sexta-feira, outubro 07, 2011

Resenha de: Guerra aérea e literatura, de W. G. Sebald

Matéria publicada por Haron Gamal no Jornal do Brasil e Folha Carioca

Em Guerra aérea e literatura (Companhia das Letras, tradução de Carlos Abbenseth), W. G. Sebald, ao contrário do que estamos acostumados a ler em seus livros – que na maioria das vezes tratam de memória e ficção –, apresenta dois ensaios, tendo um deles o mesmo nome do livro acrescido do subtítulo: “Conferências de Zurique”; o outro, “O escritor Alfred Andersch”, reprodução de um artigo que publicou nos anos 1990 na revista Lettre, em que faz a revisão da vida e obra deste autor alemão.

Em ambos os textos, Sebald, que adotou a Inglaterra para viver e trabalhar até à sua trágica morte em 2001, questiona o exercício da literatura em períodos-limite, como durante a Segunda Guerra Mundial.

O terreno explosivo e de escombros que ele vai trilhar pode ser pincelado com suas próprias palavras: “A queixa sempre repetida de que até hoje não foi escrita a grande epopeia alemã da guerra e do pós-guerra tem algo a ver com esse fracasso (de certo modo inteiramente compreensível) diante da violência que representa a absoluta contingência gerada por nossas cabeças obsessivamente metódicas.” Em outras palavras: para a razão, torna-se incompreensível e indizível a indústria da guerra e da destruição.

Aqui, sob minha análise, arriscaria insinuar que essa incapacidade de absorver o real se aproxima da posição lacaniana, segundo a qual este mesmo real só pode ser captado e expresso pelo simbólico, sempre temerário e vacilante, muitas vezes incapaz de traduzir a experiência traumática, mostrando-se, consequentemente, em colapso.

No primeiro ensaio, Sebald questiona o silêncio dos escritores alemães tanto durante a guerra quanto no pós-guerra, tornando a referência ao período em que as cidades da Alemanha foram quase totalmente arrasadas verdadeiro tabu. Entre aqueles que ficaram no país, como Walter Von Molo e Frank Thiess, diz-se que “se abstiveram de qualquer comentário a respeito do processo e do resultado da destruição porque temiam cair em desprestígio junto às autoridades de ocupação no caso de uma descrição próxima da realidade.”

O escritor constata que, mesmo finda a guerra, com a chegada de escritores que estavam no exterior ou nas frentes de batalha, o silêncio persistiu, tendo sido poucos os que decidiram escrever sobre o período, e mesmo assim quando o fizeram foi com uma escrita bastante pálida. Até mesmo Heinrich Böll, que teve como programa a Literatura dos Escombros, “mostra-se sintonizado com a amnésia individual e coletiva, e guiado por processos pré-conscientes de autocensura.” Seu livro O anjo silencioso, que dá uma idéia aproximada da dimensão do horror, apesar de pronto na década de 1940 só foi publicado em 1992. Além de Böll, apenas poucos autores trataram do assunto, como Hermann Kasack, Hans Erich Nossack, Arno Schmidt e Peter de Mendelssohn. Sebald analisa, em detalhes, o que cada um escreveu.

No segundo ensaio, “O escritor Alfred Andersch”, o autor faz um balanço da obra e, sobretudo, da imagem que Andersch tentou criar durante e após o nazismo. Chamado ironicamente de littérateur por Sebald, em momento algum o ensaísta o poupa, mostrando não apenas os pontos falhos de sua obra, mas também – citando estudiosos contemporâneos ao escritor em questão – a falsificação que ele efetivou para obter benefícios durante o período do nacional socialismo e depois a modificação que tentou empreender em sua biografia para se mostrar vítima do nazismo.

Embora o autor de Emigrantes e Austerlitz enumere as baixas provocadas pela guerra aérea em território alemão, cite políticos e estrategistas aliados que discutiram a necessidade ou não de empreitada de tal envergadura (apenas a Royal Air Force lançou 1 milhão de toneladas de bombas sobre a zona inimiga; 131 cidades foram atingidas, sendo que algumas foram totalmente arrasadas; a guerra aérea deixou 600 mil vítimas civis na Alemanha; 3,5 milhões de residências foram destruídas; no final da guerra havia 7,5 milhões de desabrigados), o escritor não apela para o sentimento de autocomiseração nem coloca a nação alemã como vítima, inclusive afirmando que um país que promovera tamanhas atrocidades, com os campos de extermínio, não estava em posição de reclamar nem exigir qualquer reparação após o conflito. A questão principal, como já mencionei, é a incapacidade de os escritores discutirem, principalmente no universo da ficção, a Alemanha durante a guerra e no período conhecido como de reconstrução.

Como conclusão, podemos dizer que as colocações de Sebald nos levam a especular sobre pelo menos dois pontos. O primeiro deles é a possibilidade de a literatura (e por extensão qualquer tipo arte) se desarticular como linguagem em períodos altamente traumáticos. O segundo, caso o anterior não seja verdadeiro, é o seguinte: se poesia, ficção, teatro e crítica não possuem o poder de convencer o ser humano a se manter afastado das guerras, poderiam ter como objetivo promover um real inventário das perdas, impedindo que as bombas, além de destruírem fisicamente as cidades, levassem também de rodo a tradição e a memória.

quinta-feira, outubro 06, 2011

Resenha de: O romance histórico, de George Lukács

A partir da tentativa de criação de uma estética marxista, George Lukács (1885-1971), em O romance histórico (Boitempo Editorial, tradução de Rubens Enderle), livro escrito em seus anos de exílio na Rússia stalinista, aborda como as revoluções interferiram no gênero e como este serviu de instrumento para a reflexão sobre cada momento histórico

O autor húngaro desde cedo se dedicou ao gênero romance, tendo escrito ainda na juventude A teoria do romance, livro polêmico, mas que o marcaria como um teórico da cultura por toda a vida. Lukács, na época, partia de posições hegelianas que remontavam ao platonismo, descrevendo o romance como a epopéia da era moderna. Nesse livro, o autor defendia a polêmica tese que situava o mundo clássico como cultura fechada, local em que havia respostas para todas as perguntas, mesmo para as não formuladas. O romance, a partir de seu surgimento ainda no século 17, seria a tentativa de resgatar essa totalidade perdida, já que o ser humano se encontrava ao desamparo, abandonado pelos deuses e em vias de fragmentação espiritual. A tentativa de dar conta de uma completude, como sugere a narrativa romanesca, seria uma ação fracassada, porque a opção pela modernidade introduziu o homem no universo da experiência, local partido, de impasse, onde não prevalece a subjetividade nem qualquer tipo de metafísica e suas consequentes explicações sobre a origem e a razão da própria existência.

Em O romance histórico, embora Lukács já aderira ao marxismo, suas posições não abandonam de todo o que desenvolveu em seu livro de juventude, mostrando desta vez os conflitos históricos como motor de todas as mudanças, um modo de dar sentido ao mundo e de explicar como estas mudanças gestariam o fato literário, mesmo sabendo que ao abrir mão de qualquer metafísica estaria renunciando ao principal componente da literatura, a tentativa limite de comunicabilidade, simbolizada pela metáfora.

A grande questão que distingue este O romance histórico de A teoria do romance é a seguinte: aqui, Lukács propõe como parâmetro a vida em sociedade com todas as suas forças e contradições. Deste modo, numa situação de solidão, o ser humano não teria ao seu dispor nenhum artifício transcendental para superá-la, mas, como diz Arlenice Almeida da Silva na esclarecedora introdução ao livro, “o essencial acontece no interior da própria sociedade.”

O livro é composto de quatro grandes partes. Na primeira, “A forma clássica do romance histórico”, uma das mais importantes, o autor tenta situar a fase clássica do romance histórico como uma exigência do período pós-revolucionário. Não só a Revolução Francesa, mas as guerras revolucionárias e o período napoleônico serviram para transformar a história em uma experiência de massa, criando nos homens a concepção de sujeitos da história.

Para mostrar a força do romance histórico, o pensador húngaro escolherá Walter Scott, porque percebe nele um dos únicos escritores que fizeram prevalecer “o elemento especificamente histórico de seu tempo”, privilegiando como personagem o homem mediano, suas lutas e paixões, mostrando que este é capaz de figurar não o tempo que passa, mas a mudança de um tempo. O passado será visto como pré-história do presente.

Na segunda parte, o escritor discute a confluência dos gêneros, apresentando mais uma vez questões sobre o gênero épico, que classifica como a narrativa do "inteiramente passado", enquanto o gênero dramático apresentaria o "inteiramente presente". Ao apontar como uma das características do romance histórico o predomínio do dramático-dialógico, Lukács potencializa, através das características do drama, o momento histórico, deixando nas mãos de seus pequenos e medianos personagens o reflexo das grandes mudanças de cada período.

Na terceira parte, denominada “O romance histórico e a crise do realismo burguês”, ele especula sobre o período em que a própria burguesia, ao abandonar o realismo, demonstra perder a capacidade de representar a si própria, tornado-se vítima do movimento revolucionário que havia pouco menos de um século protagonizara. Lukács vai separar realismo de naturalismo e apontará que tanto as vanguardas modernistas como o realismo socialista nada mais são do que prolongamentos do próprio naturalismo.

E, por fim, em “O romance histórico do humanismo democrático", quarta parte, o autor deixa transparecer uma de suas principais preocupações no momento em que escreve o livro (a segunda metade da década de 1930): a necessidade de deter a ascensão dos movimentos nazi-fascistas com a criação de uma frente democrática, composta de alianças dos estados socialistas com os governos democráticos que lutavam contra o autoritarismo.

Hoje muito criticada, a teoria literária de Lukács serve não como tentativa de criação de uma estética normativa a partir da crítica ao capitalismo, mas – além de demonstrar ser a arte uma das principais preocupações de um intelectual marxista – representa o esforço em verificar o fato literário e sua gestação em meio às contradições e aos interesses da luta de classes.

segunda-feira, outubro 03, 2011

Resenha de Ao anoitecer, de Michael Cunningham

“Mistake, o Erro, vem para ficar algum tempo”, assim começa o mais recente romance de Michael Cunningham, Ao anoitecer. Mistake nada mais é do que o apelido de um jovem cujo primeiro nome é Ethan, irmão de Rebecca, que por sua vez é esposa de Peter, o protagonista da história. O jovem e belo rapaz, muito mais novo do que a irmã, é assim chamado porque representa tudo o que deu errado numa família de classe média americana. Com o correr da leitura, no entanto, não é difícil perceber que este erro tem muito de sedutor.

Seria bom neste momento fazermos uma reflexão das muitas que o livro nos incita. Talvez, num departamento de antropologia de alguma universidade perdida pelo mundo, alguém esteja desenvolvendo uma pesquisa (digamos, uma tese de doutorado) sobre a ética em vários tipos de sociedade, desde a mais antiga sobre a qual se têm notícias até à contemporânea, mundializada, representada por este microcosmo nova-iorquino onde vivem e transitam os personagens de Cunnigham, com suas deformações e tentativas de adequação.

É bom levar em conta que ética – palavra muito usada nos dias de hoje – origina-se de “ethos”, termo que denominaria remotamente um lar e, por extensão, as leis e os costumes que norteariam toda a ramificação familiar, seus habitantes, parentes e contra-parentes, num período da Grécia antiga conhecido como pré-socrático.

Como, porém, escrever um romance que estabeleça questões prementes e ressalte o artista não como um mero repetidor de narrativas esgotadas, mas como alguém que nos aponte o difícil limite entre o que muitos filósofos conceituaram como sentido, ou mesmo falta de sentido? Em O mundo como vontade e como representação, Schopenhauer salva apenas a arte como a única possibilidade de espelhamento e crítica da existência. Isso é o que consegue nos mostrar o autor norte-americano Michael Cunningham.

Assim como em seus romances anteriores, mesmo no mais conhecido As horas (1996), verifica-se uma ficção em que há a perda total desse “ethos”, gerando, consequentemente, personagens perdidos, deformados, fazendo que estas mesmas deformações não ameacem estabelecer uma ética às avessas, mas gerem seres e relacionamentos altamente destrutivos.

Nova York, plena de contradições, sobretudo seu universo e mercado das artes plásticas, serve como pano de fundo para a narrativa. Peter Harris já passa dos quarenta anos e, até certo ponto, é um marchand bem sucedido, embora do segundo time. Organiza exposições de artistas que se mostram promissores, e representa outros que se tornaram conhecidos mas não mais conseguem avançar em suas propostas. Ao mesmo tempo, vende arte para alguns ricaços da cidade, estes sempre imersos na falta de cultura e de senso estético. Mas o casamento de Harris mergulha numa profunda crise com a chegada de seu cunhado, Mistake.

Único homem em uma família cujo predomínio é das mulheres, Ethan recebe ajuda da irmã, que acredita poder mantê-lo longe das drogas. Certo dia, entretanto, ele confessa a Harris, que seus anos mais férteis e de maior produção foram aqueles em que usava drogas e estudava em Yale. Ao mesmo tempo, Mistake é jovem e belo, o que fascina Peter, já que ele procura a plena realização estética. Ethan acaba por se tornar, para o marchand, uma espécie de arte pura.

A questão das drogas é aprofundada a partir do momento em que o irmão de Rebecca, acreditando estar sozinho em casa, encomenda cristal (uma nova febre nos EUA) de um narcotraficante que entrega em domicílio. Descobre depois que seu cunhado voltara do trabalho por motivo de doença, entrara em casa em silêncio, refugiando-se num dos quartos, e percebera tudo. Peter, em contrapartida, ingere em quase todas madrugadas, quando costumeiramente tem insônia, dois comprimidos de Rivotril com um copo de vodca, enquanto sua mulher mergulha em garrafas de vinho e martínis. Ela é editora de uma revista de arte que está sendo vendida para um milionário de um estado distante e precisa relaxar quando chega em casa.

O leitor também poderá experimentar as perplexidades do circuito artístico de Nova York, um mundo em que tudo pode ser arte, até mesmo uma bola de piche com crinas de cavalo, passando por bronzes de estilo grego clássico com pegadores pós-modernos. Há citações de galerias locais, museus, exposições famosas, a surpresa que experimentam seus frequentadores, o universo dos colecionadores e outros mercadores, também ricos, mas que, na maioria das vezes, naufragam na doença e na futilidade.

Um livro que, para o bem da literatura, não tem a pretensão de virar filme, pois o autor usa e abusa de um narrador que inclui as constantes reflexões e desespero de todos os personagens, proporcionando ao texto alta tensão psicológica. Após o término da leitura, constata-se que “Mistake, o Erro” – o personagem ou qualquer julgamento sobre as artes e/ou sobre a ética contemporâneas – é apenas uma questão de ponto de vista.