segunda-feira, dezembro 28, 2009

Clique no link abaixo para ter acesso à tese de doutorado defendida por mim, com sucesso, em 4 de dezembro de 2009, orientada por Antonio Carlos Secchin, tendo como integrantes da banca: Flávia Vieira da Silva do Amparo; Godofredo de Oliveira Neto; José Luís Jobim; Sérgio Fuzeira Martagão Gesteira.
http://www.letras.ufrj.br/posverna/doutorado/GamalHJ.pdf

sexta-feira, dezembro 11, 2009

Chinua Achebe lança no Brasil livro mais de 50 anos depois de escrito

Haron Gamal, JB Online

RIO - No fim de outubro morreu Claude Lévis-Strauss, antropólogo que mudou o entendimento do homem ocidental a respeito de sociedades tidas como diferentes da matriz europeia. Através dele, passamos a compreender que não existem grupos humanos superiores ou inferiores. Todas as sociedades possuem capacidade de explicar o seu estar no mundo, ainda que de modo mítico, e de solucionar os próprios problemas, a menos que sejam externos as suas origens. Após a leitura de O mundo se despedaça, do nigeriano Chinua Achebe, livro publicado pela primeira vez em 1958 pelo escritor que viria a se tornar detentor em 2007 do prestigioso prêmio Man Booker International, é possível perceber claramente a impetuosa violência exercida pelo homem branco, ainda que sob a capa do cristianismo, no contato e na evangelização promovida em África, a partir de sua chegada nas sociedades locais.

Things fall apart – nome original do livro, já que Achebe é escritor africano de língua inglesa – inicia-se descrevendo a fama de Okonkwo, personagem que trouxera orgulho à sua aldeia ibo, em Umuófia, “onde tudo se tinha por perfeitamente regulado e imutável”, palavras de Alberto da Costa e Silva, no prefácio à narrativa. A comunidade ainda vivia seus dias de liberdade, não imaginando o que estaria por vir. Embora imperfeita, como qualquer outra sociedade, e até mesmo possuidora de idiossincrasias incompreensíveis àqueles fora de seu círculo, vemos um mundo em que vigoram os valores locais, o respeito aos deuses, e uma hierarquia não muito distinta daquela a que estamos acostumados a observar nas sociedades de origem europeia, baseada na acumulação de riqueza. A fratura que se apresenta entre Okonkwo e sua sociedade surge já no primeiro capítulo, na imagem do pai do personagem, uma vez que entre os ibos, como entre quase todos os povos semelhantes, valorizam-se os guerreiros, os lutadores e aqueles que enriquecem por esforço próprio. Seu pai, Unoka, desconversava quando o assunto eram as guerras e o trabalho na lavoura. Gostava de música, era exímio na flauta, mas devia muitos cauris (moeda local) a quase todos da aldeia. Como consequência, vivia com a família na mais profunda pobreza. Okonkwo, para fugir ao estigma paterno, preenche os requisitos. Desde cedo se destaca nas artes marciais, vencendo o lutador mais forte do povoado vizinho; é o mais bravo dos guerreiros; enriquece desde cedo com o trabalho e recebe ajuda de seu chi (o deus de cada pessoa, mais do que um anjo da guarda), conquistando posições e tornando-se um dos mais importantes membros do clã.

Chinua Achebe, ao escrever o romance, parte de uma situação que o põe em ligeira vantagem. O mundo que desfila nas páginas de sua narrativa já não existe há pelo menos 200 anos. O autor recria a vida em Umuófia, seus costumes, os títulos que os mais importantes obtinham, como os conseguiam, como eram as casas habitadas pela população, as negociações para os casamentos, as festas, uma sociedade em que deuses e homens estão quase que irmanados; até os mortos encontram um meio de permanecer entre os vivos, no cotidiano da aldeia, através dos egwugwu, mascarados que encarnam os antepassados dos integrantes dos clãs. O narrador tenta não tomar partido, pois há cerimônias de sacrifícios, como o assassinato de um jovem chamado Ikemefuna, entregue à aldeia ibo como pagamento por danos que alguns dos integrantes da aldeia vizinha causaram a Umuófia. Há também costumes totalmente estranhos a quem não pertence a essa sociedade africana, como o abandono de crianças na Floresta Maldita, quando nascem gêmeos. Enfim, as fissuras da narrativa e os titubeios daquele que nos conta a história nada mais são do que elementos premonitórios.

A menção ao homem branco acontece diretamente apenas após a primeira metade da narrativa. O fato, no entanto, está presente durante todo o tempo no subtexto. O narrador, apesar de ainda não descrever o futuro invasor, não consegue esconder que este está à espreita. Advirá a decadência e a destruição.

O herói, Okonkwo, cai em desgraça ao agredir uma de suas mulheres na Semana da Paz, período em que todos deveriam manter-se em vigília. Acaba também por matar acidentalmente um jovem durante a cerimônia fúnebre do membro mais idoso de Umuófia. É condenado a sete anos de exílio.

Retira-se com a família para a terra de sua mãe. Após ser acolhido pelos parentes dela, permanece todo o período de exílio trabalhando para enriquecer novamente e planejando sua volta. Deseja retomar o prestígio e as honras que possuía. Mas os deuses já não estão a seu favor. Ou melhor, talvez já estivessem em retirada. É época de um novo deus, fora das tradições ibo.

Ao voltar, o herói se depara com outra realidade. O local já fora tomado pela religião e, sobretudo, pelo tribunal do homem branco. O que resta ao habitante original e a sua família? Resta outra espécie de exílio: vive na aldeia em que nasceu, permanece entre os seus, mas o mundo tornara-se outro. A Ibolândia nunca será a mesma.

“O regresso de Okonkwo à terra natal não fora tão memorável quando desejara. Verdade que as suas belas filhas despertaram grande interesse entre os pretendentes e que, pouco depois, desatavam-se as negociações para os casamentos. Mas, à parte disso, Umuófia não parecia ter dado nenhuma atenção especial ao retorno do guerreiro. O clã sofrera tão profundas mudanças durante seu exílio, que estava quase irreconhecível. O povo só tinha olhos para a nova religião, o novo governo e os novos entrepostos. Ainda havia muita gente que considerava as novas instituições malignas, mas mesmo essa gente não pensava nem falava outro assunto e, sem dúvida alguma, não estava interessada no retorno de Okonkwo.”

Hoje, após a destruição de praticamente todas as sociedades que não seguiam o pensamento europeu, tanto através da força militar, como da econômica e ideológica, tenta-se preservar o que delas restou. Entre outras ações, criam-se leis para que as pessoas estudem suas origens africanas e as valorizem. Mas, como se pode observar, a história é contada pelos vencedores. Pior ainda (ou será melhor?), um livro lançado há 51 anos só agora chega-nos traduzido ao português, num tempo em que cresce o número de pessoas que agem como os primeiros missionários que chegaram a Unuófia, impondo governo e religião.

Que a arte e, sobretudo, a literatura consigam cumprir sua "missão". Cito, mais uma vez, o prefaciador da obra: “Este livro só existe porque Umuófia ingressou num império. Porque seus valores puderam ser descritos e traduzidos na língua do conquistador e, assim, tirar uma impressentida desforra.”

14:28 - 04/12/2009

terça-feira, dezembro 08, 2009

Logo ali, em Copacabana

Dani, escuta, é rápido. Sei que de repente você está esperando outra ligação, quero falar só mais uma coisa. É que domingo, na praia, arranjei um namorado. Nada sério, tu sabes, mas pude me divertir. E o homem é bem mais velho. Pode ser que tenha a idade do meu pai. Mas acho que deve ser um pouquinho mais jovem. Aconteceu assim, perguntei: você sabe me dizer em qual estação tenho que saltar para ir à praia no ponto tal? Ele me ensinou direitinho. Quando saltei e caminhei em direção à superfície, encontrei o homem de novo, dei um sorrisinho e segui. Ao chegar ao ponto da praia que desejava, o local estava repleto de pessoas. Mas sempre há espaço para uma moça bonita, não é mesmo? Tanto mais para uma jovem de biquíni mínimo, como o meu. Não te contei? Comprei um biquíni novo. E menor. Lindo. Não falta homem a me olhar. E lá caminhava eu, com o bumbum de fora, chamando de todos a atenção. Logo encontrei alguns conhecidos naquele pedaço da praia. Um moreno bonitão veio conversar comigo. Mora aqui perto, me reconheceu. Depois veio uma amiga dele. Ficamos juntos os três. Mas tudo na maior liberdade. Passei o protetor e entrei no mar uma vez. Tomei duas latas de cerveja. Ah, que arrepio, tanto o mar como, depois, a cerveja. Foi então que percebi o homem a quem pedira informação. Me acenou do quiosque. Ficou olhando pra mim um tempão. Fez sinal para que eu fosse até ele. Reparei que me convidava para acompanhá-lo no quiosque. Mas eu é que acabei fazendo que se aproximasse. Naquele momento, estava sozinha. Ele demorou um pouco, mas veio. Sentou-se ao meu lado e desfiamos uma conversa de que já nem sei qual o assunto. O homem parecia não se dar conta do meu corpo nem da minha nudez. Cheguei a pensar: o que ele está querendo? “Não entra n’água?”, instiguei. Entramos. Dentro d’água, pude senti-lo melhor. Mais uma vez fui eu que tomei a iniciativa: puxei-o pra mais perto. Agarrei o homem pela cintura. Ele envolveu meu corpo, percorreu, suave, os meus quadris. Desceu um pouco as mãos até tocar o meu biquíni. No momento pensei: “pena que não estou com um biquíni de lacinho!”. Você está rindo, Dani? Me acha maluca? Já sei, você pensa que sou tarada. Mas nada disso, só queria me divertir um pouco. Ele é tímido, sabe, muito tímido. Não tentou nada além das duas mãos na minha cintura, no máximo nos meus quadris. Eu quis que me desse um beijo. Mas lógico que nada falei. Seria demais, não? Um beijo, ainda mais dado por mim. Duvidas que não beijei o homem? Não, não beijei. Você sabe que sou atirada, mas não tive coragem. Tudo porque ele é bem mais velho do que eu. Caso fosse da minha idade, ou mesmo apenas um pouco mais velho, eu não o perdoaria. Agarraria o coitado ali mesmo. Após sairmos d’água, fui com ele ao quiosque. Disse que eu podia pedir o que quisesse. Sabes que não sou interesseira. Sou até bastante modesta. Acompanhei-o na cerveja, num tira-gosto simples, acho que batatas fritas. Antes de ir embora, peguei o número dele. Da casa e do celular. Ele mora ali mesmo, em Copacabana. Educadamente me convidou pra vir um dia de semana, jantarmos num restaurante de minha escolha, depois passearmos um pouco. O que achas, Dani? Não acreditas? Pensas que sou mentirosa? Não ficaria esse tempo todo no telefone pra falar bobagem. Mas não vou, não, Dani. Foi apenas um flerte de praia. Acho que deve ser ótimo ter um caso com ele. Mas prefiro ficar por aqui com o meu pessoal, neste bairro distante, longe da praia, longe do Rio que aparece na TV. Você iria, Dani? E logo no primeiro dia? Lembras que a tarada sou eu? Não se importaria em deixar que ele lhe tirasse o biquíni? Não sei, Dani. Tenho consciência de que teria muita vantagem, sei também que por aqui há muitas meninas que desejariam uma facilidade dessas. Você diz que sou sortuda, que não sei aproveitar as oportunidades e que meu negócio é trabalhar de garçonete, não é mesmo? Mas, Dani, o que tiver de ser vai ser. Caso meu destino seja esse homem, ele vai aparecer por aqui. Ou mesmo vou encontrá-lo novamente, ao acaso. Aí, quem sabe, me atiro nos braços dele.

sábado, dezembro 05, 2009

Livro sobre Deleuze mostra como a filosofia resiste à dominação

Haron Gamal, Jornal do Brasil

RIO - Há um momento em Deleuze, a arte e a filosofia no qual Roberto Machado afirma: “E quando Deleuze diz que numa linha de fuga há sempre traição, isso significa trair as potências fixas, as significações dominantes, a ordem estabelecida – o que exige ser criador”. Talvez, neste trecho, o professor titular de filosofia do IFCS e da UFRJ tenha ressaltado de modo genial um dos pontos mais importantes na obra do pensador francês. Devido à complexidade dos temas abordados e às novas nomenclaturas usadas para captar e expressar o real, Gilles Deleuze tenha-se tornado um dos filósofos de mais difícil assimilação na contemporaneidade. A colocação de Machado, no entanto, não deixa de ser bastante esclarecedora.

Costuma-se dizer que Deleuze é o filósofo da diferença. Ele tentou durante toda a vida desvincular sua reflexão de qualquer tipo de filosofia de identidade ou de representação, chegou a utilizar parte de teorias de filósofos aos quais se opõe, como Platão, para elaborar um modo de reflexão sutil, que não se situa em função de signos cristalizados, imagens ou outros sistemas de significação. A filosofia teria linguagem própria, não estaria submetida a qualquer tipo de representação, seja ela imagística ou vocabular. Daí a dificuldade de penetrar no universo do pensador, já que sua linguagem necessita de novos signos, de nova instrumentalidade, isto é, de nova sintaxe – para Deleuze, filosofia é criação – e, quando se utiliza da existente, torna outros os seus sentidos e significados.

Roberto Machado apresenta uma arqueologia da formação do pensamento e dos conceitos deleuzianos, desde Platão, Aristóteles, Espinosa, Kant e Nietzsche. Parte da filosofia como representação, desenvolvendo o pensamento do filósofo francês, um pensar oposto à representação e à identidade, e vai mostrar “o ápice da diferença”, que é o objeto talvez fundamental da filosofia de Deleuze. Machado transita pela história da filosofia não só com o objetivo de discutir a contestação do pensador à tradição, mas, sobretudo, para dimensionar as questões que este traz à tona para tornar a filosofia um tipo de arte, a qual, independentemente de modelos e referências, desenvolve linguagem própria e escapa dos instrumentos de dominação.

Já na introdução, que tem como título “A geografia do pensamento”, Machado privilegia o espaço, ou topos, em que a filosofia de Deleuze transita, em detrimento da história. Esse espaço apresenta uma espécie de zona de iluminação em que estariam confluentes, concomitantemente, conceitos de alguns filósofos canônicos que, mesmo tendo pontos contestados e desprezados pelo autor francês, intercedem na mesma geografia, permitindo a gestação de novos conceitos. Na verdade, uma espécie de “roubo” ou “apropriação”, palavras do próprio Deleuze, do pensamento alheio descontextualizado de sua natureza original a produzir novas potencialidades. O mesmo acontece na leitura que o filósofo faz de escritores, como Proust e Kafka, e de pintores e cineastas.

O livro é desenvolvido em oito partes, que tratam inicialmente de pensadores da tradição filosófica e dos diálogos possíveis a partir de suas obras com o próprio Deleuze. Mesmo que essa interlocução se dê, em relação a alguns desses pensadores, de modo negativo. Como exemplo, podemos citar a negação do platonismo, já que esse é situado como uma filosofia de representação e de identidade, inversão feita por Gilles Deleuze para afirmar uma filosofia que nega essa mesma representação e opta pela produção de conceitos.

A primeira parte aborda o “nascimento da representação”, onde são situados Platão e Aristóteles. A segunda, nomeada “O ápice da diferença”, culmina com o pensamento de Nietzsche – segundo Machado, o único filósofo a quem Deleuze não apresenta restrições.

As partes 3, 4 apresentam, respectivamente, “Kant, diferença e representação” e “A doutrina das faculdades”, que contém os pressupostos da representação e a diferença do empirismo em relação à abordagem deleuziana. A parte 5 tem como foco a relação filosófica entre Deleuze e Foucault, ressaltando a proximidade entre os dois pensadores.

Daí em diante, talvez uma das seções mais interessantes do livro, é abordado o instrumental teórico de Deleuze em relação às artes. Machado mostra como o filósofo, num diálogo com a literatura, a pintura e o cinema, elabora não uma reflexão sobre essas artes, mas utiliza-se delas como um novo modo de filosofar, situando filosofia e criação artística na mesma interseção geográfica. Tal empreitada não se daria apenas a favor do pensamento, mas tendo em vista que, para Deleuze, a filosofia visa a tornar linguagem o inefável e, até mesmo, o impensável. A prática filosófica teria a sua disposição um arcabouço conceitual em que arte e filosofia transitariam pela mesma via, a partir do momento em que ambas trabalham com a criação, coexistindo na mesma zona de luz ou sombra.

Vejamos uma passagem do livro em que Machado discute o que Deleuze apresenta sobre literatura. Inicialmente, utiliza uma pergunta do próprio filósofo: “O que se torna quem escreve?”. A seguir, o professor esclarece: “Sua resposta é que, se escrever é tornar-se, trata-se de se tornar outra coisa que não escritor, tornar-se estrangeiro em relação a si mesmo e a sua própria língua. E uma das maneiras como ele aborda a questão é pensando o processo de minoração do escritor através da relação entre literatura que ele chama de menor e o que também chama de 'povo menor'. Esse tema está no âmago da filosofia de Deleuze, explicitamente desde Kafka, por uma literatura menor. Ele aparece com clareza num pequeno artigo de 1978, 'Filosofia e minoria'. Esse texto opõe maioria e minoria qualitativamente e não quantitativamente. Maioria implica uma constante, um modelo, uma medida pela qual a maioria é avaliada. O que é ser maioria hoje? Ser homem, branco, ocidental, americano do norte ou europeu, masculino, adulto, racional, heterossexual, morador de cidade... O que é ser minoria? Desviar-se do modelo, ao mesmo tempo teórico e político. O minoritário é um devir potencial que se desvia do modelo. E Deleuze salienta que devir jamais é devir majoritário, que ser majoritário nunca resulta de um devir”.

Na verdade, pensar a diferença é possível quando a filosofia, mesmo se apropriando do cânone, destorça-o de modo a contestar modelos e representações quase sempre hegemônicos, em favor de um pensar que se situe numa zona de sombreamento, onde se dá uma espécie de resistência, cujo objetivo é contrapor-se a qualquer tipo de cristalização que redunde na perda da singularidade.

Por isso, para Gilles Deleuze, a arte se torna tão cara. Essa mesma arte que expressa questões aparentemente menores, mas que funciona como uma “máquina de guerra”, contrapondo-se ao “aparelhamento do estado”, este sempre se fazendo passar por hegemônico e fazendo-se crer preocupado com o bem-estar da maioria. Fato que não deixa de ser uma ficção.

13:07 - 13/11/2009

sábado, novembro 07, 2009

Livro sobre Heidegger reflete o estudo da ética na obra do pensador

Haron Gamal, Jornal do Brasil

RIO - Alexandre Marques Cabral propõe em Heidegger e a destruição da ética o estabelecimento de uma volta ao ethos, isto é, morada, no sentido original, a partir da filosofia de Martin Heidegger (1889-1976). Constatando que a crise do pensamento contemporâneo, sobretudo no Ocidente, é uma consequência da crise da própria racionalidade, a ética não estaria imune a ela.

O início dessa crise já aconteceria a partir de Aristóteles, com o estabelecimento do raciocentrismo, expandir-se ia com a escolástica, na Idade Média, e atingiria seu auge na modernidade. Retornando ao pensamento arcaico-originário, mais precisamente aos filósofos pré-socráticos, que por meio do discurso mítico-poético teriam condições de abordar ser e ente sem a fissura que passa a existir já no século 5 a.C. a partir do estabelecimento do logos e a realização da metafísica, seria possível pensar o dasein (“estar-aí”, existência, segundo Heidegger) numa perspectiva em que o espírito da letra predominaria com todo seu aparato de possibilidades de significação. O ser, segundo Heidegger, constituir-se-ia mais como verbo do que como substantivo, mostrando-se em constante realização, permitindo seu desvelamento /velamento cuja abordagem o aproximaria do universo da poesia, com todas as possibilidades da metáfora. A cristalização do pensamento racional criou conceitos e estabeleceu sob sua tutela certa tradição em que passaram a existir doutrinas filosóficas e leis morais que não acompanham o “estar-aí” – experiência permanente e essencial do ser – produzindo uma espécie de engessamento da reflexão.

O livro é dividido em três partes. Na primeira, o autor estuda O problema do ser e o dasein em ser e tempo, de Heidegger – pressupostos da ontologia fundamental necessários para a compreensão do conceito de ética originária presente na Carta sobre o humanismo, também de Heidegger. É interessante observar como Alexandre Cabral desenvolve os fundamentos e conceitos da filosofia arcaico-originária expostos pelo filósofo alemão. O autor brasileiro aborda a questão sobre o dasein de modo bastante explicativo, já que Heidegger é um grande desafio até mesmo para os pensadores profissionais: “A locanda onde o ser é achado, porque ali vigora, é o homem originariamente concebido. Dissemos 'originariamente concebido' porque, de forma alguma, como sempre o fez o pensamento ôntico, o homem é por Heidegger analisado objetivamente. Ele não é nem sujeito, no sentido moderno do termo, nem uma substância racional capaz de inteligir as essências objetivamente dadas dos entes, como pensou a tradição medieval, por exemplo”. Fundamental, da mesma forma, é o capítulo 3, em que é analisado o conceito de “ser-com”, porque é a partir dele que, na parte final, chegar-se-á à noção de solicitude.

Na segunda parte, o brasileiro apresenta “A ética originária e seus elementos”, delineia o percurso do pensamento arcaico-originário até o estabelecimento da metafísica, e distingue a concepção tradicional dos conceitos de Heidegger. Ao mesmo tempo, é muito importante o tópico “Linguagem e poesia”, em que a ética é apresentada como po-ética, isto é, uma concepção de ética baseada na linguagem. Se o dasein é o ente realizando-se na plenitude do ser, no ato constante de ek-sistir, nada melhor do que a linguagem poética, em seu espírito original de criação e revelação, como espaço de desvelamento do ethos.

Na terceira parte, Alexandre Cabral propõe a destruição da ética tradicional, isto é, uma espécie de abandono dos princípios morais cristalizados pela tradição, os quais já não mais seriam capazes de acompanhar o ato de realização do ser na contemporaneidade.

A questão sempre presente, o estabelecimento de uma nova ética, é que ela não se prenderia às ideias morais, mas levaria a existência a uma espécie de não-esquecimento do ser, coroando-o com a perspectiva de solicitude, um comportamento que, ao mesmo tempo, o tornaria aberto para os outros e colocaria o existir numa perspectiva de não-esquecimento desse mesmo dasein.

Pensar a ética a partir de Heidegger nos leva a duas questões fundamentais: a primeira é que sua concepção de ser, ao tentar escapar do raciocentrismo aristotélico, leva a filosofia de volta aos pensadores pré-socráticos e acaba por permitir uma forma do pensar fora da razão tradicional numa modernidade em que a própria ratio se acentuou realizando-se como tecnocentrismo (segundo o filósofo alemão uma das causas do esquecimento do ser); a outra perspectiva envolve o próprio Heidegger, como cita Alexandre Cabral ao tentar argumentar que a pessoa do autor não deve predominar sobre a obra. O filósofo da Floresta Negra envolveu-se com o nazismo, defendeu-o e formulou questões teóricas que o justificavam. O fato de dizer que Heidegger permaneceu pouco tempo filiado ao Partido Nacional-Socialista, afastando-se logo a seguir, e que foi perseguido por ter renunciado ao cargo de reitor da Universidade de Freiburg não o isenta de participação em um dos regimes mais cruéis do século 20. Aqui se estabelece o paradoxo da utilização da filosofia como teleologia (doutrina que identifica a presença de fins guiando a humanidade). O pensar como reflexão é uma coisa, mas o estabelecimento de um arcabouço teórico com a intenção de gerar algum tipo de ação, ou mesmo de discutir comportamentos, de antemão já é problemático, tanto mais quando inspirado no autor de Ser e tempo. A filosofia heideggeriana não se restringe apenas à ética, sabe-se disso, a questão principal é a existência como discurso. O estabelecimento de uma ética a partir de um filósofo controvertido como Heidegger, no entanto, caso um dia venha a vigorar, será uma grande ironia da história.

O que deve ser bastante elogiado no livro de Alexandre Marques Cabral é a apresentação pormenorizada e didática do pensamento de Heidegger, tornando o filósofo assimilável até mesmo para o público externo ao universo acadêmico.

quinta-feira, outubro 01, 2009

Sebald revela a dor e a melancolia dos refugiados em Os emigrantes

Haron Gamal*, Jornal do Brasil

RIO - O século 20, no seu início, apresentava-se como um período pleno de possibilidades. A ideologia do progresso e a perspectiva de um futuro que trariam soluções para a maior parte dos problemas humanos pareciam dignas de credibilidade.

A arte soube captar bem o espírito da época, tanto a favor como contra. A vanguarda europeia mostrou-se sensível ao expressar suas inquietações sobre um passado que insistia em se fazer presente tanto nas concepções artísticas tradicionais como no modo de vida, ainda carregado de tinta dos oitocentos. A obra de Proust é rica em fazer desfilar uma sociedade em que homens e mulheres relutam em abandonar valores nobiliárquicos e um tom em que predomina o apreço pelo antigo. Não se quer dizer que a leitura de Proust não seja adorável. Talvez seu sucesso aconteça devido a isso: retrata um mundo que já desapareceu ou está em vias de desaparecer, um modo de vida que grande parte das pessoas gostaria de ter vivido em todo esplendor.

No início do século 20, concepções futuristas vão tentar dinamitar o passado e apostar o futuro da humanidade na máquina. Tal modo de ver o mundo não é novo. Muitos séculos antes, o homem do renascimento já expressava a opção pela vida secular e começara, ali, a apostar suas fichas em algum tipo de engenho.

Marinetti, porta voz do futurismo italiano, na primeira década dos novecentos, chega a propor a destruição dos museus e das obras de arte do passado, colocando em primazia o engenho mecânico.

Depois temos Joyce, que já nos apresenta um tipo de herói que é fruto da modernidade; o homem fragmentado, um Ulisses que precisa juntar os cacos de suas 24 horas para que a existência tenha sentido. É interessante observar que o escritor dublinense publica sua obra máxima no ano da morte de Proust – 1922. É como se o século 19 tivesse terminado definitivamente para dar lugar ao século 20.

A literatura de W. G. Sebald (1944-2001) apresenta o resultado de um período em que o humano foi deixado de lado, quando a ênfase da vida se voltou para o negócio, para a indústria, para a economia. Foi no começo do século passado que a educação e a cultura começaram a voltar-se para a produtividade.

Os emigrantes focaliza essa questão. Quem são os personagens que ali desfilam, plenos de saudade e de melancolia? Tudo leva a crer que, impelidos pela necessidade da partida, esses seres deixaram seus lugares de origem para tentar a vida em países distantes, longe da família e envoltos em total solidão. Não importa qual o motivo, se econômico ou político – aqui entram os refugiados, como os judeus e os foragidos dos regimes totalitários.

Na literatura desse autor alemão, que trocou cedo seu país pela Inglaterra, onde trabalhou como professor de literatura e morou até morrer, percebe-se o lugar provisório em que ele e seus personagens se situam. É como se sentissem desconfortáveis na condição de emigrantes. Mas será que teriam para onde voltar?

O livro é constituído de quatro relatos. Em todos eles, Sebald faz um inventário dos escombros do passado através da vida pregressa de cada personagem. Um trecho da primeira história é emblemático. O narrador, que nunca tem um pouso definitivo, informa: “Tivemos, dr. Selwyn e eu, uma longa conversa cujo ponto de partida foi sua pergunta se eu nunca sentia saudades de casa. Eu não soube direito o que responder, mas dr. Selwyn, após uma pausa para reflexão, confessou-me – outra palavra que não faz jus à situação – que no curso dos últimos anos fora tomado cada vez mais pela nostalgia”. A conversa ocorre no início dos anos de 70, na Inglaterra, e o personagem que dialoga com o narrador é um cirurgião aposentado, cujo objetivo de vida é apenas cuidar do jardim e de alguns animais; ele mesmo é um emigrante, mas deixara a distante Lituânia aos 7 anos de idade, precisamente em 1899.

A segunda narrativa começa com a seguinte informação: “Em janeiro de 1984, chegou-me de S. a notícia de que na noite de 30 de dezembro, uma semana após completar 74 anos, Paul Bereyter, que fora meu professor no primário, dera fim a sua vida ao deitar-se na frente de um trem a pequena distância de S., onde os trilhos desviam em curva do pequeno bosque de salgueiros e ganham campo aberto”.

Em cerca de 80 páginas, o narrador investigará as causas do suicídio do ex-professor, mas chegará apenas a conjecturas, o verdadeiro motivo ele não conseguirá descobrir. No final, sabemos que Bereyter viveu seus últimos dias na França e voltou à Alemanha para dar fim à própria vida.

Ambros Adelwarth dá nome à terceira história. Trata-se de um tio-avô do narrador que havia muito emigrara para os Estados Unidos (levando neste país uma vida extravagante) e volta para visitar a família uma única vez, no verão de 1951, quando o próprio narrador tinha apenas 7 anos. A impressão que causa em sua mente é tão forte, que ao tornar-se adulto, ele viaja à América em busca da história desse tio, que na ocasião já falecera. Recebe de uma tia a caderneta onde Ambros fazia anotações, descobrindo parte de sua vida e de suas viagens pelo mundo como pajem e companheiro de um milionário americano.

A quarta e última história inicia-se com o narrador chegando à Inglaterra como imigrante, num voo noturno: “Até meus 22 anos, nunca me afastei de casa mais do que cinco ou seis horas de trem, e por isso, quando no outono de 1966 decidi, por diversas razões, mudar-me para a Inglaterra, eu mal tinha uma idéia apropriada de como era o país e como eu, dependendo apenas de mim mesmo, me arranjaria no estrangeiro”. O narrador chega a uma Manchester fuliginosa, permeada por ruínas. Conhece então o pintor judeu-alemão Max Ferber e convive com ele. Anos mais tarde, quando Ferber, já famoso, encontra-se velho e doente, entrega ao narrador um pequeno diário com uma narrativa escrita pela própria mãe, na Alemanha, que contém a história dela e do modo de vida de uma geração que antecedeu à Segunda Grande Guerra.

Em todos os contos, suspeita-se que o narrador, de quem nunca sabemos o nome, seja o próprio Sebald. Ele sempre está às voltas com uma espécie de arqueologia, escavando o passado das pessoas e acabando por lhes dar vida própria. E, por mais simples que essas vidas tenham sido, sua narrativa consegue envolver todas elas num quê de importância, de algo único, cuja perda significaria a perda da própria poesia.

O que resta a esses personagens, que se perderam num constante exílio, é a representação de seu não-lugar através da arte, como ocorre a Ferber, que “trabalhava desde o final dos anos 40, 10 horas por dia, o sétimo dia inclusive. (...) Eu não cansava de me admirar de como Ferber, ao final de um dia de trabalho, produzia um retrato de grande vividez com as poucas linhas e sombras que haviam escapado à destruição”.

Assim também se apresenta a literatura de Sebald, quadros com grande vividez, que retratam, apesar do lugar sempre frágil que o ser humano ocupa, um momento máximo de lirismo, mesmo que depois sobrevenha a morte.

* Professor de literatura e doutorando em literatura brasileira pela UFRJ


quinta-feira, setembro 03, 2009

Edição de 'Dialética negativa' marca os 40 anos de morte de Adorno

Haron Gamal*, Jornal do Brasil

RIO - O século 20, com suas duas guerras mundiais, revoluções e conflitos localizados, foi mais do que suficiente para fazer ruir tentativas de explicações totalizantes insinuadas pelos sistemas de pensamento (metafísica ou filosofia) que, até o século 19, tentaram dar conta tanto da natureza humana, com suas formas e meios de manifestação e reflexão sobre o próprio estar no mundo e suas conseqüências, como da história. Hegel foi o último filósofo a elaborar um sistema que, a partir de pares opostos (ou em contradição aparente) levaria à síntese. Daí à elaboração do método, resultado de um engenhoso sistema de materialização do conhecimento, tentativa de estabelecer o caminho para validar o que se convencionou chamar de saber científico. Ao mesmo tempo, a questão para ser levada avante precisava de um sistema lógico ideal, que não tivesse em conta as idiossincrasias do homem e daquilo que se convencionou chamar de história.

Ênfase na subjetividade

Theodor Adorno nasceu em 1903, viu cair por terra todos os sistemas lógicos surgidos no percurso da filosofia, percebeu a ênfase na subjetividade em um tempo em que o objeto – o outro, aquilo que se apresenta fora do sujeito – mostrava-se insuficientemente explicado pela lógica, incluída aí a própria filosofia. Adorno viveu o desbaratamento da intelectualidade alemã durante o surgimento e crescimento do nazismo – o próprio regime hitlerista foi um dos absurdos que a filosofia não soube explicar. Precisou exilar-se na Inglaterra e, depois, nos Estados Unidos. Voltou a seu país, a Alemanha, depois do fim da Segunda Guerra.

O pensador alemão propõe em Dialética negativa uma dialética que não só convive com os contrários no método de análise, mas também na apreciação do objeto como algo com linguagem própria, dessemelhante do sujeito. Opondo-se a Hegel e mesmo a Heidegger, a quem acusa de posições idealistas quando trata da subjetividade em Ser e o tempo, Adorno contesta o conceito idealista de objeto, mostrando em primeiro lugar que toda reflexão, por mais pura que tente se apresentar, traz um rastro de mundaneidade do qual é incapaz de se desvencilhar. Num segundo momento, sua reflexão se dirige à análise da ontologia e suas aporias.

Só então, depois de mostrar as lacunas e os trâmites escorregadios pelos quais envereda Hegel, parte para apresentação de sua dialética, que não deixa de trazer em parataxe a coexistência com a diferença, com as contradições do ser humano e com a história.

A segunda parte do livro aborda o tema proposto pelo autor, apresentando conceitos e categorias; a terceira tem como título “Modelos”, com os seguintes tópicos: “Liberdade”; “Espírito do mundo e história natural”; e “Meditação sobre a metafísica”.

A crítica à filosofia da identidade, empreendida por Adorno, centra-se na afirmação de que a subjetividade, ao visar o objeto como meio de este estar apenas disponível a seus interesses, não observa nele o que lhe é contrário ou diferente. Uma vez que o almejado no não-semelhante está apenas em demonstrar a hipótese daquele que empreende a busca, só é levado em conta, no segundo elemento, o que tem de semelhante no próprio sujeito – o oposto visado teria algo que identifica a esse mesmo sujeito. Daí pretende-se chegar à síntese. As outras contradições imanentes ao objeto, que estão fora dos interesses do sujeito, não são levadas em consideração. Portanto, o método desenvolvido a partir da dialética hegeliana acaba não só sendo apropriado pela ideologia, como servindo à legitimação de seus interesses. Essa mesma ideologia avalizará todo o processo científico e a expansão do sistema de troca. Em sua extremidade, chega-se ao conceito de indústria cultural, que, ao fazer jus a todo o percurso, apresenta-se de maneira avassaladora como verdade, tornando difícil, ou mesmo impossível, a crítica a partir do aparelhamento resultante de todo o processo.

A Dialética negativa na verdade complementa, por confirmação filosófica, os conceitos críticos desenvolvidos por Adorno e Horkheimer na Dialética do esclarecimento. Em palavras do próprio autor: “A dialética enquanto procedimento significa pensar em contradição em virtude e contra a contradição uma vez experimentada na coisa. Contradição na realidade, ela é contradição contra essa última. Uma tal dialética, porém, não se deixa mais coadunar com Hegel. Seu movimento não tende para a identidade na diferença de cada objeto em relação a seu conceito; ela antes coloca o idêntico como suspeita. Sua lógica é uma lógica da desagregação: da desagregação da figura construída e objetivada dos conceitos que o sujeito cognoscente possui de início em face de si mesmo. A identidade dessa figura com o sujeito é a não-verdade. Com ela, a pré-formação subjetiva do fenômeno se coloca diante do não-idêntico, do indivíduo inefável. A suma conceitual das determinações idênticas corresponderia à imagem dos sonhos da filosofia tradicional, à estrutura a priori e à sua forma arcaísta, à ontologia”.

Idealismo sem verdade

Não mais seria possível, assim, o método lógico hegeliano, porque este, a partir do descarte das contradições presentes no objeto, apelaria por um idealismo que não corresponderia à verdade em nenhum período da história humana. O método hegeliano apresentar-se-ia como tout a coup para introduzir uma filosofia do progresso, já encetada a partir do iluminismo.

No ano de 1969 Adorno – que morreu há 40 anos – foi acusado pela esquerda alemã de não levar à prática seus escritos críticos. A partir do movimento estudantil que sacudiu a Europa, ele foi acusado também por Marcuse, que se colocou ao lado dos revoltosos. O alemão respondeu que não era sua incumbência traçar um plano de ação, que não se destinava a ele elaborar qualquer tipo de práxis ligada a sua teoria. Em determinado momento, falou que a própria pesquisa crítica já era um tipo de práxis. Em outras palavras: o exercício do pensamento já se mostraria a própria práxis, porque liberaria o ser humano dos instrumentos de dominação.

* Professor de literatura e doutorando em literatura brasileira pela UFRJ.

quinta-feira, agosto 06, 2009

Romance da alemã Juli Zeh tem como base a filosofia de Nietzsche

Haron Gamal*, Jornal do Brasil

RIO - Há uma passagem em A menina sem qualidades, de Juli Zeh, em que Alev, um estudante de 18 anos (meio egípcio, um quarto de sangue francês, cresceu na Alemanha, na Áustria, no Iraque, nos Estados Unidos e na Bósnia-Hezergovina) entra junto com Ada, uma menina de quinze anos – sua cúmplice – na sala de informática do colégio onde estudam, senta num boxe e grita: “Heil Hitler!”.

Tais dizeres não significam qualquer tipo de saudação neonazista, mas sim um teste: ambos praticam, naquele momento, um jogo arriscado, e o rapaz deseja se certificar de que os outros jovens que ocupam o mesmo local o estão escutando. Após o chamado e após perceber que ninguém lhe dera a atenção – todos estão mergulhados na rede e com fones no ouvido – ele deduz que pode conversar à vontade com sua companheira de turma enquanto instala um programa clandestino na página da escola, possível de ser acessado por uma senha que apenas ele e Ada conhecem e, mais tarde, o professor chantageado.

Fato periférico

O breve episódio – o fato de ter gritado o nome de Hitler – é periférico na longa narrativa de 508 páginas, mas a autora, ao colocar a saudação na voz de um jovem não-alemão, alguém oriundo do mundo árabe e com passagem por vários países, não cometeu a ação por acaso. É a única vez em que o nazismo é mencionado, e em apenas um momento do romance insinua-se sobre a Segunda Guerra.

O comparecimento da saudação, no entanto, deixa o leitor de sobreaviso. A história é ambientada numa Alemanha pós-11 de Setembro e contemporânea aos atentados de Madri. O romance também não salta em flashbacks com o objetivo de investigar o passado recente do país. Portanto, o que poderia nos revelar a saudação?

Mesmo tendo em consideração as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra, seria o comportamento dos jovens naquela sala, isolados entre si através de suas torres e fones, imersos cada um no seu próprio mundo, semelhante ao comportamento alienado do mesmo povo durante os anos do Reich? Estariam todos contaminados pelo pior flanco da mundialização e entregues mais do que nunca à ideologia de mercado, fato que leva os dois protagonistas a encetar uma aposta em que o único objetivo digno da existência é um tipo de jogo? Talvez seja isso que leva Ada a dizer que é uma mulher sem alma, isto é, sem essência e consequentemente sem particularidades.

Aqui precisamos falar sobre outro livro, também pertencente à cultura germânica e que declaradamente serve de matriz para o romance em questão: O homem sem qualidades, de Musil. Maurice Blanchot, em um artigo que fazia parte da coletânea O livro por vir, diz o seguinte: “O homem sem particularidades é o homem que tem, por vocação e por tormento, de viver a teoria de si mesmo, o homem abstrato que não é e não se realiza de maneira sensível”.

O mesmo Blanchot, ao discutir a tradução do título do livro de Musil para o francês, acrescenta: “Acho que eu teria ficado com a tradução mais simples, a mais próxima do alemão e a mais natural em francês: L'homme sans particularités [O homem sem particularidades]. A expressão 'o homem sem qualidades', embora de um uso elegante, tem o inconveniente de não ter sentido imediato, e a de deixar perder-se a ideia de que o homem em questão não tem nada que lhe seja próprio: nem qualidade, nem tampouco nenhuma substância. Sua particularidade essencial [...] é de que ele não tem nada de particular. É o homem qualquer, e mais profundamente o homem sem essência”. Embora seja outro o contexto em que o autor vienense escreveu seu extenso livro, enfocando a perda dessas particularidades diante do fim do Império Austro-Húngaro e da marcha da modernidade, o livro intensifica a questão.

Ada afirma: “Somos netos dos niilistas”. Mais adiante, ao depor em defesa de um amigo: “Pode acreditar em mim quando digo que me interesso muito pouco pela minha alma quanto pela sua ou pela de qualquer outra pessoa. Eu nem sequer acredito na existência dela. 'Alma' é um nome para a tentativa famigerada dos homens de se elevar por sobre o mundo dos objetos. [...] Mas quem se atreve a dizer que os homens não têm alma, colocando-o no mesmo nível dos outros fenômenos móveis e imóveis daquele conglomerado de causalidades que estamos acostumados a chamar de 'mundo', porque soa bonito e não diz nada, este se torna suspeito de ser um misantropo, um apoiador da eutanásia e um fã da tecnologia genética, mas, antes de tudo, um ser humano frio. Como se a alma fosse a sede do bem no ser humano! Uma alma é um espaço vazio retorcido em forma espiral, por dentro do qual voa uma bala de pistola. Onde está a alma quando os alemães marcharam em direção a todos os pontos cardeais a fim de molestar metade da crosta terrestre espalhando morte e destruição? Onde está ela quando crianças jogam futebol com as cabeças decepadas de outras crianças?”.

Pacto fáustico

Por isso, a ausência de particularidades revelaria um homem que não vive mais o mundo sensível nem se incomoda com a existência de sentimentos nobres. Talvez seja essa questão que faz o tradutor Marcelo Backes dizer, no seu esclarecedor posfácio, que “Ada faz com Alev um pacto fáustico sem precisar dar em pagamento uma alma que já não tem”. O romance tem como base filosófica Friedrich Nietzsche, com os conceitos de “vontade e poder”, “eterno retorno”, “super-homem” mencionados diretamente. O conceito predominante, no entanto, parece ser o de “amor fati”, única saída num mundo desprovido de crenças e ilusões. “Amor fati” significa “o dizer-sim dionisíaco em antítese à constante negação promovida pelo cristianismo”, segundo Backes.

A narrativa possui várias outras referências à filosofia e à literatura. A história, suas marchas e contramarchas, conceitos e definições também comparecem através do professor Hofi, um dos personagens mais interessantes do livro, depois de Ada, e que vale a pena ser observado com atenção.

O enredo poderia se resumir ao seguinte: uma aluna recém-chegada ao colégio Ernst Bloch (Bonn, Alemanha), mostra-se o contrário das princesinhas de plantão, tanto fisicamente como em leitura e conhecimentos, sendo capaz de duelar e vencer os professores mais perspicazes. Mas dizer que a questão se limita a isso é diminuir, e muito, o valor da narrativa. O que vai intensificar o conflito é a chegada de outro personagem, cuja teoria de vida nada mais é do que um grande jogo, em que predominam instintos de sobrevivências e não a existência de valores. Os dois, juntos, vão chantagear Smutek, um polonês imigrante, professor de germanística.

A narradora é uma surpresa a mais, o que mostra a perda de rumo da justiça, num mundo onde não há mais em que se ancorar. A menina sem qualidades revela a grande cultura dos escritores europeus de nova geração, como Juli Zeh, que conseguem perceber os instrumentos de dominação e dissecar os mecanismos de funcionamento de uma sociedade em que não mais existem parâmetros para nenhum tipo de crença ou valor.

* Professor de literatura e doutorando em literatura brasileira pela UFRJ

23:22 - 10/07/2009

quinta-feira, julho 16, 2009


Sob a luz e sobre a tela

Novo livro de Alexandre Brandão tem como foco o cinema e a literatura

A ditadura militar a gente não esquece. E é bom que seja assim. Melhor ainda é sempre ressaltar a face mais nefasta do regime que se instalou através de um golpe em primeiro de abril de 1964 e permaneceu no poder até meados dos anos de 1980. O livro de Alexandre Brandão cumpre a honrosa tarefa de não deixar a resistência aos militares passar em branco, não por tratar diretamente do assunto, mas devido ao fato de que a descoberta de um personagem colaboracionista causa desconforto e desagregação entre os integrantes de um grupo de amigos, na verdade escritores, no final de uma das narrativas.

A câmara e a pena, seu último livro, é constituído por duas novelas. A primeira tem como foco o cinema. Dividida em cinco partes, retrata o dia-a-dia de filmagem de um longa-metragem. A narrativa coloca sob suas luzes não propriamente a história a ser exibida nas telas, mas as feridas provocadas por um caldeirão de vaidades que flamam durante a própria filmagem. Os diversos profissionais sentem-se no direito de se colocar com ares de superioridade em relação aos companheiros. Qualquer tentativa de inovação é seriamente criticada e vista com muita desconfiança. Na verdade, a desculpa de que cada um tem um nome a zelar é útil apenas para bloquear a possibilidade de vôo maior daqueles que estão ao lado. Um diretor estreante, bem sucedido apenas com um curta-metragem, enfrenta toda a sorte de dificuldades, inclusive no espaço de sua vida particular. Vícios e frustrações vividos por membros da equipe também vem à tona, trazendo no bojo vários tipos de disputa, desde o desejo sexual pela moça bonita, assistente de produção, ou pela simpatia dos produtores.

Mas o que se pode perceber com mais intensidade não é o que vem à superfície, mas algo inerente a todo o ser humano: a doença, a decadência e a morte; mesmo que venha através de um suicídio. Uma atriz em fim de carreira é protagonista, não só do filme, mas também da narrativa. É ela quem determina o desfecho. A morte também trafega nas águas do jovem diretor, mas surge metaforicamente como perspectiva de fracasso profissional.

A segunda narrativa também é muito interessante: aborda um grupo de amigos, na verdade escritores, que se reúnem num café, todas as quintas, com a intenção de discutir seus textos e suas vidas.

Tendo como cenário o Rio, o grupo, que não deixa de trocar textos e mensagens eletrônicas durante a semana sempre visando ao encontro, reflete a fragilidade do ser humano numa cidade pulverizada pelo gigantismo, onde possibilidades culturais e criativas se apresentam diluídas. A novela tem como tema a solidão e o abandono a que todos estão submetidos. O grupo, apesar das diferenças, se mantém coeso até o aparecimento de um casal de idosos, que, sobretudo a mulher, deseja conviver entre os escritores. Uma coincidência acaba por colocar a todos diante da questão que não poderia passar em branco: a ditadura militar.

A câmera e a pena também pode ser visto como a tentativa de recuperar uma irmandade de escritores, numa época em que se multiplicam as oficinas literárias. Seus membros são dissidentes de uma delas. O autor não deixa incólumes os escribas profissionais que tiram seu sustento prometendo perspectivas de sucesso aos jovens que desejam ingressar no mercado editorial.

Outro aspecto de seu pequeno e muito bonito livro é trazer à lembrança fatos ocorridos em meados do século XX, quando, em Paris, grupos de escritores reuniam-se em cafés, para discutir filosofia e literatura. Tais episódios não são mencionados diretamente, mas aqueles que viveram o período ou estudaram sua importância sentem uma espécie de “busca do tempo perdido”.


A literatura brasileira atual não carece de bons e experientes escritores. Alexandre é um deles. Trata-se de seu terceiro livro, o que testemunha o bom momento do autor.

Eis um trecho, na segunda novela, que sela o destino do grupo:

“Teco foi pela escada para, com o tempo, pensar em alguma saída. O que fariam com Dona Rosário? Se arrependimento matasse, quem estaria descendo aquelas escadas seria um fantasma muito do mixuruca, cordato e obediente, assustado mais do que assustador. Não bastasse a fauna dos escritores – o senhor corneado por puta, a dona sabe tudo, o excelentíssimo gordo fujão, a gracinha da Clara, com essa não esculachava, e ele na pele do trouxa que acreditou na superioridade dos escribas –, o clube aceitou no quadro de sócios outro com tendência ao fracasso.”

É importante ressaltar que, apesar da possibilidade de “fracasso” desses seres, há segmentos de poemas e contos, atribuídos a eles, que atestam o ótimo trabalho artesanal com a linguagem saído das mãos de Alexandre Brandão.

A câmera e a pena – duas novelas
Alexandre Brandão
Editora Cais Pharoux, l56 páginas

sábado, junho 27, 2009


Pornografia - Witold Gombrowicz


Literatura polonesa e tango argentino

Ao ler uma obra literária, sobretudo de ficção, podemos seguir dois caminhos. O primeiro nos levaria a depositar fé no que diz a narrativa, acreditar nos fatos, enfim, embarcar na fantasia. O segundo seria desnudar o artifício, procurando enxergar como o autor trabalhou seu texto, como construiu seus personagens, de que modo arquitetou a trama, como desenvolveu a questão que aparece em primeiro plano e descobrir, a seguir, os planos subsequentes, que muitas vezes estão ofuscados pelo que o texto apresenta como principal.

Pornografia, de Witold Gombrowicz, é um livro que possibilita algo mais do que apenas experimentar uma boa história. Para começo de conversa, o narrador se coloca como o próprio autor, tendo inclusive o mesmo nome. Em seguida, os acontecimentos se passam na Polônia de 1943, em plena ocupação nazista. Gombrowicz, no entanto, não estava lá. Ele, o autor, embarcara num cruzeiro às vésperas da Segunda Guerra Mundial, para a América do Sul. A Polônia foi invadida pelos alemães; o resto é história. O escritor não pôde retornar; acabou ficando 24 anos na Argentina, tendo trabalhado em diversas profissões e vivido em extrema pobreza. Ainda lá, escreveu boa parte de sua obra. Quando voltou à Europa, radicou-se na França, onde obteve reconhecimento crítico.

Pornografia nada tem de pornográfico no sentido como se entende a palavra nos dias de hoje. Mas caso o leitor se mostre atento para a exposição da beleza e da juventude que atravessam todo o romance, o livro se torna profundamente pornográfico.

Em meio ao círculo intelectual de uma Varsóvia oprimida pelo nazismo, emergem dois personagens que decidem fazer uma viagem ao campo. Um deles é aquele que narra, o outro é um homem que conheceu Witold havia pouco e demonstra admiração pelo escritor: chama-se Fryderyk. Embora seja época de guerra, a narrativa se desvia do conflito para a beleza juvenil, principalmente quando ambos descobrem, na casa de campo em que ficam hospedados, um casal de jovens: Henia, a moça; Karol, o rapaz. Os dois, na verdade, são amigos desde a infância. Fryderyk e Witold tramam para que o casal permaneça junto, apesar de Henia ter um noivo. Gombrowicz deixa a guerra em segundo plano ao fazer o narrador e seu amigo investigarem os dois jovens. Estes aceitam participar do jogo, que pouco a pouco se mostra perigoso, tornando-os cúmplices numa ação comprometedora. Na verdade, o escritor em vez de criar personagens que resistam ao invasor empunhando uma metralhadora, prefere apostar na juventude e na beleza como meio de perceber uma nova Polônia, capaz de ressurgir das cinzas. Ele denuncia, através do casal, a falência de um país e de um continente decrépitos e a crença num futuro melhor. Não que esperasse por uma paz eterna, mas por um mundo em que a arte e a vida fluiriam através de corpos e mentes jovens.

Na movimentação dos habitantes da fazenda, tanto no próprio local como nos arredores, surge o ambiente da ocupação alemã.

Numa viagem que o narrador e Karol fazem numa carroça com a intenção de comprar querosene na cidade vizinha, a tensão da guerra transparece: “...chegamos a Ostrowiec, fazendo um barulho infernal e saltitando sobre os paralelepípedos, a ponto de nossas bochechas tremerem. Passamos pelo posto de controle alemão diante da fábrica; a cidadezinha era a mesma de antes, exatamente a mesma, com os mesmos prédios fabris e as mesmas chaminés dos altos-fornos, seus muros e, mais ao longe, a ponte de Kamiena, os trilhos do trem e a rua principal que levava à praça central, com o café Malinowski na esquina. Apenas uma certa ausência podia ser sentida – não havia judeus.”

Toda uma trama para assassinar um líder da AK – organização de resistência ao invasor – porque desistira de lutar contra os alemães envolve os homens da fazenda, incluído Karol e Waclaw, o noivo de Henia.

Embora o inimigo alemão mostre-se apenas através de um soldado bêbado, a ocupação joga os poloneses uns contra os outros, fazendo que desprezem a amizade, não poupando aqueles que se mostram suspeitos. Na intenção de virar o jogo, vale tudo para manter a esperança de libertar o país. O problema é que o inimigo acaba por se tornar o próprio compatriota, e o espelho da opressão está principalmente nas relações que se instauram a partir do universo familiar.

Outra questão em Pornografia, ao mapear a juventude e mostrar o interesse de dois homens maduros pelo período da existência em que predomina a beleza, a vitalidade e o ardor, seria trazer à tona a pulsão de vida que existe num período de profunda opressão.

Na Europa, em todos os países ocupados pelo nazismo, havia a Resistência. Para o autor, a verdadeira ação não estaria apenas nas mãos desses heróis, mas também nas de outros, como os dois jovens, que, apesar de crescerem num mundo quase sem perspectivas, demonstravam o desejo de viver, de desafiar a morte com o que lhe é oposto: a força, a intemperança e a beleza.

O romance é perfeito, a narrativa prende o leitor e as questões que vão surgindo como contraponto nos afligem a todo momento.

É de se admirar que um homem como Gombrowicz, que perdeu de modo inesperado sua pátria, exilou-se num continente distante, alguém que não freqüentou o circulo intelectual argentino enquanto esteve no exílio e precisou manter-se ocupado com tarefas menores para poder sobreviver, tenha se tornado um dos grandes autores do século XX.

Pornografia
Witold Gombrowicz
Tradução do polonês de Tomasz Barcinski
Companhia das Letras, 204 páginas

quarta-feira, junho 03, 2009



"Cadê Ana Prudenciana, Vitalina?"

Narradora goiana beira o épico em romance contagiante

Maria Eloá de Souza Lima é escritora goiana, mora em Jataí, cidade de 85.000 habitantes no sudoeste do estado de Goiás, a 327 quilômetros de Goiânia. Autora de três livros: Serra do cafezal (retratos e lembranças), Serra do cafezal 2, (outros retratos, outras lembranças), dois volumes que traçam a história da ocupação do sudoeste goiano empreendida por desbravadores que vieram de Minas Gerais (como se pode observar pelo título, trata-se de livros sobre as origens e memórias de uma região no centro-oeste brasileiro); seu terceiro livro chama-se Ana Prudenciana, é sua primeira e única investida na ficção. Recebi-o da própria autora há mais ou menos três anos, ocasião em que passei por Jataí. Como naquele momento tinha muitos compromissos com a universidade, deixei o livro de lado; aguardava o momento oportuno para apreciá-lo. Qual não foi minha surpresa quando o li recentemente.

Dona Eloá, como é conhecida na cidade, é exímia contadora de histórias. Lembrei-me, ao ler seu livro, do texto “O narrador, considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, de Walter Benjamin, onde o filósofo discorre sobre a arte de narrar e compara o trabalho do narrador ao de um artífice. Citemos um trecho do ensaio: “a experiência que passa de pessoa em pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos.” No texto, Benjamin aponta a narrativa como uma experiência coletiva, chega a dizer: “quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário”. O filósofo distingue a narrativa próxima à oralidade da narrativa de romance, classificando a primeira como experiência coletiva, enquanto a segunda já teria perdido a mística do narrador oral e refletiria a solidão do ser humano fragmentado, presente num gênero que já não daria conta do todo. Não deixa de comparecer, em parte, na formulação de Benjamin, ecos da Teoria do romance, do “jovem” Lukács; mas isso é outra história.

O livro de Maria Eloá possui esse narrador em vias da oralidade, que, na verdade, como acentuou o filósofo, encontra-se em extinção. Ana Prudenciana recupera essa tradição que faz parte da literatura desde a mais distante poesia épica.
O livro, em primeiro plano, apresenta uma narradora ouvinte, de quem não sabemos o nome, uma mulher em viagem pelo interior, pelas fazendas, alguém que se movimenta país adentro a recolher histórias. Hospeda-se numa fazenda e, em duas noites, escuta da voz da velha Vitalina a história do passado da fazenda, de Maria Imaculada e suas filhas, de Zé Pedro e sua filha bastarda Ana Prudenciana, e tantas outras narrativas. Vitalina não se cansa de narrar durante a noite inteira, sempre escoltada pelas duas irmãs, semelhantes a ela e também idosas: mulheres de outros tempos, que viveram praticamente em regime de escravidão. As duas já ouviram o périplo muitas vezes, mas não deixam de demonstrar prazer em ouvir uma vez mais.

Num pernoite, já quase ao amanhecer, quando todos se recolhem, inclusive a narradora, sabemos de outra história contada por ela mesma, colhida numa viagem a cavalo. É a vez de ouvirmos um velho peão que mergulha nas reminiscências de um amor proibido vivido por Amaro, a emboscada para matar o amante, sua reação e a consequente morte. A história é contagiante.

O terceiro livro de Maria Eloá filia-se à tradição roseana. Na literatura brasileira contemporânea praticamente não existem autores que tenham tentado seguir a trilha desbravada por Guimarães Rosa. A escritora de Jataí não teme percorrer esse caminho. Ela trabalha artisticamente a linguagem falada e atinge alto nível.

Eis dois trechos:

“Faz muitos anos, eu era ainda nova, passou por aqui um tal de Pedro Matos, vendedor de tropa. Esse homem era dono da Fazenda da Barca, lá no sertão do Uruquara. A tropa dele era famanã de boa, cavalos e burros. Dessa Vez, o sô Eraque até comprou um alazãozão, cavalo bonito toda vida, e um burrão rapé chamado Rompedor. O alazão ele deu de presente para a dona Elísia, que o cavalo era manso de silhão e tinha uma marcha macia que dava gosto. De noite, lá na sala, com aquele homem de fora contando causos, a conversa estava animada.”

Amaro reagindo à emboscada:

“De repente, o Amaro apontou lá na janela de revólver apontado. E foi só pêêêêi!... pêêêêi!... O Ribamar caiu de costas para dentro do curral sem ter tido tempo de dizer um ai. O Aristides caiu de bruço dentro do pátio, com um jabro na cabeça, e ficou lá, estrebuchando no meio de u’a moita de maravilha vermelha. O Adão Cabaça, O Amaro ficou com dó de atirar. Conhecia a besta, sabia que ele tinha um manadão de filhos pequenos e de filhas-moças. Pobre que só vendo, mal dava conta de dar o que comer pr’aquela turma.”

Nos dias de hoje, alguns estudiosos de literatura e até mesmo alguns escritores acham impossível escrever romances como nos “velhos tempos”; dizem que é preciso experimentar novos formatos, opinam que a narrativa “tradicional” está esgotada. Na verdade, Dona Eloá vem provar que a boa literatura está mais viva do que nunca e que, em suas mãos, atinge ainda maior vulto.

O livro é de edição da autora, com participação de um incentivo cultural da Prefeitura de Jataí. No entanto, ainda assim, Dona Eloá conseguiu editar Ana Prudenciana fazendo muito sacrifício.

Seria bom que algum editor de São Paulo ou do Rio olhasse com mais cuidado a literatura feita fora dos grandes centros. Será um grande prejuízo para a cultura brasileira caso livros como o de Dona Eloá caiam no esquecimento.

Ainda é tempo de dar valor a quem merece. Maria Eloá de Souza Lima é uma escritora de 86 anos.

Contatos com a autora: Av. Benjamin Constant 1041 – CEP. 75800-000 Jataí – GO. Tel. (64) 36312681

Ana Prudenciana
Maria Eloá de Souza Lima
Editora do autor, 262 páginas
Incentivo cultural: Prefeitura de Jataí

sexta-feira, maio 08, 2009


Os irmãos Karamázov

Relutei se falaria ou não sobre Dostoiévski, mas a caixa com os dois volumes da nova edição de Os irmãos Karamázov sobre a mesa, destacando-se dos outros livros, e a lembrança de Dimitri, Ivan e Alieksiêi insistiam em impelir-me adiante. Daí me vi na iminência de ter de renunciar à minha vida de resenhista, caso não escrevesse sobre o livro.

Dostoiévski viveu de 1821 a 1881, deparou-se com os principais problemas de seu tempo e de sua Rússia, teve uma vida cheia de peripécias, inclusive foi condenado por crime político, quando jovem, à morte, junto com alguns companheiros. O grupo teve a pena comutada, minutos antes da execução, para trabalhos forçados na Sibéria.

Como todo grande escritor, a obra do autor russo foi crescendo pouco a pouco. De contos e novelas chegou à fase (alguns criticam essa palavra) do seu grande romance, com Crime e Castigo, O idiota, Os demônios e Irmãos Karamázov. Dostoiévski também foi viciado em jogo, vida retratada no romance O jogador, escrito para saldar dívidas e a própria obra. Também teve de deixar São Petersburgo e a Rússia. O motivo: a implacável perseguição de seus credores.

O que há nesse volumoso romance, de quase mil páginas? Seria simplificar em demasia querer achar a linha principal da narrativa. O escritor discute nessa obra todos os assuntos que dizem respeito à natureza humana, sobretudo o amor, a crueldade e a esperança. Há personagens tipos, há personagens humanos, demasiadamente humanos. Talvez seja isso que nos fascine em Dostoiévski: seus personagens são capazes de cometer todas as loucuras a que nós, seres humanos, estamos sujeitos.

No prólogo, há os seguintes dizeres: “romance em quatro partes com epílogo”. Mas o que cada uma das partes aborda? Embora isso esteja escrito e o autor procure fazer a divisão para que a narrativa se desenvolva de forma mais didática, seria impossível setorizar os acontecimentos. Os personagens vão surgindo e crescendo gradativamente, a vida na pequena aldeia se desenrola, percebe-se que a tragédia se avizinha e suspeita-se de um terrível equívoco. Nós, como leitores, torcemos para que o erro seja corrigido, mas não se trata de um livro romântico, o destino é inexorável.

Quando Dimitri Karamázov é acusado de parricídio, o personagem não é julgado apenas pelo crime que supostamente cometeu, mas por seu modo de ser, pela maneira como encarava a vida e a vivia. Dimitri é julgado por seu desregramento.

O romance trata da vida da família Karamázov. Os três irmãos são de índoles diferentes; o mais velho, Dimitri, é irmão dos outros dois apenas por parte de pai, e é o mais temerário.

Um dos pontos interessantes do romance é outro assunto polêmico: os pais poderiam ser renegados pelos filhos caso estes sobrevivessem ao abandono a que foram submetidos na infância? Mas esse assunto é apenas adjacente. O que vemos é um pai, chamado Fiódor Pávlovitch Karamázov preocupado apenas consigo, ludibriando os filhos na questão da herança deixada pela esposa e disputando com Dimitri a mesma mulher, Agrafiena Ivánovna Svietlova, a insuperável Gruchenka. Daí vai promover tudo o que for possível para tê-la nos braços. Mas não consegue o seu intento. Acaba morrendo e Dimitri é acusado de matá-lo.

Ivan Karamazov é o irmão do meio. Dostoievski impregna nesse personagem tamanha intelectualidade, que sintetiza nele questões do próprio escritor. Ivan discute também a existência ou não de Deus e da imortalidade da alma. Em determinado momento, diz: “Se não existe Deus nem a imortalidade da alma, tudo é permitido”. Pensamento que parece livrar o irmão Dimitri de um certo peso. Eis alguns trechos interessantes do capítulo “A revolta”, quando Ivan conversa com Aliócha: “nunca consegui entender como se pode amar o próximo. A meu ver, é justamente o próximo que não se pode amar, só os distantes é possível amar. [...] Ainda se pode amar o próximo de forma abstrata e às vezes até de longe, mas de perto quase nunca. [...] Raramente o homem aceita reconhecer o outro como sofredor. [...] De fato às vezes se fala da crueldade “bestial” do homem, mas isso é terrivelmente injusto e ofensivo para com os animais: a fera nunca pode ser tão cruel. O tigre simplesmente trinca, dilacera, e é só o que sabe fazer. Não lhe passaria pela cabeça pregar orelhas das pessoas com pregos por uma noite, mesmo que pudesse fazê-lo.”

Dostoiévski soube falar sobre o homem comum, sobre as pessoas que habitavam as vilas e as cidades da Rússia e dar-lhes alma. Soube explorar a universalidade dessas pessoas e mostrar que gente assim existe em todos os lugares; na verdade, constituem a humanidade.

A relação de amor que Dimitri mantém com Gruchenka toma vulto no momento em que ele faz todas as loucuras para tê-la novamente em seus braços, quando mostra a ela que é capaz de tudo para mantê-la junto a si, chegando a ameaçar de morte o pai.

Certa vez, o escritor brasileiro Nelson Rodrigues falou numa entrevista: “brasileiro tem mania de cachorro vira-lata.” O dramaturgo talvez tenha dito tal frase porque lia Dostoiévski e encontrava nos personagens do autor russo a grandiosidade no homem da esquina, no bêbado, no louco, na mulher julgada por todos como prostituta, enquanto nossa tendência seria não valorizar aquilo que nos é próximo ou que nos parece vulgar.

Dostoiévski ainda desenvolve sua concepção religiosa através do stárrietz Zossima e do discípulo do hiremonge, Alieksiêi Karamázov, o irmão caçula e o mais equilibrado entre os três.

É pungente a última cena do livro, em que esse personagem se reúne com os meninos. Todos estão regressando do sepultamento de um companheiro recém-falecido, e Aliócha os alerta sobre o futuro, sobre a esperança e sobre a amizade.

Portanto, ler Os irmãos Karamázov é perceber um mundo que sempre esteve ao nosso lado e nós, muitas vezes, relutamos em enxergá-lo.

Os irmãos Karamázov
Fiódor Dostoiévski
Tradução direta do russo por Paulo Bezerra
Editora 34; 999 páginas.

Bom-humor e fina ironia permeiam texto de autor gurupiense

É importante que se escrevam livros como Histórias da História de Gurupi, de Zacarias Martins. O município, que fica em Tocantins, a 245 km de Palmas, com sua população em torno dos 75.000 habitantes parece ser bastante simpático, e o livro de Zacarias traz crônicas sobre a cidade e sua história ressaltando os problemas urbanos, políticos, administrativos e fatos do folclore local.

Como diz Maria Wellitania de Oliveira Cabral, nas primeiras páginas, apresentando a obra: “As crônicas de Zacarias Martins registram o apelo do cidadão gurupiense situado em determinações que limitam a sua comunicação e o seu reconhecimento pleno.” O Brasil é constituído em sua maioria por municípios de porte médio ou mesmo pequeno e um livro que permite ao cidadão saber o que acontece na sua cidade, possibilitando que ele desenvolva uma visão crítica sobre o meio em que vive é um passo enorme. Não posso falar especificamente sobre a imprensa local, mas em todas as cidades brasileiras o que predomina é o mascaramento da informação, que tem como objetivo beneficiar, em primeiro lugar, o interesse dos proprietários dos jornais. Portanto, a discussão aberta num livro isento e a priori sem objetivos comerciais só tende a levar a população ao esclarecimento e arremessar para longe a máscara que esconde a verdade.

Zacarias tem uma escrita bem-humorada, sabe tratar com leveza os assuntos pelos quais se aventura. Crônicas como “Cultura desemplacada”, que trata do sumiço das placas inaugurais de administrações anteriores é muito interessante. Imaginamos o escritor, como um detetive, saindo à procura das placas e dos autores do desemplacamento. O texto mostra a mesquinhez política de muitos administradores que não conseguem conviver com o sucesso daqueles que os antencederam. Até mesmo a placa comemorativa da inauguração de um centro cultural desapareceu misteriosamente e com ela o nome de Zacarias, que na época presidia o Conselho Municipal de Cultura. Diz o autor que esse mesmo centro cultural foi utilizado muitas vezes como local de velórios. Ele não poupa críticas: “A transformação improvisada do Centro Cultural Mauro Cunha em capela mortuária paralisava todas as atividades culturais ali realizadas, até mesmo o funcionamento da Biblioteca Pública Municipal Professora Deusina.

Uma outra crônica aborda a questão da concessão de uma pensão especial às viúvas de ex-vereadores “que faleceram ou que venham a falecer durante o exercício do mandato parlamentar”. O cronista, além de criticar duramente a medida, conta um fato pitoresco a respeito de outra cidade onde a mesma lei vigorou: “Há alguns anos, A câmara de vereadores de uma cidadezinha do interior de Minas também chegou a aprovar um projeto semelhante e, misteriosamente, nove dos seus dez vereadores morreram.” Segundo ele, o acontecimento foi tão alarmante que nem os suplentes quiseram tomar posse. A confusão foi solucionada com um ato corajoso do presidente da casa, que colocou fim à questão: “apresentou um projeto revogando todos os dispositivos da lei que criava pensão vitalícia para as viúvas.”

Como não poderia deixar de ser, o bom humor predomina até mesmo na última crônica quando, numa solenidade da Câmara, um cego se dispõe a ler a bíblia, e o faz com perfeição.

Conforme pude constatar no livro de Zacarias, a cidade de Gurupi permite uma vida tranquila e em harmonia com a natureza.
Conta o autor que, certa vez, a cidade sofreu uma ameaça de bomba. Suspeitaram até mesmo de Osama Bin Laden. Logo constataram que a ameaça era real, mas ela vinha de uma bomba d’água esquecida sobre a mesa de uma agência da bancária!

Destaco também as fotos que enriquecem cada crônica apresentando ângulos da cidade, de sua vida passada, da atual e de alguns monumentos e pontos turísticos.

Apesar da tendência ao hilário, o livro é sério. Todo cidadão consciente, que domina o idioma, deveria seguir o exemplo de Zacarias e fazer uma leitura crítica de sua cidade. Assim se poderia chegar a uma vida mais feliz.

Histórias da História de Gurupi
Zacarias Martins
Editora AGL, 72 páginas

Contato com o autor: zacamartins@gmail.com

sexta-feira, abril 03, 2009

Uma metáfora de resistência

Livro de professor da UFRJ aprofunda crítica à pós-modernidade

Ao partir de um incidente urbano, a destruição gratuita de um bloco de pedra – “desses que marcam o meio-fio” – por um trabalhador da construção civil, o professor Ronaldo Lima Lins desenvolve uma reflexão consistente sobre a construção e destruição do conhecimento no percurso histórico do ser humano. Assim como já o fizera no seu livro anterior, A indiferença pós-moderna, quando descreve um outro incidente – ele mesmo fora atacado por um desvalido urbano – para daí fazer toda uma reflexão sobre as causas da violência na contemporaneidade, o autor traz mais uma vez ao meio acadêmico um episódio aparentemente corriqueiro e propõe analisá-lo sob a luz dos instrumentos teóricos legados pela filosofia, incluindo aí a arte ou a estética.

O livro, dividido em três partes, começa por analisar o que levou o homem a querer conhecer: “O outro é o estranho, o desconhecido, a ameaça constante, o risco, a impossibilidade da paz. É o motivo que nos leva a desejar conhecê-lo, considerando o conhecimento uma forma de domínio capaz de espantar fantasias de insegurança e construir (quem sabe?) um mundo interior menos inquieto.”

No ato de querer conhecer esse outro, não estaria implicado apenas o ser individual, mas grupamentos humanos, impérios e civilizações. Citando os mais diversos pensadores, como Sartre, Kojève, Freud, Parmênides, Heráclito de Éfeso, Kant, Hannah Arendt etc., o autor nos mostra como determinadas sociedades, muitas delas consideradas cultas, exerceram e exercem a barbárie até com mais ímpeto e inclemência do que as sociedades ditas primitivas. No processo de relação com o outro, sendo ele um homem ou um império, o caminho para dominá-lo implicaria em desmontar seu saber, não se levando em conta se essa destruição acarretaria perdas para toda a humanidade.

Ainda nessa primeira parte, ele utiliza o conceito de estética como meio de percorrer a história do saber: “Quando os iluministas alemães criaram o conceito de estética, estavam, como boa parte dos intelectuais de sua época, interessados no saber.” A partir daí teremos a arte, concebida como estética, companheira da filosofia na tarefa de retratar a construção e a destruição, até o momento em que ambas se tornam vítimas da destruição, logicamente não desaparecendo, mas sentindo duramente o golpe.

Começando por Kant, que inaugura a separação da visão vigente até aquele momento, em que a beleza estaria relacionada à religião, para daí em diante mostrar que se poderia chegar ao conhecimento de forma laica, a ética e a estética se separam, cada uma seguindo seu próprio caminho. A partir dessa bifurcação, a arte e a filosofia, como que órfãs, procurarão dos escombros da cultura clássica construir uma nova visão de mundo calcada na fragmentação.

A segunda parte, cujo título é “A dor do saber”, discute a dialética construção / destruição a partir da modernidade. O esgotamento dos experimentalismos conjugado à intensa industrialização transforma o homem de sujeito em objeto de experiências. Uma gama infinita de produtos coloca o ser humano numa atitude passiva, alguém quase sem opção, a não ser a de consumir e de ter seu modo de vida transformado sem que tenha ânimo para resistir.
A aceitação passiva de um mundo que tenta disfarçar sua face totalitária empurra os homens para um beco quase sem saída. As forças ideológicas tentarão continuamente desqualificar e eliminar qualquer tipo de crítica, como as encetadas pela arte e pela filosofia, empreendendo avassaladora força destrutiva.

Já tínhamos constatado a consciência da fragmentação em alguns filósofos pós-kantianos, como em Schlegel. A ansiedade e angústia, componentes crescentes numa sociedade que começa a ser marcada pela reprodutibilidade, atingem seu ponto mais elevado no início do século XX, período de vitória do modo de vida baseado na industrialização.

A terceira parte aprofunda a questão da estética como instrumento de produção do conhecimento, incluindo aí a crítica. O autor constata que a concepção pós-iluminista, em que o saber se mostrava capaz de dar ao homem a chance de modificar o mundo a seu favor, não aconteceu. Esse saber será levado cada vez mais a extremos e através de sofisticados métodos de persuasão – no caso a publicidade – a um estágio que torna difícil ao ser humano perceber a própria liberdade. Nos modernos ainda vislumbramos “a estética da destruição”, isto é, o processo de conhecimento e crítica como desmascaramento da ideologia. No contexto da pós-modernidade, no entanto, o homem não se dá conta de que está compactuando com o poder. Disfarçado, este se apresenta como um novo deus, disposto a conceder a “todos” seu último milagre: a mercadoria. Estaríamos, então, no período da “destruição da estética”. A estética, iniciada no século XVIII voltada para fins humanistas, através dos instrumentos da ideologia teria gerado um monstro e estaria prestes a ser devorada por ele. Segundo o professor, a saída ainda estaria no que nos diz Hannah Arendt: a crítica como instrumento de resistência. O título do último capítulo é muito sugestivo: “De portas fechadas e abertas”, Diante de tantos becos-sem-saída, devemos abrir cada vez mais as portas para o pensamento. É tudo que nos resta.

O operário inicial, que nos é mostrado num gesto aparentemente impensado, já não é um ser isolado. A destruição do conhecimento tem artífices mais requintados, que sabem utilizar instrumentos que se apresentam quase que inofensivos, mas cuja força devastadora vai bem além da marreta de alguém que trabalha na construção civil.

O livro do professor Ronaldo Lima Lins situa-se nesse patamar, quase que exíguo, em que nós, intelectuais, tentamos ainda nos movimentar, atribuindo à nomeação e à crítica as forças impreteríveis da construção.

A construção e destruição do conhecimento
Ronaldo Lima Lins
Editora da UFRJ, 205 páginas

sábado, março 14, 2009

Contos de Andersen

Escritor dinamarquês ao optar pela fantasia percebeu a inviabilidade de um mundo que tinha como primado o mito do progresso

A taverna frequentada por Hans Christian Andersen em Odense, na Dinamarca, foi fundada em 1506. Dizem que sobre uma de suas mesas ele teria escrito o famoso conto “O soldadinho de chumbo”. Era uma chuvosa noite de primavera, e o escritor sentia-se desenganado do amor da bela Jenny Kind. A taverna existe até hoje e chama-se "Tinsoldaten" (soldadinho de chumbo), em sua homenagem. Talvez Andersen, que nasceu na mesma Odense, em 1805, e faleceu em Copenhague, em 1875, não se sentisse muito confortável por ter-se tornado famoso como autor de contos de fadas. Antes tivera uma extensa e ambiciosa produção literária escrevendo romances “sérios”, que hoje já não são lidos, e com eles já havia conquistado a Europa. Mas foi com o gênero chamado conto de fadas que conquistou o mundo. Como define bem o escritor brasileiro de origem dinamarquesa Per Johns, conto de fadas em escandinavo é eventyr ou äventyr, literalmente uma aventura, com o significado de viagem, “a viagem de uma vida – de rumo incerto, mas fascinante. Abarca tanto a pura narrativa de um acontecimento fantástico como o périplo do espírito que sai mundo afora em busca do destino, em vez de esperar que ele chegue. O que equivale a dizer: ou se vive uma vida como uma aventura que se renova a cada dia ou não vale a pena vivê-la.”

Devemos encarar suas histórias sob esse ponto de vista. Cada conto é uma aventura em que o ser humano se desprende de suas limitações para assumir o próprio destino, mesmo com todos os riscos que essa possibilidade apresenta.
Em muitos de seus contos está presente essa viagem e aventura.

“O companheiro de jornada” é a aventura de um homem pelo mundo. Perde seu amado pai e parte com a intenção de ser uma boa pessoa. Leva apenas algumas moedas, tudo o que herdara, mas não demora deixá-las nas mãos de bandidos que profanavam um cadáver. Viaja pelo mundo com um companheiro recente, que o protege durante a maior parte do tempo. Em “Os cisnes selvagens”, observamos onze cisnes que cruzam constantemente um oceano. Há a irmã que sai em busca deles, na verdade príncipes transformados em aves. Eles passam o dia inteiro em pleno voo, transformando-se em homens apenas durante a noite. E por último “As galochas da fortuna”, adorável história que apresenta várias personagens que ao vestirem os misteriosos calçados têm os desejos realizados, viajando inclusive para outros tempos.

Muitas vezes estigmatizado como autor de literatura infantil ou infanto-juvenil, rótulos que, como disse certa vez a escritora Roseana Murray, são de necessidades mercadológicas, Andersen acabou por não ser lido pelo público adulto; a exceção ocorre apenas quando esses adultos resolvem contar as histórias do autor dinamarquês para os filhos. Mas é um grande equívoco olhar o escritor dessa maneira. O que teria de literatura para crianças ou mesmo para jovens contos como o próprio “O soldadinho de chumbo” ou “A menina dos fósforos?” Talvez uma criança sinta-se entristecida ante os percalços da vida ao ler essas histórias numa idade em que ainda deveria primar pela esperança de felicidade que todos têm no coração desde cedo, e pela crença de que as brincadeiras são eternas. Na verdade esses contos são de plena profundidade; discutem o sentimento amoroso, a beleza, e também os acasos que nos desviam da rota que gostaríamos de estar trilhando. Em “A menina dos fósforos”, há a solidão de uma pequena criança numa noite de natal; a menina está com um frio terrível e faminta, a única constatação é de que apenas o mundo do sonho é possível. Seu sofrimento é tanto que esse mesmo sonho acaba por misturar-se ao desejo de morte quando ela sente próxima a presença da avó falecida.

Andersen escreveu numa época em que a maior parte dos habitantes das cidades europeias vivia em extrema penúria. Era uma Europa com a permanente ameaça de guerra, de frio e de fome. Junte-se a isso a reflexão sobre o que há de mais recôndito e de mais sórdido na alma humana. O escritor encontra na fantasia a solução para todos esses problemas. E, como ocorre muitas vezes, quando a morte ameaça uma criança doente num leito, cuja mãe se esvai em lágrimas sem encontrar solução alguma, a viagem final se dá em companhia de um anjo de rosto radiante e belo, que conduz o pequeno infante à presença de Deus, como ocorre no conto do mesmo nome: “O anjo”.

É sempre bom comentar a respeito das boas e belas edições. Contos de Andersen, da Paz e Terra, não é uma edição nova. O exemplar que me chegou às mãos creio é da última, datada de 2002, com tradução direta do dinamarquês por Guttorm Hanssen e revisão estilística do saudoso Herberto Sales. O livro tem ilustrações do original em dinamarquês.

Vale a pena ler os quarenta e oito contos do livro, para que se tenha uma idéia correta desse grande clássico da literatura universal. São histórias que muitos de nós conhecemos apenas porque ouvimos um dia, ou assistimos no cinema ou televisão a alguma adaptação. E por melhor que tenha sido realizada, não é possível compará-la à beleza que essas histórias possuem quando aparecem em livro, e com o texto integral.

Contos de Andersen
Hans Chrinsrtian Andersen
Tradução de: Guttorm Hanssen
Editora Paz e Terra, 463 páginas

sábado, fevereiro 07, 2009

Filosofia, literatura e teoria crítica

Ensaios de pensadora alemã refletem paixões e angústias de todo um século

Autora de obras importantes, entre elas Origens do totalitarismo e A condição humana, Hannah Arendt (Hannover, 1906 – Nova York, 1975) doutorou-se em Filosofia ainda na Alemanha, tendo sido discípula de Martin Heidegger e Karl Jaspers. Nos primeiros anos de 1930 foi obrigada a deixar o país devido à perseguição que o nazismo começa impor aos judeus. Viveu na França até 1941, quando foge para os Estados Unidos onde se estabelece; pouco a pouco passa a lecionar em várias universidades americanas. Arendt não gostava de ser chamada de filósofa, definia-se como pensadora política ou estudiosa de teoria política. Talvez um dos pontos principais de sua obra seja a reflexão sobre o problema que dá título a um dos livros mencionados acima: o totalitarismo e suas origens.

A partir do surgimento e expansão do nazismo, tenta compreender como esse tipo de regime, que provocou a morte de dezenas de milhões de pessoas e chegou ao requinte de produzir a morte em série, encontrou solo fértil entre os alemães e entre outros povos europeus. Como um país, como a Alemanha, berço de grande parte do pensamento ocidental, permitiu que surgissem as sementes da tragédia e como elas progrediram até gerar tudo o que já conhecemos.

Em outro livro importante de Arendt, Eichmann em Jerusalém, na verdade livro-reportagem em que ela acompanha o julgamento de um dos carrascos nazistas, a filósofa pôde constatar a banalização do mal. O réu diz em seu depoimento que não teve culpa do massacre aos milhões de judeus, na Segunda Grande Guerra; declara que o fez cumprindo ordens superiores e, se preciso, faria tudo novamente. Temos então o seguinte paradoxo: o homem, um ser que é caracterizado pela liberdade e pela razão, transformando-se em alguém impotente ante a máquina do estado – drama antevisto por Kafka duas décadas antes –, alguém que está preocupado com sua família, sua vida privada e que se tornou incapaz de enxergar a verdade e de se insurgir por ela, incapaz de perceber a importância do político, isto é, da vida na pólis com todas as implicações que ela merece. Explicando de modo mais claro: alguém que percebesse que o político – o público – deveria imperar sobre o privado.

O livro Compreender – Formação, exílio e totalitarismo, lançado agora pela editora da UFMG em parceria com a Companhia das letras, traz quarenta ensaios da autora sobre os mais diversos assuntos e uma entrevista. Esses textos, no entanto, não deixam de ter a mesma importância de suas grandes obras. Há aqueles em que predomina a reflexão sobre a vida subjetiva, há outros que focalizam o desenvolvimento de uma consciência social e política. Muitos lidam com a Segunda Guerra Mundial, causas e conseqüências do nazismo e os múltiplos fenômenos do totalitarismo, como enfatiza o organizador, Jerome Kohn, na introdução. Mas o que predomina é o tom reflexivo sobre o pensar, sobre a filosofia a partir de Kierkegaard e sobre a crise do pensamento moderno.

Um dos pontos altos do livro é a abordagem de Hannah Arendet sobre a perda do espaço público no contexto da modernidade. Na entrevista concedida a Günter Gaus em 1964, publicada no começo do livro, o entrevistador faz o seguinte comentário antes de fazer a pergunta à filósofa: “Numa de suas obras mais importantes, A condição humana, você chega à conclusão de que o período moderno destronou o sentido do que interessa a todos, isto é, o sentido da importância primordial do político. Você define como fenômenos sociais modernos o desenraizamento e solidão das massas e o triunfo de um tipo de ser humano que encontra satisfação no processo de mero trabalho e consumo. Em que medida esse tipo de conhecimento filosófico depende de uma experiência pessoal que aciona o processo de pensamento?” Ela responde: “Não acredito que possa existir nenhum processo de pensamento sem experiência pessoal. Todo pensamento é um pensamento posterior, isto é, uma reflexão sobre algum fato ou assunto. Não é assim? Vivo no mundo moderno. Isso afinal é incontroverso. Mas a questão de simplesmente trabalhar e consumir é de importância crucial porque aqui se define também uma espécie de amundaneidade. Ninguém mais se importa como o mundo aparenta estar.”

É sempre arbitrária a escolha de ensaios dentre tantos de tão grande importância, mas destaco três e tento sublinhar o que eles trazem de importante. O primeiro é o que tem como título o nome de “Soren Kierkegaard”, em que Arendt discute a introdução do pensamento do filósofo dinamarquês na Alemanha e no meio filosófico ocidental. Kierkegaard, pela primeira vez, coloca em destaque o sujeito filosofante, em contrapartida à filosofia sistêmica de Hegel, onde o ser individualizado é apresentado como algo abstrato. Outro ensaio interessante é: “Franz Kafka: uma reavaliação”, de 1944. Aqui a autora privilegia a escrita simples do autor de O processo em oposição à complexidade dos temas abordados por ele, aparentemente de difícil compreensão mas sempre portadores de uma “verdade simples e incontestável”. O terceiro é “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”, onde ela tenta compreender a passagem da “vida contemplativa” para “a vida ativa”, que caracteriza grande parte do pensamento do século XX e do envolvimento da filosofia com o posicionamento político que a modernidade exige. A pensadora fala de filósofos como Jaspers, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Camus, entre outros.

Num período em que o pensamento se encontra muitas vezes abandonado, entregue apenas aos guetos universitários, a publicação desses ensaios representa uma chance para que muitos leitores não esqueçam que a liberdade de pensamento e a reflexão sempre foram instrumentos de defesa da humanidade.

Compreender – Formação, exílio e totalitarismo – ensaios
Hannah Arendt
Organização, introdução e notas: Jerome Kohn
Tradução: Denise Bottmann
Ed.: Companhia das Letras e editora da UFMG, 490 páginas

sexta-feira, janeiro 16, 2009

Como era o nome dela mesmo?

“Zezinho, você precisa ver a mulher que conheci hoje.”
“Mas e a Laura?”
“Esquece a Laura, Zezinho, escuta a história que eu vou contar.”
“Essa mulher é tão bonita mesmo?”
“Escuta, Zezinho, multiplica por dez a beleza de todas as mulheres que você conhece que não vai alcançar a beleza da que eu conheci hoje.”
“Então me conta como foi, vai.”
“Zezinho, você precisava estar lá pra ver, a garota é um sucesso. Eu estava tomando um chope no quiosque da Brahma, no Botafogo Shopping. Ali naquela meia praça de alimentação do segundo piso. Ela já estava lá quando cheguei; tomava um daqueles chopes escuros. Sentei num dos bancos, deixando um vago entre nós dois. Foi aí que a coisa aconteceu. Ela olhou pra mim e disse que a bebida estava uma delícia.”
“Foi ela que puxou assunto? Você é um homem de sorte...”
“Escuta, Zezinho, sei que sou um homem de sorte. Depois ela começou a falar sobre alguns bares que freqüenta à noite, na Zona Sul, mas que decidira parar ali para tomar aquele chope por causa do frisson que essa véspera de verão causa nela. Veja, Zezinho, frisson; já ouviu essa palavra? Olhe a outra expressão: véspera de verão. Só uma mulher muito especial pode falar assim. Continuou a conversar, disse que viera ver umas roupas, que fora à livraria, e que o momento mais agradável era aquele, o do chope. Eu ouvia tudo, embevecido de tanta beleza e simpatia Estupefato pelo modo como ela contava...”
“Embevecido, estupe... estupe o quê? Podia repetir?”
“Estupefato, Zezinho, estupefato; será que você não tem cultura? Mas ouça, deixemos as palavras de lado. Ela vestia uma roupa simples, uma blusa branca de malha com umas partes bordadas, calça jeans e tênis. E ficou a me olhar demoradamente. Eu não sabia o que dizer, Zezinho Quando ia falar alguma coisa, pensava que podia dar mancada, então fazia aquele ar de surpresa, suspirava, incentivava a continuidade da conversa.”
“Eu sempre falei, você não tem assunto, não sabe se dirigir às mulheres...”
“Zezinho, por favor, escute, ainda não acabei.”
“Ok, desculpe.”
“Por fim ficamos ali horas. Eu tinha no começo a intenção de tomar só dois chopes, mas tomei cinco, Zezinho, cinco! Não queria que aquele momento acabasse. E no fim foi ela quem disse que tinha de ir.”
“E você ficou a ver navios?”
“Que ver navios, Zezinho, como eu posso ver navios dentro de um shopping?”
“Não é isso, é uma metáfora, depois sou eu que não tenho cultura. Será que você nunca freqüentou uma escola? É a maneira de dizer...”
“Zezinho, eu sei o que é uma metáfora. Não fiquei a ver navios. Ela me deu o número do telefone, ou melhor, os números, porque ela tem vários telefones.”
“E aí, vai telefonar?”
“Telefonar? Não é preciso. Antes de ir embora, ela perguntou se eu não queria continuar bebendo à noite. Vai ter uma festa na rua da Matriz, um encontro entre alguns amigos, sei lá, ela me convidou.”
“E você vai?”
“O que você acha, Zezinho? Olhe bem pra mim...”
“Mas e a Laura?”
“Esquece a Laura, Zezinho, o noivo dela sou eu.”
“E se ela descobrir?”
“Não vai descobrir, Zezinho, por isso que preciso de sua ajuda, entendeu, por isso que estou contando toda essa história.”
“Mas eu? Você vai me meter em enrascada. Não quero complicações com a Laura.”
“Não se preocupe, Zezinho, você vai fazer apenas o seguinte: quando for nove e meia da noite, você telefona pro meu celular, diz que houve um problema na empresa, uma pane no sistema, e só eu posso consertar.”
“Mas isso nunca aconteceu, vai dar problema se alguém descobrir, vão dizer que estamos boicotando...”
“Zezinho, por favor, só um telefonema pro meu celular, o resto deixa comigo.”
“Mas e a Laura?”
“A Laura também deixa comigo.”

No dia seguinte, às quatro da tarde, os dois amigos se encontram de novo. Zezinho disparou a pergunta?
“Como foi o encontro com a garota? Deu tudo certo?”
“Zezinho, deu mais do que certo, muito mais do que certo.”
“E, agora, o que você vai fazer?”
“Zezinho, puta-que-pariu, o que você acha que vou fazer?”
“Vai continuar saindo com ela...”
“Isso, Zezinho você devia ser detetive profissional, descobre as coisas muito rápido.”
“Não me sacaneia, Júlio. Mas me diga uma coisa: e a Laura?”
“Puta-que-pariu, Zezinho, quanto a Laura, deixa que eu resolvo.”
“Mas a garota é tão gostosa mesmo?”
“Porra, Zezinho, assim você já está querendo saber de mais.”
“Ah, é? Então não conte mais comigo pra enganar a Laura.”
“Está bem, Zezinho, ela é muito gostosa, muito muito muito gostosa!”
“Você não devia marcar mais com ela, vai acabar em maus lençóis.”
“Não importa que os lençóis sejam maus, Zezinho, o que vale é que ela é muito, muito gostosa!”