quinta-feira, novembro 27, 2008

A cafeteria
“Vem, vem, já não agüento mais, me aperta, me beija, tira minha roupa.”
Ainda entrávamos pelos corredores do edifício. Às vezes, junto à escada, queria que eu a agarrasse e fizesse sexo com ela ali mesmo.
“Vamos pra dentro, aqui é perigoso, pode aparecer alguém”, eu dizia.
“Me come aqui, por favor, estou morrendo de desejo.”
Lembro uma vez em que entrou nua em casa. Fiquei temeroso de sermos surpreendidos enquanto ainda íamos no elevador.
No momento de extrema excitação, ela gritava: “vou gozar, vou gozar, não agüento mais, estou pegando fogo.”
Depois que gozava, encolhia-se, ria e me beijava. Não deixava de demonstrar então algum acanhamento. Só então se dava conta de que não devia ficar nua por mais tempo. Procurava suas roupas. Se demorava a encontrá-las, seu vexo aumentava.

A cafeteria era um lugar quase silencioso às quatro da tarde. Ali, eu costumava tomar café enquanto lia algum livro. Outras pessoas entravam, faziam seus pedidos, mas eu não olhava o que acontecia em volta. Só notei aquela fogosa garçonete na terceira ou quarta vez em que estive lá. Ela sorria e procurava encontrar meu olhar de cumplicidade. Mas eu estava perdido em meio à leitura.
“O senhor quer mais alguma coisa?”
“No momento, não”, eu respondia sério, para depois reparar que ela se dirigira a mim com intuito de estabelecer contato.
Num dos dias seguintes, colocou uma das mãos sobre meus ombros. Reparei que se insinuava. A partir daí passei a observá-la melhor.
Ao me ver, transpirava satisfação. Vinha rápido. Tentava algum diálogo. Deixei então um cartão.
Em uma noite, telefonou.

Quando encontrei com ela pela primeira vez, comportou-se com o máximo de recato. Pensei aonde levá-la. Foi ela que sugeriu:
“Sabe aquele restaurante no Flamengo etc...”
Tínhamos marcado às nove. Conversamos enquanto andávamos pela rua principal. Depois entramos num táxi. Permanecemos no restaurante até depois da meia-noite. Ela não bebia e, naquela noite, tomei apenas água mineral.
Ela disse que morava num apartamento pequeno, no Centro.
“Eu morei por muito tempo em Campo Grande, mas é muito longe. Divido um apartamento na rua do Resende com uma amiga.”
Tomamos de novo outro táxi. Quando pediu para o motorista parar junto a um prédio alto, de janelas pequenas, minha intenção foi continuar dentro do carro e seguir para casa. Mas ela me tentou.
“Você não vai saltar?”
“Receio que não vou encontrar condução, moro em Santa Teresa, acho melhor seguir em frente.”
“Ah, fica mais um pouquinho comigo...”, pediu numa voz que era um doce.
Acabei por aceitar.
“Você não falou que mora com uma amiga?”
“Moro.”
“Então, como quer que eu suba?”
“Acho que hoje ela não vai dormir em casa.”
Entendi seu desejo.
Entramos no prédio e subimos. Havia um porteiro que tinha cara de aborrecido. Mas quando a cumprimentou, deixou escapar um ligeiro sorriso. Quanto a mim, pareceu não dar por minha existência.
O apartamento ficava no décimo andar. Era pequeníssimo: apenas um quarto e um banheiro minúsculo. Mas era decorado com uma certa graça. Dava para os lados da Central do Brasil. O que tinha de pequeno contrastava com a vasta paisagem do centro do Rio, possível de ser vista pela única janela. Muitos prédios alternavam-se, como que disputando altura e espessura. O centro à noite tem um quê de soturno. Virei-me para os lados da rua dos Inválidos; era possível ver além da Lapa alguns prédios do centro financeiro, tinham quase todas as janelas apagadas, sobre os mais altos havia uma espécie de torre com algum tipo de iluminação. Pensei nos escritórios vazios, nos corredores quase fantasmagóricos àquela hora. Ao voltar-me procurando por Lara, reparei que ela estava nua.

Durante toda a semana ela quis que eu encontrasse com ela. Às vezes passeávamos pelas ruas próximas; outras, entrávamos em algum pequeno bar, na Lapa. Voltamos ainda uma vez ao restaurante do Flamengo.
O que Lara tinha de bom era o ardor na hora do sexo. Pouco conversava. Parecia não ter sobre o que dizer. E quando tinha era para falar sobre alguma coisa que uma ou outra amiga havia comprado. Quando eu ia ao seu encontro no dia seguinte levando de presente o objeto de que falara na véspera, ela só faltava pular de emoção. Me beijava muitas vezes e não queria me soltar.
Passei a freqüentar seu apartamento todas as noites. Comecei a desconfiar que sua amiga não existia. Não me custou a descobrir, por meio de uma gorjeta ao mesmo porteiro, que ela tinha um caso com um homem estranho, alguém que vivia da contravenção.
Desapareci então da cafeteria. Sabia o que aquele relacionamento podia me custar.
Num domingo, fui à praia. Minha intenção não era o banho de mar. Queria caminhar um pouco, relaxar. Estava cansado de tanto ler e escrever. As revistas me cobravam os artigos; as editoras, os livros. Não podia descumprir os contratos. Caminhava pelo calçadão de Copacabana, creio que ia pelo Posto 2 quando ouvi alguém chamar meu nome. Olhei. Era Lara.
Quis saber por que eu desaparecera. Disse que me procurara por toda parte, que estava sofrendo por causa da minha ausência.
Respondi qualquer coisa apressado e quis logo me desvencilhar dela. Olhei para um lado e para o outro, temia me deparar com o tal contraventor.
“Você está esperando alguém?”, ela quis saber.
“Não.”
“Por que está olhando assim, pra lá e pra cá?”
“Não sei, acho que é alguma mania” respondi já de saída.
“Ah, fica comigo, prometo uma surpresa, você não vai mais querer sair de perto de mim depois disso.”
“Surpresa; que surpresa?”, repeti.
“Fique e verá.”
Quis inventar uma desculpa, mas ela se mostrou tão afetuosa que acabei cedendo. E, além disso, vestia um biquíni mínimo.
Achou um local para sentarmos. Alugou um guarda-sol e duas cadeiras de praia. Colocou a sua bem junto a mim e ficou me acariciando o peito com uma das mãos.
Depois de alguns minutos, sugeriu.
“Vamos tomar um banho de mar?”
Eu não queria, mas ela insistiu, me beijou, me prometeu mil carícias. Acabei cedendo.
Entramos n’água e ficamos num pedaço em que o mar estava calmo.
Ela me abraçou e falou:
“Passa a mão pela minha cintura.”
Fiz o que pediu. Descobri que ela estava sem a parte de baixo do biquíni.
“Você está nua?”, foi a minha pergunta óbvia.
“Estou.”
“E onde está seu biquíni?”
Foi então que ela me mostrou uma pulseira de pano.
“Quer pra você?”, tirou no braço e prendeu num dos meus pulsos.
Namoramos ali durante quase uma hora.
Quando me dei conta de que o local estava cheio de gente, disse:
“Não é melhor você se vestir?”
“Ainda não”, respondeu resoluta.

Até hoje não consegui me livrar dela. Confesso que sua ousadia e seu ardor me deixam louco. Voltei a freqüentar a Cafeteria. Passo boa parte das tardes lá. E, quando pensou no seu protetor, sou assaltado por um ligeiro tremor. Mas prefiro acreditar que os porteiros de edifício, principalmente os noturnos, também têm seus personagens de ficção.

terça-feira, novembro 04, 2008

O flâneur de Walter Benjamin pelas ruas de Copacabana: João Antônio
João Antônio retrata em seus contos o homem comum, o homem do povo, aquele sobre quem pesa o maior fardo. Na história da literatura, a presença do homem do povo como protagonista é coisa recente. As artes de modo geral e, no específico, a literatura sempre comportaram apenas heróis oriundos de casas reais, e de preferência do sexo masculino. Seus feitos eram considerados grandiosos, mas, se eram assim classificados, o fato não se dava porque o homem comum seria incapaz de realizá-los, mas porque os heróis descendiam de “dinastias” de longa estirpe. As ações levadas a cabo por eles não deixavam de render fama para si, mas, ao mesmo tempo, conduziam os que lhe estavam próximos a uma certa distância do perigo.
Podemos exemplificar esse tipo de herói voltando à Antigüidade Clássica. Ali, um Aquiles ou um Ulisses aparecem com coragem e força descomunais, capazes de levar avante ações heróicas. Por que essas empreitadas só eram possíveis a eles? Talvez devido à origem desses homens. Nesse tempo, na representação artística, quem os pratica é alguém de origem nobre.
Durante muitos séculos, o herói foi, de modo geral, alguém dessa espécie, um homem de origem nobre, um rei, um príncipe, ou alguém ligado à casa real. Na modernidade, esse tipo de herói entra em decadência. Não é difícil saber o motivo. A burguesia inicialmente tem o poder econômico e, algum tempo depois, o poder político. Como continuar colocando alguém da nobreza no papel de herói se os nobres estavam em derrocada?
A Antigüidade Clássica, então, jazia enevoada num passado distante e idealizado; a nobreza do momento, em crise quase permanente.
Num primeiro momento em que se prenuncia a modernidade, logo após o Renascimento, já se antevê as engrenagens assumindo o papel que caberia ao herói. O mundo começa a mover-se em direção à técnica; quem a domina tem predominância sobre os outros. Embora algumas realezas se beneficiem da expansão marítima, logo se vê que seus domínios não durarão. Com a expansão comercial, lucra a burguesia, mestra na arte do comércio.
No final dos setecentos, levada a cabo a Primeira Revolução Industrial, já, em definitivo não há lugar para o herói. Por isso o vemos representado a princípio como um herói do passado. No presente, a quem caberá esse papel? Quem teria a força de um Hércules, a astúcia de um Ulisses, ou a habilidade de Aquiles?
Talvez tenha chegado a hora do homem do povo. Apesar da vida medíocre, vida de exploração a que é submetido, sem mesmo tempo para o descanso e com a saúde sempre debilitada, ele é o único que tem a força para levar o mundo adiante, mesmo que de forma não consciente, mesmo que aderindo ou não, já no final do século dezenove, ao marxismo.
Walter Benjamin observa essa questão e vai estudar esse tipo de herói no texto “A modernidade”, onde aborda a obra de Charles Baudelaire. Vejamos alguns recortes do que diz o filósofo a respeito desse herói:
O herói é o verdadeiro objeto da modernidade. Isso significa que, para viver a modernidade, é preciso uma constituição heróica. (p.73)
Baudelaire [...] reconhece no proletário o lutador escravizado.(segundo Baudelaire, apud Benjamin) é impossível não ficar emocionado com o espetáculo dessa multidão doentia, que traga a poeira das fábricas, inspira partículas de algodão, que se deixa penetrar pelo alvaiade, pelo mercúrio e todos os venenos utilizados na fabricação de obras primas. (p.73)
Aquilo que o trabalhador assalariado executa no labor diário não é nada menos do que, na Antigüidade, trazia glória e aplauso ao gladiador. (p. 74)
O herói é o verdadeiro objeto da modernidade. Isso significa que para viver a modernidade, é preciso ter constituição heróica. (p. 73)
Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu assunto heróico. (p. 78)
Tais citações nos bastam para que possamos estudar um pequeno aspecto da obra de João Antônio. Escolhemos para esse fim o livro em Ô Copacabana!, sobretudo o trecho em que privilegia a então galeria Alaska, páginas 39 a 50.
O bairro, um dos mais característicos do Rio, é retratado pelo autor de Malagueta, Perus e Bacanaço como um bairro onde se mistura todo tipo de gente. A galeria, citada no conto, até os anos de 1970 era um conglomerado de comércio a varejo, bares e boates. O freqüentador do local de modo geral era o homem ou a mulher do povo, ávido por algum tipo de prazer ou divertimento. Dentre esses predominava um número muito grande de malandros, vadios, pequenos aproveitadores, homossexuais masculinos e femininos etc.
Eis como João Antônio caracteriza o bairro, a galeria e as personagens:
[...] esta hora cinza, chumbo carregado, hora parada, neutra, a que os boêmios, os pederastas, os artistas da noite, as mulheres e seus cáftens, as curriolas da galeria chamam de rabo da manhã.
Sete da noite, quando Copacabana troca de mão, num golpe, na muda da turma de garçãos, barbeiros, balconistas, motoristas de táxi, botequineiros, e o resto dos serviçais, a luz elétrica acende o olho diferente, vesgo da noite na galeria.
A moçada sai da Zona Norte ou dos subúrbios lá longe, toma suas luzes como modelo de vanguarda no Rio. No bairro se sabe vestir bem, comer bem, beber o melhor. E os meninos, cabeça cheia, começam a descer dos ônibus xexelentos, vindos do outro lado da cidade, o bravo e esquecido, onde moram três quartos das gentes do Rio de Janeiro. Sem praia e sem recreio. A meninada principia na galeria Alaska, certa de que com o físico, juventude, gingas, bossa, conseguirá o melhor em mulheres, boates, facilitações e exuberância.
O trecho começa com o amanhecer no bairro, o conto descreve os primeiros empregados que chegam dos subúrbios distantes, o caminhão com o entregador de leite, os bares iniciando o expediente, as lojas se abrindo, o acordar dos moradores e também os vagabundos que vivem do esforço alheio. O autor observa a vida dos trabalhadores da galeria: zeladores, seguranças, manicuras, copeiros, barbeiros, vendedores ambulantes etc, como também a dos moradores do prédio acima da galeria, apelidado de balança; estas pessoas fazem o papel de classe média, mas na verdade vivem em dificuldades, cuidando para que a máscara da aparência não descole. A vida marginal não é desprezada. Seres humanos emigrados de bairros distantes, que viverão às custas de alguém, muitas vezes mesmo de modo humilhante, apenas para livrar-se do modelo de vida provinciano e sem perspectiva da Zona Norte, ou da Baixada Fluminense.
Todos esses personagens são tratados senão com simpatia, ao menos como seres capazes de direcionar a própria existência. João Antônio não os julga. Apesar de rotulá-los, não os condena dentro do moralismo predominante, mesmo no momento em que o esforço de cada um deles na luta pela sobrevivência redunde em fracasso.
O caráter heróico desse flâneur da pós-modernidade está em demonstrar força suficiente para o que der e vier, a troco de que consiga ascender socialmente, ou ao menos viver de modo melhor do que vivia outrora. Copacabana está mais próxima de uma Nova York, uma Londres, ou uma Paris, do que da localidade distante de onde provém esse herói, que não sucumbe por antecipação.
O homem comum anda pelo bairro, observa as mulheres, olha as vitrinas, procura oportunidades. Alguns se agarram ao pequeno emprego, outros biscateiam para, durante a noite, escapar em uma boemia que há de recompensar o esforço. Tudo em troca de uma vida que lhes afigura senão heróica, ao menos uma vida de Zona Sul, local badalado, centro de poder econômico e de emancipação social, ao menos em teoria. O simples cidadão sabe construir abstrações.
João Antônio poderia ser esse flâneur que Benjamin retrata na modernidade baudeleriana. Não estaria deslocado no tempo nem no espaço, porque observa a decadência de um sistema e também constata que, na verdade, o lugar do herói continua vago; e se por acaso em algum momento o homem do povo o preenche é através das mãos do artista que o transforma em ser que resiste, ao menos nessa arte de representação chamada literatura.
Referências bibliográficas:
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III – Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Tradução de José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1994.
ANTÔNIO, João. Ô Copacabana! Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.