sábado, maio 26, 2012

Ipanema

Depois de vários dias chuvosos, saí de casa e reparei que um sol tímido se lançava vagaroso no céu. Nos primeiros passos sobre o passeio, fui abordado por um desconhecido, que vinha acompanhado de uma mulher. Assustei-me num primeiro momento, pois nos dias de hoje, pelo menos aqui no Rio, qualquer estranho que se dirija a outrem é motivo de suspeita, infelizmente. Mas o cidadão esbanjava simpatia, e foi logo perguntando como devia fazer para ir a Ipanema.

“É à praia aonde o senhor deseja ir?”, completei.

“Isso mesmo, à praia”, respondeu.

“Basta seguir a rua”, apontei a direção.

Estávamos na Joaquim Nabuco, próximos à rua Raul Pompéia. Ele e sua acompanhante agradeceram e se foram.

Segui o caminho contrário. Fui andar na orla de Copacabana. Fiz minha caminhada e, quando voltava, vi o casal novamente. Eles retornavam do passeio e pareciam muito felizes. Na minha costumeira discrição, não disse nada ao passar pelos dois, mas o homem se voltou para mim, sorriu e agradeceu mais uma vez.

Cheguei ao prédio onde moro mas não entrei, decidi continuar andando até Ipanema. Ao avistar a praia, lembrei-me, então, de um episódio que me aconteceu no começo dos anos 1980.

Naquele tempo eu e vários amigos costumávamos beber num bar da Visconde de Pirajá. Era um botequim bem simples, desses chamados nos dias de hoje de “pé sujo”. Bebíamos muito naquele tempo, e me recordo que na mesma noite já havia tomado duas ou três doses de cachaça. Lá pelas tantas me despedi e fui embora. Só que ao invés de ir para casa, resolvi andar na orla marítima de Ipanema.

Era madrugada alta quando comecei a caminhar na calçada da praia sob um ligeiro vento de fim de abril. Em frente à antiga rua Montenegro, desci à areia e fui ver a arrebentação. Ela estava forte, ondas altas e regulares estouravam à media distância. Ao me aproximar da beira d'água, comecei a sentir uma saraivada de respingos, uma espécie de chuva intermitente que se alterna após a explosão de cada onda. Foi então que apareceu uma mulher. Não sei de onde ela saiu, mas tenho certeza de sua presença. Aproximou-se e me perguntou:

“O senhor me pode fazer um favor?” Achei interessante o deslocamento do pronome. Ela certamente era alguém de fora, que passava alguns dias na cidade.

Olhei para ela e esperei que me pedisse.

“Vou dar um mergulho, o mar está uma delícia, o senhor toma conta pra mim?”

Antes que eu respondesse, ela pousou na areia uma pequena sacola, tirou o vestido que lhe cobria o corpo, dobrou e o colocou dentro da bolsa, depois correu para o mar. Surpreendi-me ante sua atitude. Não a de correr para dentro da água fria, mas porque ela não trazia roupa de banho sobre o corpo.

Depois de mais ou menos dez minutos, ela voltou. Seus cabelos lisos e compridos ainda escorriam a água do mar. Apesar da noite um tanto fria, não se mostrava incomodada; apenas juntou os braços cobrindo os seios e olhou sorrindo para mim.

“Você não está com frio?” perguntei.

“Um pouquinho”, foi sua resposta.

“Como vai se enxugar?” ainda lembro da minha última pergunta.

Ela apenas meneou a cabeça mais uma vez como se aquilo não fosse importante e esperou mais alguns segundinhos. Depois tomou nas mãos o vestido e o enfiou pela cabeça, pegou a bolsa, agradeceu e se foi.

Tantos anos, onde andará a moça agora? Será que ainda tem a lembrança viva, assim como eu? Será que ainda não sente pudor ao se mostrar nua ante a um estranho?

Cheguei à praia de Ipanema e decidi caminhar até o Arpoador. O mar não se lançava às areias tão bravio como naquela distante madrugada do começo dos anos 1980. O sol resolvera esconder-se atrás de algumas nuvens, e duas meninas pedalavam na ciclovia.

domingo, maio 20, 2012

A procura da poesia

Vinha no metrô e lia um livro de poesia, um belo livro por sinal, O mais puro amor de Abelardo e Heloísa, cuja autora, Thereza Christina Rocque da Motta, recria livremente e em forma de poemas cartas trocadas entre o famoso casal que viveu um amor impossível em pleno século 12. Quando a composição aproximava-se da minha estação de destino, guardei o pequeno volume e observei as pessoas que viajavam ao meu redor. Reparei seis ou sete que usavam seus smartphones. Uns digitavam mensagens, outros pareciam conectados a alguma das redes sociais, havia ainda aqueles que ouviam música. Olhei se acaso alguém lia um livro, ou mesmo um jornal, tentei descobrir se havia quem pelo menos conversasse. Vi um casal de namorados, mas eles viajavam em silêncio, o rapaz teclava seu Iphone como se pesquisasse alguma coisa no Google; a moça parecia descansar, mas o celular permanecia em uma de suas mãos. Pensei comigo, nunca mais as pessoas lerão um livro como liam algum tempo atrás. Segundos depois, saí do trem e durante alguns dias não pensei mais no assunto.

Na ultima segunda-feira, compareci ao lançamento de um livro. O autor é um poeta famoso, professor aposentado da UFRJ atualmente lecionando na Universidade do Norte Fluminense. Durante o evento, uma aluna pediu para ele definir o que é poema e o que é poesia. Ele lhe revelou que poema era o texto literário, enquanto a poesia poderia estar em qualquer parte. Em consequência, ainda segundo ele, há poesia sem literatura e muita literatura sem poesia.

Saí dali pensando onde eu poderia encontrar a poesia em minha conturbada cidade, e fora dos livros raros que descubro e leio nos poucos momentos que tenho livre. Lembrei então de uma conversa que tivera com uma amiga. Discutíamos que, atualmente, quase não é possível pensar prazeres fora do círculo do consumo. Muitos querem frequentar shoppings e comprar o que há de mais bonito; outros desejam assistir a espetáculos para logo depois jantar em bons restaurantes; há ainda quem quer viajar ao exterior para, sobretudo, fazer compras. Daí, nos pusemos a pensar numa vida que escapasse a esse circuito perverso. Cheguei a falar que houve um tempo em que alguém era capaz de se sentir feliz por sentar e meditar, apreciar uma bela paisagem, ou mesmo ir a um museu e ficar horas diante de suas obras de arte favoritas. Mas no mundo atual, parece que tais ações já não fazem parte da vida de muitas pessoas. A leitura também já nos escapa. São poucas as pessoas que conseguem perder-se prazerosamente num bom livro.

Sei que muitas dessas ações implicam também o consumo. É preciso comprar ingressos para entrar em museus; algumas vezes é preciso pagar para estar num parque a apreciar a paisagem; pagar a condução que nos leva até lá; no caso da leitura, pagar o livro à livraria. Mas são tipos de consumo que tiram a gente da avassaladora tempestade do “mercado”. Talvez a poesia a que o poeta referiu-se seria essa, encontrar a beleza e a surpresa nos pequenos momentos em que se aprecia alguma coisa fora do ímpeto do consumo desenfreado.

E eis que procurando por livros e por poesia, deparo-me com uma pequena livraria em Copacabana, bem na rua Rainha Elizabeth. Realizava-se ali um evento chamado “Ponte de Versos”, atividade que já existe, segundo a organizadora, há mais de dez anos. Leram-se poemas de um autor presente, que lançava seu livro. A poesia, afinal, bradei em meio ao silêncio que o poema exige. Leram-se poemas diversos, de autores presentes e de ausentes. Alguns dos participantes, para minha surpresa, tiraram o celular do bolso e leram seus poemas. Que interessante, pensei, poemas no celular. Acho que um deles tinha toda a obra armazenada no pequeno aparelho, pois dali fez vir à sua voz várias composições.

Não discuto aqui a qualidade dos textos, mas achei, enfim, que a poesia não desaparecera, como eu já havia suposto. Lembrei-me, então, das pessoas que, no metrô, não liam livros mas manuseavam celulares. Quem sabe escreviam poemas dentro do silêncio frio dos vagões, em meio ao lamento agudo das rodas que deslizavam sobre os trilhos de aço?

Na livraria, apesar dos poemas nos smartphones, os livros nas estantes, atrás de cada participante, compunham o cenário. E, cada um que lia seus poemas, no fundo da alma tinha o sincero desejo de vê-los um dia publicados em livro, expostos na vitrine de entrada, bem arrumados nas estantes elegantes do local.

No final, alguém lembrou que o nome da livraria fazia uma referência a Shakespeare. Foi então lido um soneto do bardo. Shakespeare viveu há quatrocentos anos, num tempo em que não havia nenhuma tecnologia. Nos tempos de hoje, apesar dela, ainda (graças a Deus) se sofre pela falta de algo que só a poesia pode preencher. 

sexta-feira, maio 18, 2012

A paixão pelo jornalismo

Resenha: Os imperfeccionistas, de Tom Rachman

Os bastidores de um jornal e as perspectivas de sua sobrevivência num mundo de extrema competitividade, onde a internet passa a predominar cada vez de modo mais avassalador, são o tema de Os imperfeccionistas, livro de Tom Rachman. O jornal em questão é um diário internacional sediado em Roma e publicado em língua inglesa, com o objetivo de ser vendido no mundo inteiro. Qualquer semelhança com uma publicação fácil de ser encontrada nas bancas de Copacabana, Ipanema ou Leblon não é mera coincidência.

O autor, que já foi jornalista, retrata sem qualquer idealização a rotina e o ambiente confuso de uma redação. Aqui e ali pululam ambições e mazelas, falsas amizades, casos amorosos e traições. Há desde o correspondente em Paris, alcoólico, que já não consegue vender suas matérias, até o editor viciado em trabalho, primeiro a chegar e último a sair da redação, o que faz sua esposa abandoná-lo e ir morar com um italiano. As mulheres, como profissionais de jornalismo, também vivem os dois lados da moeda, como a repórter de economia Hardy Benjamin, eficaz no trabalho mas desastrosa nos relacionamentos; Kathleen Solson, que deixa a promissora carreira num diário de Washington para assumir o cargo de editora-chefe – numa noite regada a caipirinha ela acaba flertando com um jornalista de quem fora amante porém agora trabalha como assessor de imprensa de Berlusconi –; Ruby Zaga, além de egocêntrica, problemática e desprezada pelos colegas de trabalho, também naufraga na bebida e numa vida extremamente solitária. Outro curioso personagem é Winston Cheung, jovem americano de origem asiática que não sabe o que quer da vida nem jamais escrevera uma linha sequer em jornal algum. Ao descobrir que está vago o cargo de correspondente no Egito, tenta aproveitar a oportunidade. Entretanto esbarra em dois problemas: mal sabe árabe e lhe aparece pela frente um famoso jornalista americano que não consegue se fixar em jornal algum por ser temperamental. Ele, assim como Cheung, quer o cargo no Cairo.

Em cima de manchetes curiosas, que chegam a proporcionar ao romance ares humorísticos – “mentiroso mais velho do mundo morre aos 126 anos”, “aquecimento global é bom para sorvetes”, “a vida sexual de muçulmanos extremistas” etc. –, os capítulos são construídos sempre sob a ótica e a vida de cada personagem, podendo ora ser a editora-chefe, ora o correspondente em Paris, ora a repórter de economia, ou mesmo a leitora assídua que não perde um exemplar do periódico, obrigando a empregada a guardá-los exatamente em ordem cronológica para poder ler na íntegra todos os números.

Como um diário desse tipo se mantém? Não seria necessária a pergunta, mas ele é fundado e circula durante muitos anos por causa da paixão. Foi ela que, muitas vezes, moveu o jornalismo. E, aqui, é tão intensa que, apesar das constantes crises financeiras, mantém a publicação por várias décadas, fazendo o diário passar de pai para filho. O último, neto do fundador e integrante mais jovem da família que controla vários negócios entre eles o jornal, é enviado de Atlanta a Roma com a missão de reerguer e manter a publicação. Ele, porém, esbarra na falta de recursos, na falta de vocação e se perde no amor por seu cachorro. O livro nas suas 380 páginas retrata também a vida europeia contemporânea e, em fragmentos, os principais acontecimentos vividos pelo continente desde os anos 1950 até meados da primeira década do século 21.

Devido à reformulação por que passa toda a imprensa atual, o livro torna-se tanto mais interessante. Muitos jornais mundo afora desapareceram ou tendem a desaparecer, mantendo apenas exíguas versões digitais, como ocorreu com o Jornal do Brasil. É interessante perceber que muitas dessas publicações são apenas a ponta de lança de grandes grupos empresariais, situação que não torna melhor o jornal nem possibilita sua permanência caso ele não se mostre lucrativo.

Outro fato que também pode ser discutido a partir da leitura deste livro é a liberdade de imprensa. Como sua existência seria possível se os principais anunciantes são, na maioria das vezes, empresas cujo principal objetivo é o lucro rápido e fácil, deixando de lado questões como o meio ambiente, a qualidade de vida e os direitos humanos?

O livro Os imperfeccionistas, no entanto, não se prende a essas questões nem se preocupa em defender causa alguma. Num mundo que já não prima pela verdade, a trajetória de um jornal e a vida dos personagens que o produzem são seu foco principal.

Os imperfeccionistas
Tom Rachman – tradução de Flávia Carneiro Anderson
Ed. Record – 380 páginas

sábado, maio 12, 2012

Saber e adoecer

Um dia desses, conversando através do Skype com uma amiga que mora no exterior, veio à tona qual deveria ser o papel dos intelectuais brasileiros no atual momento político. Como resultado, tocamos no tema do adoecimento da sociedade. A partir do momento em que se perde o poder de criação e predomina a repetição, adoeceríamos. O exemplo característico seria o operário encarnado por Chaplin, em “Tempos Modernos”, homem que, em sua máquina, repete continuamente o mesmo movimento até o enlouquecimento. Minha amiga, que esteve no Brasil para defender sua dissertação de mestrado, acusava a classe intelectual brasileira de acomodada, de agir apenas de acordo com os próprios interesses no sentido de preservar seus cargos nas universidades públicas. Ao contrário de países onde intelectual, segundo ela, é sinônimo de pesquisador responsável pela apresentação de soluções para os desafios emergentes, em nosso país isso não ocorreria. Nossos intelectuais estariam compactuando com a corrupção política e, enfim, com as mazelas do poder.

Dias depois participei, como espectador, de um debate entre Francisco Bosco, colunista do jornal O Globo, Alberto Pucheu, professor da UFRJ e Roberto Corrêa dos Santos, escritor poeta-crítico-literário sobre quem Pucheu estava lançando um livro. Na assistência havia muitos alunos e outros tantos professores de várias universidades. O debate foi realizado no centro cultural Midrash, no Leblon.

Confesso que compareci ainda marcado pela conversa que tivera com minha amiga e, nesse sentido, desejava fazer perguntas sobre o papel da intelectualidade em momentos críticos da História. Mas não foi nessa direção que se desenvolveu o debate.

O colunista do jornal o Globo fez as apresentações, esclarecendo sobre a linha de pesquisa do professor e da obra do crítico-poeta. Sei que algumas pessoas devem achar estranha a expressão “crítico-poeta”, mas é isso mesmo, pois segundo a tese de Pucheu, o poema contemporâneo e, precisamente o do poeta presente, existiria enquanto “o ensaio teórico crítico-experimental”.  Um dos pontos centrais da discussão foi sobre a existência ou não do contemporâneo, sobretudo na literatura.

Ainda segundo o debate, a literatura modernista apresentou uma proposta de rasura à tradição clássica, introduziu algo novo, algo jamais experimentado. O Modernismo tinha ideologia, deixava esperança no coração e na mente das pessoas. Mas e o contemporâneo, como estaria manifestando-se? Estabeleceram-se, então, pontos de vistas divergentes. Houve quem o negasse. O contemporâneo já não seria possível porque não se apresentaria da mesma forma como, por exemplo, se apresentou a grande narrativa dos oitocentos. Com o Modernismo, consequentemente, essa narrativa já se teria perdido.

Discutiu-se também o conceito de tempo, já que esse vocábulo situa-se dentro do vocábulo maior, “contemporâneo”.

Bosco deu o exemplo do telefone. Segundo  ele, o telefone de discar não é um aparelho contemporâneo (um dia foi), enquanto o Iphone seria. A seguir, pediu ao poeta que respondesse como nas artes isso poderia ser exemplificado.

Terrível exemplo trazer a tecnologização da precária e ao mesmo tempo complexa sociedade em que vivemos e querer a partir daí fazer um paralelo com as artes. O poeta delicadamente não navegou nas mesmas águas do colunista. Para ele o tempo, em termos de artes, não existe e, por conseguinte, não existiria o contemporâneo. O que existe são efeitos de vários tempos que convergem num determinado momento, e essa manifestação é sempre incompleta. Poder-se-ia exemplificar como algo que se oculta, que se constrói e se descontrói constantemente. Caso exista, é num processo de “fazimento” e “desfazimento” constante.

Roberto Corrêa dos Santos ainda ressaltou que não via nada de novo (nem de contemporâneo) na tecnologia nem na web nem no facebook. O importante não é o que se está fazendo, mas como se faz e de que modo isso pode servir de rasura, de borrão. Especulou que a felicidade seria a constante do ser humano, enquanto os atritos contra ela nada mais seriam do que a tentativa de quebrar essa mesma felicidade. Assim, não seria preciso viver em função do porvir, não precisaríamos ter esperança quanto ao futuro, porque se viveria um presente constante e de plena potência. A consequência disso seria a abolição da ansiedade e, em consequência, de sua dobra, a angústia. Concluiu: não pensamos numa fraternidade do futuro, mas numa que já vivemos agora, com as pessoas que conhecemos e com os amigos com os quais convivemos.

Voltei para casa pensando nessas questões e achando que elas traziam algo novo. Além disso, a obra de Roberto não tem preocupações com o mercado. É composta por livros quase artesanais, que prescindem de grandes editoras e de livrarias conhecidas. Apesar da sua grande importância, está toda esgotada. Quando lança um novo livro, o próprio poeta o distribui entre os muitos amigos que possui. E não se trata de um jovem idealista, ele já está na estrada desde meados do século passado.

Voltando à amiga lá do início da conversa, minha conclusão é que a função atribuída por ela aos intelectuais deveria ser a de todas as pessoas que compõem a sociedade. Pois os intelectuais jamais poderão assumir a posição de um pai zeloso ou de uma elite iluminada que poderia ditar “saídas” para a sociedade em momentos de crise.

Se há alguma iluminação nisso tudo, esse brilho seria apenas o fugaz lampejo de um borrão do real, manifestação atemporal e simultaneamente tempo-convergente, atuando como efeito do ter sido e do que se é, algo impossível de ser nomeado e de ser medido. Talvez essa constatação seja uma das poucas certezas do intelectual, por ser ele o mais capaz de atestar a fragilidade que o conhecimento comporta.  Assim, saber já não seria adoecer.

sábado, maio 05, 2012

A nova classe média vai ao paraíso

Na última quarta-feira, na sua coluna de O Globo, Artur Xexéo falou sobre a quantidade de espectadores do atual cinema brasileiro. O articulista citou um melancólico desabafo do cineasta Fernando Meirelles, quando este foi homenageado no festival de cinema de Pernambuco. Eis o que Xexéo escreveu: “ele tratou de pôr uma dose de tristeza na comemoração. Decepcionado com a bilheteria de 'Xingu', o filme de Cao Hamburguer que ele (Meirelles) produziu e que, depois de três semanas em cartaz, só tinha conquistado 280 mil espectadores (a expectativa é que chegasse a um milhão), o diretor anunciou que desistiu de filmar 'Grande Sertão: Veredas', a adaptação do romance de Guimarães Rosa que seria o seu próximo projeto brasileiro.”

Meirelles ressaltou que um filme para fazer sucesso no Brasil precisa atingir a classe social que, segundo ele, está começando agora a frequentar o cinema. Ainda afirmou que se fosse lançar novamente “Xingu” faria outro trailer e outro cartaz, só para a chamada nova classe média.

Não entremos no mérito dessa discussão porque teremos aí muito pano para manga. O mesmo Xexéo escreveu várias vezes sobre isso. Pretendo destacar outro ponto de vista.

Meirelles não falou que faria novo filme, mas nova estratégia de marketing. Uma vez que é um profissional oriundo da publicidade, o diretor de “Cidade de Deus” acredita literalmente que a propaganda é a alma do negócio, modo de pensar peculiar de pessoas que trabalham nesse ramo.

Outro dia, lendo na internet o site do Observatório da Imprensa, descobri um artigo chamado: “A construção da realidade” de Carlos Tourinho. Não compactuo de todo com suas posições, às quais faria várias ressalvas. Mas o autor questiona o poder da mídia (e por extensão da publicidade) na sua capacidade de influenciar diretamente o comportamento do leitor/espectador/consumidor. E ele trabalha com televisão. É editor da TV Globo, no Espírito Santo.

Sabemos que os meios de comunicação de massa têm sua parcela de responsabilidade na construção da realidade. Mas caso pudessem tanto, seríamos apenas marionetes em suas mãos. Portanto, não existiriam levantes, insurreições ou mesmo revoluções. Ou esses eventos só ocorreriam sob seu patrocínio.

Antes, eram os militantes de esquerda os apontados como aqueles que acreditavam na capacidade total de manipulação das emissoras de TVs. Todas elas tinham uma salinha a partir de onde se exercia a tal manobra oculta e suspeita de falsificação da realidade. No artigo de Tourinho, esse fictício local é chamado de “sala da maldade”.

Entretanto, Fernando Meirelles e o pessoal da publicidade acreditam fielmente que, das salas onde funcionam seus escritórios de propaganda e marketing, é possível bolar estratégias que levem a nova classe média ao cinema. Não é preciso fazer um novo filme, apenas uma campanha de lançamento eficaz. Aí, o lucro seria certo. Em contra partida, lançamento equivocado, fracasso garantido. Onde, então, errou o cineasta? Ainda, segundo ele, o equívoco se deu porque ele fez publicidade visando à classe A, isto é, aqueles que ganham mais, enquanto o correto seria focar a classe C, os frequentadores dos cinemas dos shoppings de subúrbio. Assim, sua contabilidade cresceria. Ao invés dos 280 mil, ele teria um milhão de espectadores.

Xexéo ainda relativiza o fracasso (ou seria o sucesso?) ao mostrar que o filme brasileiro, caso comparado a filmes estrangeiros de maior orçamento, não sai perdendo. Cavalo de Troia, de Spielberg;  J. Edgard, de Clint Eastwood; ou O artista (com vários Oscar) tiveram bilheteria menor do que o filme do sr. Meirelles.

No final, soa um pouco pretensiosa a afirmação do cineasta, de que cancelou o projeto de filmar “Grande Sertão: veredas”. Em primeiro lugar, ele fala como se fosse fácil filmar uma literatura que tem como principal personagem a própria língua. Em segundo, já que teve prejuízo com “Xingu”, não pretende mais levar avante seu próximo projeto de filmar no Brasil. O cineasta comporta-se como se não tivesse ao seu alcance todos os recursos necessários para executar qualquer tipo de projeto.

A verdade é que o cineasta-publicitário ainda não se acostumou ao travo amargo do que é fazer cultura brasileira. Cultura tantas vezes ridicularizada por setores irresponsáveis da própria elite.

Talvez sejam mais nobres os projetos que levem em consideração as mesmas mercadorias citadas pelo produtor e que, também segundo ele, estariam mais próximas desta nova classe média, como a luzinha azul dos celulares 3G e os cartões de crédito. Produtos, aliás, tão alardeados por estratégias de marketing velhas conhecidas sua e que agora lhe servem de estorvo ao distraírem os tais consumidores deixando-os longe de seu filme e do cinema brasileiro.