmo tempo, há três livros meus no mercado: Magalhães de Azeredo, série Essencial, editado pela Academia Brasileira de Letras; Estrangeiros, o anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção, editora Ibis Libris; Apostas Perigosas, editora Opção, este um livro juvenil que frequenta o gênero policial. Obrigado, abraço a todos.

terça-feira, julho 14, 2015

Passageiro do existencialismo

O outro lado da sombra se destaca pelo duplo criado na relação entre dois irmãos em perene conflito

À literatura não cabe qualquer tipo de missão. Caso se queira atribuir-lhe alguma funcionalidade, esta se caracterizaria pelo ato de levantar questões, ação essencial para o ser humano exercer a reflexão. É bom dizer que mesmo fazendo o inventário das questões humanas, a literatura não tem o dever de respondê-las. Se a literatura exercita a reflexão, está consequentemente estimulando a imaginação, direito essencial do homem à liberdade. Privar o ser humano da imaginação seria privá-lo da liberdade. Talvez, por isso, sempre será muito difícil substituir a literatura por qualquer narrativa que privilegie o audiovisual.
O outro lado da sombra, de Mariana Portella, é um romance que envereda pela reflexão ao narrar parte da vida do personagem Soren, um italiano em constante crise familiar e existencial. O nome do protagonista não nega a vinculação do livro ao filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855). Filho de pai bem-sucedido financeiramente, que desaparece num acidente aéreo, ele herda a sociedade de uma empresa, na qual não consegue adaptar-se, resolvendo então viajar por alguns países, entre eles a Irlanda e a França.
O livro também traça, até certo ponto, a trajetória de Carlo, irmão mais novo do protagonista. Este mergulhado numa vida errante, ligada à criminalidade. Ambas as trajetórias cruzam-se em diversos momentos da narrativa, o que não deixa de causar prejuízo a Soren.
Narrado em primeira pessoa, o romance é ambientado na Europa, atestando a desterritorialização da atual literatura, inclusive da brasileira. Todo autor relata, na verdade, a própria experiência, e muitas vezes ela se encontra distante de seu país de origem, talvez este seja o caso da autora. Tal tipo de narrativa pode soar um pouco artificial apenas no princípio, pouco a pouco entramos na trama e constatamos que a literatura não possui nacionalidades. O mais importante neste livro, no entanto, é o duplo criado em função da relação entre estes dois irmãos em perene conflito. Na literatura de língua portuguesa, há exemplos muito pertinentes, entre eles, Esaú e Jacó, de Machado de Assis e, mais recentemente, Dois irmãos, de Milton Hatoum. A partir do duplo Soren e Carlo, desenrola-se o conflito existente no romance. Outro ponto digno de ser ressaltado é a família contemporânea, sempre dilacerada, com seus integrantes mergulhados na mais profunda solidão. Talvez a solução seja recorrer aos amigos, muitas vezes mais próximos do que os parentes sanguíneos. Isso também ocorre no romance. Há também Laura, uma ex-namorada de Soren. Ela faz de tudo para conquistá-lo; ele, porém, a todo momento tenta afastar-se dela.
A discussão sobre a morte e sobre o suicídio não escapa a Mariana Portella, deixando sequelas não só no protagonista, mas também nos outros personagens, e também no leitor. O que faz o ser humano perder a vontade de viver? A existência é inviável, sem sentido algum? Qual a postura necessária em relação à morte e à certeza de que somos finitos?
Fracasso existencial
O livro de Mariana Portella constata o fracasso do projeto existencial empreendido pela pós-modernidade. Apesar dos bens materiais e espirituais, da arte e do consumo possível à classe alta e à parte da classe média, o ser humano sente-se vazio, sem esperança, temeroso. A saída seria o amor, mas até este não se apresenta, ou quando surge mostra-se vazio de significado. O ser humano acaba por não mais possuir qualquer sentimento de culpa, tornando-se, entretanto, a maior vítima de si mesmo. A história flerta em algum momento com a religiosidade. Soren narra uma conversa que, na infância, travou com um padre:
Quando pequeno, durante o catecismo, perguntei ao padre se ele realmente acreditava na Bíblia, respondeu-me como nunca teria imaginado. “Respondo com outra pergunta, caro Soren, por que motivo você deveria não acreditar?” Olhei-o sem responder e ele prosseguiu: “Você vê, Soren, a esta pergunta ninguém encontra jamais a resposta, e sabe por quê? Porque não há! [...] Crer é sinônimo de pensar, refletir, e daquilo de que mais gosto: imaginar. Você imagina que na sua vida, quando acabar as baterias, o depois não será escuro, mais luz, menos não preto, mais branco. E não descuide disso, pois pode imaginar o Éden”.
Talvez aqui a autora inclua a arte e por extensão a literatura como possibilidades para o ser humano. Se a imaginação é uma das razões para se crer, nada melhor do que contar histórias que nos apontem alguma saída.
O livro também entra pela via do realismo fantástico quando Soren, tal qual Ulisses (o de Homero), vai dar no aparente mundo dos mortos. Não quero dizer com isso que adianto o desfecho da narrativa, muito pelo contrário, apenas próximo ao final o leitor descobrirá a função desta parte do livro. Quem procura nacionalismos na literatura talvez, neste momento, identifique o caráter latino-americano desta novela de ambiência europeia. O que há de mais positivo, acima de tudo, é o domínio da linguagem, seguido pela construção das personagens.
“‘Meu amigo, você não está morto. Por isso pode ter sentimentos e aproveitar os seus sentidos’. Ouvir aquelas palavras fez-me esquecer tudo por um momento, senti-me leve, além do quarto escuro e da parede suja na qual apoiava as costas.” O trecho, além de exemplificar a viagem mencionada no parágrafo anterior, atesta a filosofia existencialista. Ao ser humano é possível todas as experiências, inclusive a de experimentar a morte. A passagem revela a vinculação da narrativa a um universo que poderia ser o do delírio ou o de um vislumbre espiritual. Mas a autora não nos dá a resposta, cabe ao leitor decifrar este enigma, se é que ele permite tal empreitada.
Mas, enfim, o que vale ao se falar de literatura é a linguagem, é ela que carrega todas as possibilidades de enredamento, e a autora sabe trabalhá-la como uma esmerada artífice. Na apresentação, Nélida Piñon diz que Soren, este “Kierkegaard moderno [...] encara as angústias de seu tempo. Todos partícipes de um cenário perturbador e ilusionista, que oscila entre a magia civilizatória e um voluntarioso niilismo”. Ousaria dizer que Soren (o do romance) tende mais para o niilismo do que pela magia civilizatória, e o que faz sobressair o talento da autora é a linguagem, que nos chega no tom exato, incluindo as soluções encontradas em passagens que se afiguram como becos sem saída. O personagem de índole europeia acaba por perder-se num caricato niilismo. No final, há uma tentativa de salvá-lo, o que poderia parecer uma mancha romântica, ou, quem sabe, a tentativa de encontrar um lugar que se sabe inexistente. Não por vivermos num período de crise ou de superação das utopias, mas por ser característica da condição humana. Mais uma vez é a construção linguística que sai ganhando, como diz a autora pela voz de Soren: “rasguei-a [a carta] e joguei-a no meio dos trilhos. Quando o trem partiu, alguns pedaços levantaram e voaram pelo ar caindo perto de mim. Dei um chute, afastando-os dali. E de repente o mal-estar havia sumido. Estava em paz comigo mesmo”. Na verdade, não é um chute que afastará a dor de existir. Toda prenúncio de solução também não passará de ilusório. O outro lado da sombra permanecerá mais sombrio do que nunca, e o bem-estar de Soren é passageiro. A linguagem — e por extensão a literatura — é que leva à possibilidade de reflexão sobre a existência. Apenas isso faz o ato de existir perene.

A um passo do abismo


Dez centímetros acima do chão, de Flavio Cafiero, é um livro constituído de quatorze contos, todos bem diversos entre si, mas a força narrativa de cada um deles e as questões que podem desencadear tornam o livro homogêneo. Apesar de vivermos um momento em que a narrativa curta tornou-se subestimada para muitos editores, o texto de Cafiero é bem-sucedido em algumas inovações, sobretudo no aspecto formal. Como temática, seus enredos apresentam na maior parte a perspectiva do abismo, prestes a levar de roldão todos os personagens. E que tome cuidado também o leitor. Uma das razões da boa literatura é a capacidade de surpreender e de tornar nova cada questão, apenas pelo modo como é colocada. Observemos isso em cada um dos contos.
No primeiro, Estudos recentes, o narrador informa-nos sobre uma experiência de busca do prazer decorrente de certo namoro com a morte, “é que a baleia chega a aguentar noventa minutos sem precisar buscar oxigênio na superfície. Não desafia a vida, não é nada disso, brincar com as fronteiras é um prazer genuinamente humano”. Todo o desenrolar da narrativa apresenta o personagem discutindo a questão enquanto a mulher está submersa e sem poder respirar. Ele vai desfiando uma história comprida, numa espécie de diálogo. A passagem do tempo provoca nele uma excitação cada vez maior e mostra que a experiência não está necessariamente relacionada a quem vive tal momento, mas também ao ato de expor o outro ao perigo e depois ouvir sua experiência-limite.
O segundo conto, O atirador de facas, mescla culinária com uma vingança. Numa relação homossexual, aquele que não cumpriu a promessa é contratado anos depois para preparar um jantar. No desenrolar de sua tarefa, descobre o ex-amigo que se sente logrado, uma pessoa doente e perigosa. Um dos aspectos muito interessante neste conto é de natureza formal. Em notas de rodapé há um contra-conto, que dialoga e complementa a história principal.
Cão é outra narrativa que aborda o universo homoerótico. Há dois homens que se entreolham e aparentemente desejam-se. Como metáfora, os cães de uma cidadezinha relacionam-se entre si, assim como os seres humanos, até mesmo se rejeitando. Mulheres também desfilam no ambiente, mas é no amor entre os homens que a história fixa-se. A narrativa segue uma linha de sugestões, sendo convocado o leitor como um dos personagens a complementar a história.
O que, talvez, encante nos contos de Cafiero é a versatilidade do artifício narrativo. Em Visitante, o autor coloca em destaque um homem do povo como narrador, ele é uma espécie de guia turístico nativo, desses que pedem dinheiro após explanar sobre a beleza de parte de sua cidade, “uma contribuição espontânea, uma boa tarde para todos, e pro senhor também, alguém se sente estimulado a contribuir, alguém?” Neste episódio, Cafiero, mostra pleno domínio da variedade narrativa. Apesar das onze páginas que compõem a história, toda ela é apresentada em um só período, observando-se o ponto final apenas no seu encerramento.
Pungência
Não fale com o fantasma e Jesus e os terríveis são histórias que jogam presente e passado. Enquanto na primeira um homem frequenta um bar impossível de existir no momento presente (a palavra fantasma já remonta ao pretérito), na segunda o narrador descreve o momento em que, quando criança, destrói um objeto ornamental da sala de visitas da própria casa. O garoto apela ao seu imaginário, transformando Jesus, sua mãe e alguns apóstolos numa banda de rock. Este diálogo, entre o tempo em que o narrador conta a história e o tempo em que ela aconteceu, torna-se o estopim que desencadeará o desequilíbrio, isto é, o poético, produzindo uma pungência que transcende a narrativa.
Cavo varo descreve um caso de necrofilia, também com um narrador em primeira pessoa falando a linguagem daqueles que trabalham nos institutos médicos legais da vida. Um homem muda de turno porque chega um “grampo”, vocábulo que designa cadáver no necrotério público (talvez comparação do ser humano aos animais comestíveis expostos antes da comercialização). Conto corajoso e muito bem-sucedido, não recomendado a pessoas sensíveis.
Os pulgões e Manual do homem do tempo são histórias marcadas pela solidão. O que fazer depois de se ver abandonado pela pessoa que a gente ama? Em ambos há uma espécie de esperança, de solução. Esta pode surgir a partir da imagem de uma criança que desce de elevador, no colo da mãe, e acena ao personagem, ou através do desaparecimento de uma praga que mata pouco a pouco as plantas no apartamento.
O conto mais forte e mais revelador é o que dá nome ao livro, decisão acertada, já que o próprio livro concorreu ao prêmio Cidade de Belo Horizonte com outro título. Nesta pequena narrativa de seis páginas assistimos a um adolescente conversando com seu cão. Dentro da família, o animal de estimação parece ser o único interlocutor que ele possui. E não se trata da vida de um rebelde sem causa. O que pega o leitor de surpresa é o que o rapaz está prestes a fazer. Sem querer desmerecer as outras histórias, este conto vale por todo o livro, e deve ser lido com bastante atenção.
O conto final, A uhtima aventura do erohi — episohdio 13 (é assim mesmo a escrita), apresenta uma aparente brincadeira, que deve, no entanto, ser vista com muita seriedade. Na literatura contemporânea, muitos autores abandonaram a experimentação, talvez por certo temor (tão vanguarda ainda o modernismo, vide Miramar e Macunaíma), talvez pela necessidade de comercializarem seus livros. Mas, aqui, Cafiero envereda por um caminho tentador. A história é ambientada num futuro distante, período de tempo suficiente para a língua portuguesa ter mudado substancialmente, sobretudo na sua grafia, e o conteúdo versa sobre um texto do passado, escrito provavelmente no início do século 21 e encontrado por pesquisadores. Através de notas de rodapé (elas sempre estão presentes no texto de Cafiero), editores e organizadores do tal futuro discutem que espécie de texto é aquele que receberam para a publicação. Nos debates, uns dizem que se trata de um roteiro de reality show, enquanto outros afirmam ser o exemplo mais peculiar da literatura da época (literatura “uber-pohs-moderna brazileira”). Logo no início do conto, na “nota do editor”, está escrito: “nesta edisaum espesiau para leitores, foram mantidos os erhos e/ou neolojismos encontrados no documento orijinau, asim como as regras ortograhficas e gramaticais vijentes na ehpoca, incluindo o uso de asentuasaum grahfica, e todos os recursos de destaqe utilizados pelo autor, como caixa auta e subliniados”. Em seguida vem o texto escrito com a linguagem do nosso tempo, e sempre as notas com a escrita do tempo futuro.
No panorama da literatura atual, os contos deste autor carioca revelam-se ousados, procurando temas prementes e mesmo desagradáveis — assuntos sobre os quais não desejamos pensar muito. Cafiero não segue o hiper-realismo gratuito, presente e esgotado em muitos autores que clamam pela autoexposição. O que consegue, de verdade, é voltar ao conceito original de literatura (perdoe-me a redundância), discuti-lo e mostrar que tal definição é sempre provisória. Ela equilibra-se sobre um fio tênue, um passo em falso e o abismo, prestes a tragar não apenas esta impossível arte feita de palavras, mas todo o universo da cultura.

Areia movediça


Em seu novo romance, A casa cai, Marcelo Backes retoma a tradição da narrativa urbana, iniciada na literatura brasileira no século 19. Um narrador em primeira pessoa apresenta-se logo no início do livro dizendo: “Parecia mesmo que eu não ia conseguir voar”, frase enigmática que nos remete a várias direções, prometendo uma narrativa altamente metafórica. Na verdade, este personagem e uma mulher, que pouco a pouco ocupa cada vez mais espaço em sua vida, estão no interior do Rio Grande do Sul e, dali, têm a intenção de retornar ao Rio de Janeiro.
As quatro partes que compõem o livro são nomeadas: Final de 2011hoje aurora1968, Anteontem2012, Sol a pinoInício de 2013, hoje, crepúsculo. Seguindo o curso de um dia, fazendo vez ou outra um flashback, o autor procura mostrar o desenvolvimento do personagem, de quem sabemos o nome apenas no final.
O esdrúxulo protagonista pertencente à classe alta da sociedade aparentemente desiste das benesses que o dinheiro poderia lhe oferecer e ingressa num seminário em Petrópolis, onde permanece durante doze anos. A retirada do mundo, no entanto, não proporciona a ele maiores aprendizados, nem em relação à vida moral nem à social. Sua atitude pseudorreligiosa, segundo nos conta, foi uma atitude de vingança contra o pai, por tê-los abandonado, ele e a mãe, num apartamento em Ipanema, zona sul do Rio de Janeiro. Após a morte deste pai, o personagem, que é filho único, desiste do seminário e se volta à vida mundana, a desculpa é que precisa administrar sua herança. Ele descobre, então, que não precisará trabalhar; mas atitudes, como lidar com o advogado que administra o espólio e mesmo as operações com um simples cartão de banco, lhes são muito penosas.
Uma mulher chamada Lívia, com idade de ser sua mãe, inicialmente parece ser alguém interessada em ajudá-lo, mas logo depois passa a ser sua namorada e, mais adiante, sua esposa. A seguir, somos informados que ela também fora uma espécie de amante ou namorada do pai deste narrador. Portanto, ele não herda apenas o dinheiro e as propriedades, mas também a ex-mulher de seu pai.
É sempre positivo que a literatura investigue as mazelas sociais, de preferência quando elas vêm à tona a partir do ponto de vista de um personagem pertencente à elite. Pouco a pouco, através da investigação num cofre que permanecia trancado no apartamento em que o pai morou até falecer, na Delfim Moreira, avenida litorânea situada no Leblon, o protagonista descobre várias ações nada legais levadas a cabo por seu progenitor junto com políticos desonestos e outras pessoas inidôneas, a intenção era enriquecer ilicitamente. Todas essas ações têm a ver com a expansão do mercado imobiliário do Rio de janeiro a partir dos anos 1960. Tais pessoas promoviam a valorização artificial de terrenos e imóveis da zona sul da cidade, chegando a ponto de se tornarem mandantes de incêndios criminosos ocorridos nas favelas, atitudes que visavam à consequente remoção da população de baixa renda para bairros afastados possibilitando, assim, a construção de condomínios de luxo nos terrenos desocupados.
Verdadeiros abutres
Na tradição literária brasileira, quando deparamos com romances que apresentam personagens ligados à elite, não podemos esquecer Machado de Assis com seus dois principais livros,Memórias póstumas e Dom Casmurro, em que ele narra os desmandos e as mazelas praticadas por irresponsáveis que se achavam todo-poderosos. Em A casa cai, Marcelo Backes tenta nos passar a mesma problemática. Outro livro importante, que pode ter servido de modelo para retratar as angústias vividas por alguns personagens deste livro é Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, muito embora em Cardoso a introspecção seja bem maior do que no livro de Backes, e nos livros de Machado a transcendência e a pungência de alguns personagens sejam mais acentuadas e reveladoras. Em meio a uma sociedade plena de distorções, a classe A, residente na zona sul, principalmente em Ipanema e Leblon, passeia por vernissages, coquetéis e exposições de artes. Nomes de vários artistas contemporâneos desfilam pelo livro, juntamente com referências às obras de arte produzidas por eles. Nota-se certa ironia em relação ao panorama artístico brasileiro e mundial. O narrador, quando está entediado, viaja pelo mundo, e aproveita para criticar, assim como faz em relação aos seus conterrâneos, o modo de vida das pessoas de outros países. Em certa passagem do romance, ele resolve tomar um ônibus para ir à favela conhecida como Rocinha, que também fica na zona sul do Rio, local onde teria nascido sua mãe. É cômica a viagem que empreende pelo morro, tonando-se ele objeto de escárnio não só pelo modo como está vestido — uma espécie de dândi contemporâneo — como também a se surpreender a cada momento com as atitudes mais comezinhas da população local. Apesar de criticar o pai, o personagem passa a agir da mesma forma que ele, tornando-se, ele e seu advogado, verdadeiros abutres.
O livro, em sua estrutura, é bem construído, revelando que o autor conhece a carpintaria romanesca. Outro ponto positivo é que se trata de obra ambiciosa, até certo ponto extensa, fato incomum entre os ficcionistas brasileiros contemporâneos. O principal ponto desfavorável é que o romance, em vários momentos, torna-se pretensioso. Talvez por Backes ser ótimo tradutor, tendo obtido o grau de doutor em germanística e romanística na Alemanha, por já ter vertido ao português grande parte do que há de mais canônico na literatura alemã e mundial, tenha se deixado enfeitiçar pelo excesso de erudição. Seu livro é pleno de referências a obras de artes, a doutrinas religiosas, a obras literárias de autores consagrados, à filosofia (até Nietzsche dá as caras), e a curiosidades de outras culturas. Há também referências a acontecimentos que frequentaram as páginas da imprensa nos últimos dois ou três anos, como o incêndio de uma boate no Rio Grande do Sul e o desabamento de um prédio no centro do Rio, entre outros acontecimentos, o que torna o texto datado. A linguagem utilizada pelo narrador ora trafega num misto de variante chula da língua portuguesa, utilizando palavrões em excesso, ora numa tentativa de demonstrar erudição. Talvez do ponto de vista da construção do personagem, a verossimilhança não esteja adequada. Mesmo se tratando de alguém oriundo de um seminário, onde se estuda a vida do espírito, suas atitudes em relação à vida prática são ingênuas demais. Um personagem de tal monta, pertencente às classes abastadas, agiria com mais dissimulação e não cometeria os exagerados e imprudentes atos inverossímeis que permeiam o romance, sobretudo o praticado por ele no final. Os ricos não são ingênuos. É isso que destoa no comportamento deste conflituoso (no mal sentido) narrador.
A leitura deste livro não é para qualquer um, é preciso estar consciente de que a literatura não está para nos causar apenas prazer, mas muitas vezes para nos aborrecer, e tento dizer isto no sentido mais positivo possível.
“Parecia mesmo que eu não ia conseguir voar”, voltando à frase inicial, pode-se dizer que Marcelo Backes, com este seu novo romance, conseguiu voar sim, mas é preciso lembrar que todo voo pressupõe uma rota a seguir. Em literatura, isto significa que não se pode falar de todos os assuntos ao mesmo tempo.

Perto do bruxo

Ilusão e mentira, de Godofredo de Oliveira Neto, é um livro composto por duas novelas; a primeira, O galo Adamastor; a segunda, Val e Lalinha. Ambas, inseridas na tradição da novelística brasileira, bebem em fontes machadianas. O galo baseia-se em Ideias de canárioVal e Lalinha em Dom Casmurro. A estrutura também não foge ao estilo de Machado de Assis, com capítulos curtos, diálogos e muita ironia. O que Godofredo acrescenta é uma inovação do ponto de vista do narrador.
A primeira novela começa com um narrador em primeira pessoa descrevendo o personagem Miguel Santos, que seria web designer na vida profissional, mas nos alerta: “O designer, se não caiu inteiro na loucura, se aproxima perigosamente desse estado psíquico. Não há reunião ou encontro casual nas ruas em que ele não conte a mesma história do galo Adamastor”. A partir do segundo capítulo é da voz do delirante personagem que virão todos os acontecimentos. O narrador inicial retorna apenas no último capítulo, o décimo quarto, para fazer uma espécie de conclusão da narrativa.
Em Ideias de canário, de Machado de Assis, há um pássaro falante, que discute com um homem sobre o que seria a liberdade: “O mundo, redarguiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de Belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é o senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira”. Este tema será retomado pelo galo de briga Adamastor, um imponente galo inglês fujão, que também discute o mesmo tema com o seu novo dono, Miguel Santos.
Além de abordar a liberdade, temática que norteia as organizações sociais humanas e que sabemos nunca ser total, Godofredo também coloca em questão a reescrita de narrativas, mostrando que sempre é possível “alargar”, ou tornar mais extensa a discussão. Na história de rua, narrada pelo impressionante personagem, há referências às novas tecnologias, como celulares e tablets, àinternet e às redes sociais. É interessante que, entre os ouvintes deste contador de histórias oriundo da cultura popular, estão excluídas (outra questão boa para se discutir na contemporaneidade) as crianças e os adolescentes que “zombam e riem do ‘lunático de circo’, como tive a oportunidade de ouvir uma vez de um grupo de adolescente com o fio do iPod grudado às orelhas e trajando uniforme de uma escola das cercanias”. Estaria o escritor nos alertando sobre o futuro da literatura ou seria mais uma das ironias bem ao estilo machadiano?
O que se pode criticar, nesta novela, é certo prosaísmo nas palavras do narrador circense. Ele utiliza poucas palavras do vocabulário popular e envereda pela norma culta da língua portuguesa. Em alguns momentos, utiliza o verbo no mais-que-perfeito. Seria esta opção também uma sátira aos artistas de rua contemporâneos?
Artifício narrativo
Já na segunda novela, Val e Lalinha, a marca mais forte também é o artifício narrativo. Trata-se de um idoso, aposentado, que trabalhou a vida inteira como amanuense “numa instituição penal reservada a mulheres”. Ele gravava o depoimento das presas num velho aparelho Grundig e guardava as fitas. No final da vida tem as gravações, mas devido ao clima úmido da cidade do Rio de Janeiro e das “peraltices” dos netos já não consegue ouvi-las. Ao completar noventa anos, ganha de uma sobrinha solteirona uma gravação recente obtida numa dessas instituições. “Transcrevo-a com a certeza de que os leitores farão dela bom uso.” O preâmbulo da narrativa, na voz do ex-amanuense, ocupa um parágrafo de quatorze linhas. O restante é a transcrição do diálogo entre uma presidiária e uma psicóloga judicial.
O clima machadiano é ressaltado por uma citação retirada de Dom Casmurro e apresentada no início da novela: “Releva-me estas metáforas; cheiram ao mar e à maré que deram morte ao meu amigo e comborço Escobar. Cheiram também aos olhos de ressaca de Capitu”. A epígrafe indicia o rumo da narrativa. Laudelina Santos Pacheco da Costa Souza, mais conhecida como Lalinha, praticara um homicídio; sua vítima, outra mulher, Valéria, chamada pelos vizinhos de Val. As duas disputavam o mesmo homem. Lalinha, mais velha; Val, uma adolescente que de repente tomou corpo de mulherão e caiu nas graças de Jonas, o amante de Lalinha.
Durante todo o diálogo, Lalinha conta seu passado e o modifica de acordo com o andar da carruagem. Isso acontece quando descobre pela voz da psicóloga que tanto Jonas quanto Edu, que também vivera com ela, receberam ordem de prisão. É preciso ressaltar que as duas mulheres moravam numa favela e que o crime aconteceu num beco. Outro ponto importante é que tanto Edu como Jonas são traficantes de drogas.
Godofredo encontra boas soluções em relação à linguagem de Lalinha, que não se mostra caricatural. Ela diz que estudou até o segundo ano do ensino médio, e que era ótima aluna. Por isso suas palavras são um pouco diferentes daquelas que sairiam da boca de uma autêntica favelada. Como se trata de literatura, acabamos aceitando a solução. Outro ponto introduzido pelo autor no decorrer dessa conversa judiciária é a presença de um diário escrito pela mulher acusada de assassinato. Ele se torna mais um artifício narrativo. Sua presença mostra que, enquanto escreve, Lalinha não comete crimes ou delitos. Godofredo acaba por nos dizer que o escritor realiza na literatura aquilo que não lhe seria permitido na vida real.
Além da temática machadiana, há também ares rodriguianos: “[...] o amor parece que traz mais infelicidade do que alegria. É bom por um lado mas machuca por outro, aperta o peito da gente, meio assim, uma coisa assim”, diz Lalinha. Nelson sempre afirmou que não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo.
Dois aspectos discutidos por Godofredo em seu livro acabam proporcionando ao leitor bons motivos para refletir sobre o momento em que vivemos. O primeiro deles é a sobrevivência da narrativa popular. Até que ponto, em meio a inúmeros meios a servirem de canal para se contar uma história, o narrador, sobretudo o baseado na oralidade, pode sobreviver enquanto contador de histórias? O outro ponto é a interferência da tecnologia tanto na transmissão das histórias quanto como artifício narrativo. Na primeira novela, o personagem Miguel nos fala sobre celulares, tablets,iPods e computadores; na segunda, há menção a um gravador Grundig e suas fitas correspondentes, vem de acréscimo outra gravação, esta mais recente, que tem como objetivo preencher o tempo que resta de vida a um nonagenário.
Portanto, além de demonstrar o quanto os clássicos podem influenciar na literatura da contemporaneidade, Godofredo de Oliveira Neto nos dá de acréscimo toda uma discussão a respeito da sobrevivência ou não da literatura em meio ao incremento — maior a cada dia — do aparato tecnológico. No final, compreendemos o tanto que a voz melódica do galo Adamastor, a locução circense de Miguel Santos e a dicção ardilosa e dolorida de Lalinha se complementam e nos encantam, afirmando a supremacia da palavra no ato de contar histórias.

terça-feira, março 31, 2015

Bonecas nem tão bonecas


Bonecas russas
Eliana Cardoso
Companhia das Letras
97 páginas.

Eliana Cardoso traz à cena mulheres que protagonizam seus próprios destinos

O ser humano é um ser cultural, vive sempre criando transcendências, sentidos e significados que vão além do caráter utilitário de cada objeto – os próprios objetos em si tem seu fundamento metafísico. E a literatura é a medida desse mundo da cultura, da transcendência. Mesmo que não se queira mergulhar fundo, a atividade de escrita acaba por revelar conceitos que estão muito além daquilo que pensamos quando escrevemos. Apenas por isso, já se pode perceber a necessidade da imaginação. O consequente ato de contar histórias não está dissociado deste universo.

Outro fato interessante é que acabam sendo nomeadas como arte e, no nosso caso, como literatura as obras que tocam o caráter trágico da existência humana. Os personagens temperamentais, soturnos, que pouco sorriem, normalmente são os que permanecem. Corrobora esse conceito os livros de Dante, Shakespeare e Dostoievski, entre outros. O próprio personagem que visita as três esferas, na Divina Comédia, Hamlet ou mesmo Otelo, Ivan ou Dimitri Karamazov, são personagens pungentes e trágicos. Como situar a literatura da sutileza nessa marcha conturbada de personagens que habitam a literatura universal?

Acredito que haja resposta plausível. Na sutileza também é possível encontrar o nível trágico da existência. Sua representação, portanto, não se tornará menor. É o que acontece no romance Bonecas Russas, de Eliana Cardoso.

A narrativa, que aborda a vida de várias mulheres, começa com as duas primas, Leda e Lola, num diálogo em que, como revela o título do capítulo, Leda aparece nua. Mas ambas já não são jovens. Leda pergunta à Lola: “Quero saber o que você vê”, e Lola prontamente responde: “Uma velha pelada.” Este início imprime à narrativa certa desmistificação a respeito do corpo feminino e, ao mesmo tempo, insere a sutileza como componente catalizador do que se poderia nomear de trágico. Adotando tal artifício, a autora não apenas se contrapõe ao conceito contemporâneo de beleza e a como as mulheres são vistas na sociedade, mas acaba conduzindo o leitor a um patamar acima, fazendo-o flertar com o trágico, pois o envelhecimento e o perecimento estão à vista. No âmbito da história, este desnudamento – podemos entender assim a alegoria – arrasta consigo importantes consequências. As mulheres não serão somente microcosmos da humanidade, mas se mostrarão nuas também em relação aos seus sentimentos e angústias.

Apesar de o romance começar com uma quase brincadeira, pouco a pouco ele se vai revelando de uma intensa seriedade. O retorno à infância de Leda e a descrição do mundo dos adultos sob a perspectiva de uma criança alimentam buscas a tempo e atitudes perdidos. Estes, logicamente, não podem ser recuperados. Sua mãe, Francisca, foi uma artista plástica, uma ceramista, e Leda vivia em meio às obras de artes produzidas por ela. Mas a mulher não lhe dava atenção, acabou trocando marido e filha pelo amante e partindo a seguir para o exterior. Morando na França, onde permaneceu até o fim da vida, Francisca verá a filha apenas uma única vez. Leda a visitará quando já adulta. E essa visita acontece no mesmo ano em que Francisca vem a falecer. É um momento pungente da narrativa.

Dentre as possíveis leituras que o romance oferece, há a trajetória das mulheres, suas escolhas e tentativas de serem donas do próprio destino. Uma velha questão é abordada aqui. Como amar sem que o casamento ou a maternidade escravize essas mesmas mulheres? Muitas vezes, no afã de optar pela realização do desejo, elas são tomadas pela culpa, da qual jamais conseguirão livrar-se. É o caso de Francisca em relação à Leda. Outro fator é que a juventude um dia acaba, e todas as pessoas precisam se defrontar com os danos causados pelo passar dos anos, sobretudo quando se começa e envelhecer e é necessária a convivência com a juventude e o vigor presentes na nova geração.

Quanto à forma, o romance é dividido em vinte capítulos, todos com títulos, e construído por várias vozes. Quase todos os personagens principais, e são muitos, têm o seu momento de narrador. Há também capítulos compostos por com cartas e mensagens de e-mails. Essa estratégia torna a narrativa difusa, acentuando as características de cada personagem e ressaltaltando a fragmentação, já discutida e sempre retomada na literatura desde o início do século 20.

O fantástico também se apresenta num dos capítulos do livro, narrado a partir da perspectiva de Leda, que sempre gostou de inventar histórias. Eis o resumo do trecho. Leda visita um excêntrico padre chamado Mateus, que teima em afirmar que conversa com anjos e arcanjos. Em uma das histórias, os anjos aglomeram-se sobre a cabeça de um alfinete e se põe a formar uma incrível escada, o desafio maior é que mantenham a formação, uns sobre os outros. O fato é possível enquanto do aparelho de som vem a música de Noel Rosa “Com que roupa”. Aqui, por incrível que pareça, a autora procura desenvolver uma sedutora tese sobre o tempo e o espaço: “o espaço não só pode ser multiplicado como também dividido infinitamente, sem que se chegue ao nada. Bastava lembrar que era possível dividir o tempo sem se chegar ao tempo zero e dividir o movimento sem se chegar ao repouso.” No final das contas 308.428 anjos posicionam-se sobre a cabeça de um alfinete. A alegoria pode ser interpretada de várias maneiras, sobretudo num momento delicado para a instituição religiosa conhecida como Igreja Católica Apostólica Romana. Mas o padre mantém a fantasia de Leda, conversa com os seres invisíveis e traduz a conversa para ela. No final, a ainda menina chega à conclusão de que ele acabaria expulso da igreja por promover heresias.

A metalinguagem é uma questão que tem sido trazida à tona em muitas obras de arte, sobretudo quando se trata de literatura. Por outro lado, há autores em que este artifício passa despercebido, privilegiando os acontecimentos e conflitos com o intuito de manter o leitor preso ao enredo. Mas neste romance, tal como a exposição do corpo feminino apresentado no início da narrativa, a metalinguagem está a martelar sua presença exibindo-se cada vez de modo mais intenso. Isso ocorre quando a história é centrada na imagem de Leda, que está a escrever um diário ou, de modo mais amplo, quando a autora usa a narrativa para falar sobre arte. Há também muitas menções a escritores e artistas plásticos. Esta atitude gera duas consequências. A primeira é que a narrativa pode ser permeada pela beleza das obras descritas, criando uma atmosfera de requinte ao romance. A segunda consequência é temerária, porque pode denotar certa insuficiência narrativa compensada com a referência a tais obras. No livro de Eliana Cardoso há referências excessivas às artes, fato que frequentemente desvia o foco do que está acontecendo. Portanto, cabe ao leitor julgar a pertinência ou não da estratégia da escritora. Grande parte dos autores da atualidade tende a abandonar o recurso da metalinguagem por acreditarem que seu uso tornou-se desgastado nos últimos anos, pois inúmeras obras perderam o sentido porque passaram a ter como foco elas mesmas. Por outro lado, um exemplo de pertinência é a novela “Max Ferber”, de W. G. Sebald, em Os emigrantes. Nesse livro, no entanto, a presença do pintor alemão com sua arte fuliginosa é o retrato da tragédia que se abateu sobre sua família e sobre grande parte da Europa em meados do século 20.

Eliana Cardoso
Nasceu em Belo Horizonte. Formou-se em economia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, concluiu o mestrado na Universidade de Brasília e o doutorado em economia no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Trabalhou para o Banco Mundial na China, na Índia, no Paquistão, entre outros países da Ásia, e foi professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV). É autora de outros nove livros e tem mais de quarenta trabalhos publicados em revistas acadêmicas. Atualmente é colunista do Valor Econômico e mora em São Paulo. Bonecas Russas é o seu primeiro livro de ficção.

Trecho:
    Fui visitá-la em 2007 numa viagem a Paris. Ela continuava elegante e se perfumou para caminhar comigo nos jardins de Luxemburgo. Parecia mais jovem do que eu. Ainda gostava de ostras e champanha. Tinha abandonado a cerâmica a pedido de “cher”, que perdera o “mon” e o “e” prolongado. Perguntei sobre o vaso violeta e ela se mostrou surpresa.
    – Rosália nunca mencionou a falta de um vaso no vernissage. A exposição foi um sucesso.
    E se calou, fechada em lembranças nas quais eu não estava. Suamãe morreu naquele mesmo 2007. De repente. Como um vaso de barro que voa, rodopia no ar e se estilhaça com a queda. Ainda hoje dói não ter sabido fazê-la minha.

Haron Gamal

quinta-feira, fevereiro 26, 2015

Melancolia em trânsito

Alexandre V. Porto expõe à luz as angústias de um psiquiatra

HARON GAMAL

A literatura contemporânea segue por diversas vias. Alguns autores trazem para as letras a experiência autobiográfica, insuflando ares literários à história da própria vida; outros seguem o percurso da História, apresentando personagens ora reais ora fictícios; e há aqueles que optam pela via expressa da ficção, mostrando que não há mal algum em continuar inventando histórias. Além disso, poderiam dizer que dessas histórias possivelmente serão tiradas as teorias mais tarde estudadas pela filosofia, psicologia e, quem sabe, psicanálise. O livro de Alexandre Vidal Porto pertence a esta última.

Sérgio Y. vai à América (vencedor do Prêmio Paraná 2012) é um romance intrigante por vários motivos. O primeiro deles é porque aborda o dia a dia de um psiquiatra, o tratamento e a vida de um de seus pacientes. Tarefa difícil do ponto de vista do escritor, já que Alexandre não exerce a profissão de médico. Seu narrador, no entanto, descreve a clínica psiquiátrica com requinte. O outro motivo é porque o romance fala de personagens em trânsito. Isso mesmo, e essa palavra precisa ser reiterada. Num primeiro sentido, trata-se do trânsito entre as distâncias a serem percorridas pelas pessoas, já que muitas delas escolheram o caminho da imigração, tema abordado durante boa parte da narrativa. O segundo sentido, dentro do constante deslocamento que é a própria literatura, enfoca uma questão até certo ponto tabu, e muito discutida nos dias de hoje. A possibilidade de escolha da própria sexualidade. Na narrativa, o tema aparece em duas oportunidades e em relação a dois personagens distintos.

O livro começa com o narrador contando a história de sua vida. “Como falarei da vida alheia, é justo que também fale da minha. Meu nome é Armando. [...] Aparento mais idade do que tenho. Mas esta velhice precoce é comum entre os psiquiatras. Absorvemos os problemas dos pacientes. Envelhecemos por eles.” A partir deste segmento, o autor faz o personagem contar sobre sua vida pregressa, passando pelos pais, e o caminho que seguiu até se formar como médico. Armando é uma pessoa altamente preparada, tendo feito residência nos Estados Unidos, já tem setenta anos de idade e pode se dar ao luxo de atender em seu consultório apenas quem deseja. Como ele mesmo afirma: pacientes que lhe despertam interesse.

Mas a vida deste médico começa a mudar quando aparece no seu consultório o personagem que ele nomeia de Sérgio Y., um rapaz de dezessete anos. “Quero deixar claro que não gostaria, a esta altura da vida, de expor a intimidade de uma pessoa que confiou sua privacidade a mim. No entanto, se comento esse caso clínico e, de alguma maneira, falto com meu juramento profissional, é pela mais meritória das razões.” A partir deste trecho, Armando passa a relatar um interessante caso que clinicou.

Felicidade mínima

O jovem aparece por recomendação da diretora da escola onde estuda, uma antiga conhecida do psiquiatra. Não há nada demais com ele, apenas “queria garantir um futuro minimamente feliz”.

Sérgio frequenta algumas sessões. Num determinado dia, anuncia que vai passar uma temporada em Nova York. Cumpre o seu projeto. A viagem parece lhe fazer um bem imenso. Ao voltar, vai a mais uma ou duas sessões e anuncia que deixará o tratamento, pois o que procurava por meio da terapia já havia conseguido. Segundo ele, o psiquiatra lhe revelara algo que o fez tomar uma determinada decisão. Só que Sérgio não revela ao médico que palavras deste o ajudaram ver a vida com outros olhos. O rapaz, então, embarca em definitivo para a América e lá espera alcançar a sua felicidade. Somente alguns anos depois é que o Dr. Armando saberá o significado de tal felicidade.

Na vida do médico, a cidade de São Paulo aparece como pano de fundo, trazendo como lastro todos os seus problemas, como os de trânsito e os das enchentes. Armando observa esta paisagem do alto do edifício onde fica o seu consultório.

O livro se divide em duas dezenas de capítulos, todos com títulos que, de certa forma, insinuam o que será discutido em cada um deles. Um dos pontos essenciais do livro é a culpa que o psiquiatra passa a carregar a partir do momento em que descobre ter sido o responsável pelo que aconteceu ao seu paciente. Na verdade, uma das questões prementes no livro é a seguinte: qual a responsabilidade do terapeuta no destino de seu paciente? Pergunta incômoda em um mundo inundado cada vez mais por diversas formas de tratamentos, cujos profissionais lavam as mãos em relação ao futuro de quem atendem. Mas esse não é o caso do Dr. Armando. E essa é a deixa para entender talvez a única fragilidade do romance, o que é um médico nas mãos de um romancista.

Outro ponto interessante do livro é o estranhamento produzido pela transgressão à ideologia. A história narrada por Alexandre Vidal Porto, como aborda a questão da transexualidade, acaba por apontar o desconforto que o tema comporta. Mesmo numa sociedade em que o direito das minorias está assegurado (pelo menos no mundo desenvolvido), e que convivem pessoas esclarecidas, como o Dr. Armando, tal aceitação ainda é problemática.

O livro não deixa de observar que, no passado, a opção pela sexualidade desejada também era exercida, mas de forma disfarçada. E a sociedade, quando tinha conhecimento de algum caso, agia com hipocrisia se o envolvido era membro de sua família, e com escárnio caso se tratasse de família alheia.

Não faz muito tempo Lars Von Trier estreou o seu filme Melancolia. O cineasta dinamarquês nomeou simbolicamente de “Melancolia” um planeta que estava prestes a colidir com a Terra, levando, em consequência, a vida humana à extinção. Na verdade, segundo o autor, é a melancolia que pouco a pouco acaba com a vida das pessoas. Embora de outro modo, Vidal Porto aborda o tema, que é caro à psicanálise. Em Sérgio Y. vai à América uma forte dose de melancolia ronda todos os personagens, sobretudo o protagonista. Armando é oriundo de uma família respeitada, possuidor de recursos que a maioria dos cidadãos não usufrui, estudou nos Estados Unidos, possui uma filha que também trilha o caminho do sucesso; portanto, tem tudo para ser feliz. Não é isso, no entanto, o que acontece. Ele é um homem solitário, sem diálogo com a maioria das pessoas, e melancólico. Uma das poucas interlocuções que estabelece à sua volta é a prática da profissão. O personagem não tem a solução para o mal que o espreita e que, de certa forma, lhe corrói a alma.

A viagem de Sérgio Y. revela-se sem volta para o Dr. Armando, cuja vida afunila-se após o aparecimento e desaparecimento do paciente. É a literatura — sendo ela também um deslocamento — quase a perguntar: é possível a obra de arte salvar uma pessoa do enlouquecimento?

segunda-feira, janeiro 19, 2015

A arma possível

“Safári”, romance de Luís Dill, discute a banalização da violência

Obras literárias sempre refletiram as intempéries de seu tempo. Entre nossos autores, é possível observar que, mesmo em períodos de relativa estabilidade política, econômica e social, contos, romances e poemas colocaram em questão os problemas mais prementes da época. Foi assim com José de Alencar e Machado de Assis. O primeiro criando um romance que estabelecia uma nova ordem brasileira sobre o poder e o modo de vida portugueses, de quem estávamos recém-libertos; o segundo, dando universalidade a uma vida de província. Castro Alves foi outro mestre neste caminho, soube alçar a escravidão ao patamar estético, ao mesmo tempo que seus poemas municiavam a sociedade pela abolição. Com os modernistas o engajamento continuou de modo ainda mais intenso. Lutou-se diretamente contra o colonizador estrangeiro, personificado no vilão de Macunaíma. Nos romances regionalistas dos anos 1930, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e mesmo um José Lins não se esqueceram de dirigir suas penas contra o atraso político, social e econômico a que era submetida grande parte da população brasileira.
Na contemporaneidade às vezes se chega a pensar que a literatura sucumbiu ao poder do dinheiro, levando escritores a construírem histórias mais amenas e de forte apelo mercadológico, com narrativas que envolvem mistério e magia, em que poderes ocultos teriam capacidade de livrar os humanos dos “diabólicos azares”.
Esta arte feita de palavras, no entanto, mesmo desfeitas as ilusões, jamais renunciou ao desejo de realizar alguma utopia. Sua própria existência é até certo ponto utópica. Hoje se sabe que não é possível através de narrativas, poemas ou dramaturgia mudar a economia, ou livrar o povo de tiranos. Para que isso aconteça é necessário outro tipo de preparo. Mesmo assim continuam-se escrevendo romances, novelas, contos e poemas que trazem à tona o desejo de esquadrinhar o presente e, já que não é possível apontar soluções, ao menos tocar na ferida, para que sangre de modo mais intenso.
É isso que se percebe após a leitura de Safári, de Luís Dill, um romance que nos faz mergulhar no cerne da violência urbana das grandes e pequenas cidades brasileiras e, quem sabe, também na de cidades de países desenvolvidos.
Trata-se de um romance bem urdido, em que convivem em harmonia duas vozes narrativas. A primeira, aparentemente impessoal, nos traz a trama; a segunda apresenta as reflexões e reminiscências de um narrador em primeira pessoa.
O enredo tem como foco principal uma conceituada firma de advocacia cujo escritório localiza-se num prédio próximo a uma favela conhecida como Vila da Fumaça. Tal proximidade trará à luz as contradições existentes entre uma classe favorecida e outra pobre ao extremo. Esta, se não vive da criminalidade, precisa pelo menos conviver com ela. Sem dizer o nome da cidade onde a história transcorre, o autor coloca em questão o difícil relacionamento entre as várias camadas da população nas cidades, fato sempre mascarado pelos meios de comunicação, os quais gostam de semear a ideia de que em nosso país não existem preconceitos e, caso isso aconteça, são logo combatidos. A suposta igualdade de condições provoca a ira de segmentos mais abastados. Eles gostariam dos pobres longe da sua vizinhança. Outro aspecto discutido pelo livro é a facilidade de se conseguir armas, privilégio para os mais variados segmentos sociais. E neste livro não são apenas os traficantes que gostam de ostentar o poder de suas pistolas e fuzis. Trata-se de um romance que não é agradável aos espíritos mais sensíveis.
Força da ideologiaJá no início, o leitor é capaz de perceber a força da ideologia dominante a estabelecer comportamentos individuais extremamente bélicos. Nada a ver com a nossa luta política nem com ditaduras passadas. Trata-se de um embate em que o Direito leva a desvantagem, ficando a solução nas mãos da violência.
Desfilam ante nossos olhos uma fauna humana composta por pessoas de todas as classes sociais. A mais alta, no entanto, é a mais cruel. Como contraponto, Dill cria um personagem às avessas, um detetive verdadeiramente romanesco, que vai proporcionar alento ao sofrido leitor.
Quando se termina a leitura, pode-se chegar à conclusão de que qualquer narcotraficante, mesmo municiado pelas armas mais letais, estará abaixo do ardil e da sagacidade daqueles que tiveram acesso aos bens da alta cultura e os tomaram em proveito próprio.
Outro ponto importante revelado é a hierarquia de valores seguida por seus personagens. Sem querer estigmatizar qualquer tipo de cultura ou de reiterar o lugar-comum de criticar o modelo de vida norte-americano, o romance discute a obrigação de se ter de ganhar cada vez mais dinheiro, mesmo que seja necessário assassinar a ex-mulher para não se fazer a partilha dos bens. O resultado disso tudo é o estabelecimento de uma sociedade onde a competição atingiu tamanha magnitude que, sem exagero algum, podemos chamá-la de militar. Tal atitude provoca nas pessoas comportamentos similares, como num efeito dominó. Assim, não surpreende a possante arma usada por um dos personagens, com a qual exercita a sua justiça.
A literatura sempre fracassou quando tentou mudar o mundo. Seus autores são melhores na descrição de cenários e na narração da barbárie, mesmo que perpetrada por agentes da civilização. Ela também não é a droga vendida e transportada pela tele-entrega dos traficantes deste Safári. Nem é o projétil que sai certeiro da arma do atirador travestido de advogado.
Portanto, mesmo que o leitor sinta-se saturado da violência apresentada todas as noites nos telejornais, o livro de Dill não se mostra redundante. Ele serve como o fio de Ariadne, artefato que torna a arte essencial. O leitor que segui-lo com honestidade poderá transformar o seu modo de olhar o mundo. Aqui talvez entre o papel fundamental da literatura, que é o de revelar. O que fazer a partir dessa revelação é que se torna o grande problema.