sábado, fevereiro 07, 2009

Filosofia, literatura e teoria crítica

Ensaios de pensadora alemã refletem paixões e angústias de todo um século

Autora de obras importantes, entre elas Origens do totalitarismo e A condição humana, Hannah Arendt (Hannover, 1906 – Nova York, 1975) doutorou-se em Filosofia ainda na Alemanha, tendo sido discípula de Martin Heidegger e Karl Jaspers. Nos primeiros anos de 1930 foi obrigada a deixar o país devido à perseguição que o nazismo começa impor aos judeus. Viveu na França até 1941, quando foge para os Estados Unidos onde se estabelece; pouco a pouco passa a lecionar em várias universidades americanas. Arendt não gostava de ser chamada de filósofa, definia-se como pensadora política ou estudiosa de teoria política. Talvez um dos pontos principais de sua obra seja a reflexão sobre o problema que dá título a um dos livros mencionados acima: o totalitarismo e suas origens.

A partir do surgimento e expansão do nazismo, tenta compreender como esse tipo de regime, que provocou a morte de dezenas de milhões de pessoas e chegou ao requinte de produzir a morte em série, encontrou solo fértil entre os alemães e entre outros povos europeus. Como um país, como a Alemanha, berço de grande parte do pensamento ocidental, permitiu que surgissem as sementes da tragédia e como elas progrediram até gerar tudo o que já conhecemos.

Em outro livro importante de Arendt, Eichmann em Jerusalém, na verdade livro-reportagem em que ela acompanha o julgamento de um dos carrascos nazistas, a filósofa pôde constatar a banalização do mal. O réu diz em seu depoimento que não teve culpa do massacre aos milhões de judeus, na Segunda Grande Guerra; declara que o fez cumprindo ordens superiores e, se preciso, faria tudo novamente. Temos então o seguinte paradoxo: o homem, um ser que é caracterizado pela liberdade e pela razão, transformando-se em alguém impotente ante a máquina do estado – drama antevisto por Kafka duas décadas antes –, alguém que está preocupado com sua família, sua vida privada e que se tornou incapaz de enxergar a verdade e de se insurgir por ela, incapaz de perceber a importância do político, isto é, da vida na pólis com todas as implicações que ela merece. Explicando de modo mais claro: alguém que percebesse que o político – o público – deveria imperar sobre o privado.

O livro Compreender – Formação, exílio e totalitarismo, lançado agora pela editora da UFMG em parceria com a Companhia das letras, traz quarenta ensaios da autora sobre os mais diversos assuntos e uma entrevista. Esses textos, no entanto, não deixam de ter a mesma importância de suas grandes obras. Há aqueles em que predomina a reflexão sobre a vida subjetiva, há outros que focalizam o desenvolvimento de uma consciência social e política. Muitos lidam com a Segunda Guerra Mundial, causas e conseqüências do nazismo e os múltiplos fenômenos do totalitarismo, como enfatiza o organizador, Jerome Kohn, na introdução. Mas o que predomina é o tom reflexivo sobre o pensar, sobre a filosofia a partir de Kierkegaard e sobre a crise do pensamento moderno.

Um dos pontos altos do livro é a abordagem de Hannah Arendet sobre a perda do espaço público no contexto da modernidade. Na entrevista concedida a Günter Gaus em 1964, publicada no começo do livro, o entrevistador faz o seguinte comentário antes de fazer a pergunta à filósofa: “Numa de suas obras mais importantes, A condição humana, você chega à conclusão de que o período moderno destronou o sentido do que interessa a todos, isto é, o sentido da importância primordial do político. Você define como fenômenos sociais modernos o desenraizamento e solidão das massas e o triunfo de um tipo de ser humano que encontra satisfação no processo de mero trabalho e consumo. Em que medida esse tipo de conhecimento filosófico depende de uma experiência pessoal que aciona o processo de pensamento?” Ela responde: “Não acredito que possa existir nenhum processo de pensamento sem experiência pessoal. Todo pensamento é um pensamento posterior, isto é, uma reflexão sobre algum fato ou assunto. Não é assim? Vivo no mundo moderno. Isso afinal é incontroverso. Mas a questão de simplesmente trabalhar e consumir é de importância crucial porque aqui se define também uma espécie de amundaneidade. Ninguém mais se importa como o mundo aparenta estar.”

É sempre arbitrária a escolha de ensaios dentre tantos de tão grande importância, mas destaco três e tento sublinhar o que eles trazem de importante. O primeiro é o que tem como título o nome de “Soren Kierkegaard”, em que Arendt discute a introdução do pensamento do filósofo dinamarquês na Alemanha e no meio filosófico ocidental. Kierkegaard, pela primeira vez, coloca em destaque o sujeito filosofante, em contrapartida à filosofia sistêmica de Hegel, onde o ser individualizado é apresentado como algo abstrato. Outro ensaio interessante é: “Franz Kafka: uma reavaliação”, de 1944. Aqui a autora privilegia a escrita simples do autor de O processo em oposição à complexidade dos temas abordados por ele, aparentemente de difícil compreensão mas sempre portadores de uma “verdade simples e incontestável”. O terceiro é “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”, onde ela tenta compreender a passagem da “vida contemplativa” para “a vida ativa”, que caracteriza grande parte do pensamento do século XX e do envolvimento da filosofia com o posicionamento político que a modernidade exige. A pensadora fala de filósofos como Jaspers, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Camus, entre outros.

Num período em que o pensamento se encontra muitas vezes abandonado, entregue apenas aos guetos universitários, a publicação desses ensaios representa uma chance para que muitos leitores não esqueçam que a liberdade de pensamento e a reflexão sempre foram instrumentos de defesa da humanidade.

Compreender – Formação, exílio e totalitarismo – ensaios
Hannah Arendt
Organização, introdução e notas: Jerome Kohn
Tradução: Denise Bottmann
Ed.: Companhia das Letras e editora da UFMG, 490 páginas