terça-feira, outubro 12, 2010


Casamento
Marta desceu a escada da varanda de casa. Estava quase junto às areias da praia. Era costume seu todo dia ainda permanecer um quarto de hora na cama. Depois vestia o biquíni e descia para a beira do mar. Caso o sol já estivesse quente, ou já o sentisse na pele mesmo de modo brando, sentava-se diante do mar e admirava o horizonte. Pensava qual seria a distância em que céu e mar aparentemente se tocavam. No verão, aproveitava para mergulhar logo cedo, sentir a temperatura da água a estimular-lhe a pulsação.


O dia era especial para ela, sorriu ao lembrar-se. Aliás, toda mulher estaria feliz por viver a perspectiva de um dia como o de Marta. Como sempre, deu os passos costumeiros e foi quase até à beira d'água. Sentou e se espreguiçou. Recostou diretamente na areia sem se preocupar com os pequenos grãos que lhe grudavam na pele. Olhou para o céu. Depois de alguns segundos fechou os olhos para ouvir melhor o estouro da arrebentação. Aquela praia era um refúgio onde quase ninguém aparecia. O barulho de um vento brando e o marulhar lhe faziam constante companhia. Um ruído diferente, no entanto, atraiu sua atenção. Era um som que vinha de uma certa altura. Abriu os olhos e viu no céu uma enorme pipa. Reparou que o ruído era provocado pela resistência das as asas do objeto contra o ar. Seguiu o grosso fio que sustentava a pipa, acompanhou seu peso através de uma espécie de barriga que o cordão fazia no ar. Pela altitude, quem a conduzia não devia estar longe. Marta não quis voltar-se, gostava de estar sozinha aquela hora, preferia não dar pelo inoportuno, que pouco a pouco se aproximava.
Não demorou e surgiu-lhe o homem às costas. O condutor do enorme objeto voador era um senhor, isso mesmo, alguém de meia idade. Passou ao lado dela, a uns dez metros, não deixou de lhe desejar um sonoro "bom dia", e continuou seus passos lentos até molhar os pés e tornozelos dentro do mar.


Marta teve vontade de dar as costas e voltar para casa. Ainda não tinha feito o café, e ansiava por uma xícara. O homem, porém, tinha os cabelos grisalhos, e eram fartos. Não deixou de observá-los. Surpreendeu-se com a quantidade de cabelos para alguém que já devia ter passado dos quarenta, ou mesmo dos cinquenta. Quando ainda não resolvera levantar-se, ouviu o homem:


"Bonito, não?" Após as duas palavras, olhou na direção da pipa, fazendo de conta que apresentava o objeto à mulher. Continuou: "Custou-me dois dias de trabalho", virou-se mais uma vez para ela e sorriu.


Marta não quis ser indelicada. O homem parecia simpático. Não era um intruso qualquer, seu único interesse parecia ser suas asas voadoras.


"Belo lugar, não o conhecia, você vem sempre aqui?", sua voz límpida não levou em conta que ambos eram desconhecidos.


"Mais ou menos", foi a resposta de Marta.


Ele sorriu mais uma vez, sempre com a atenção voltada para a pipa. "Sou de Blumenau, estou viajando a trabalho, mas você não imagina como sou apaixonado por praias e pipas."


Foi a vez de Marta sorrir. Parecia sincero: apaixonado por praias e pipas. Ela achou sonora a expressão. Pelo menos não viera importuná-la como faziam os rapazes que apareciam na praia um pouco mais tarde. Aquele papagaio segurado pelo grosso cordão, aproveitando o vento que não cessava, era a verdadeira intenção do homem de meia idade.


"Carlos Alberto, desculpe-me, acordei indelicado hoje, nem me apresentei. Deve ser por causa desse mar maravilhoso e dessa pipa monstruosa", acabou de falar e Marta pode reparar seus dentes muito brancos. Parecia realmente um homem muito bem cuidado, alguém que se preocupava com os detalhes. Sim, para ela, os detalhes sempre foram o mais importante.


"Marta", pronunciou seu nome, sua voz não soou alta, mas no tom suficiente para que pudesse ouvir.


"Você é dessa região?"


"Sim e não."


"Suas respostas são interessantes: 'mais ou menos, sim e não'."


"É que não nasci aqui, mas vivo aqui desde criança."


"Agora, sim, agora você foi clara como o céu, como a luz desse imenso sol."


Marta gostou daquelas palavras. Pareciam as palavras de alguém muito feliz. Ela olhou mais uma vez para a pipa, para o longo cordão e para o homem, prestou atenção ao seu esforço de empiná-la cada vez de modo mais elegante.


"Você me dá licença, mas tenho de ir", disse a mulher. "Adeus."


Ele deixou a pipa no ar, cuidada apenas pelo vento. Segurava o cordão, mas já não olhava na sua direção.


"Ei, espere, a manhã está tão bonita, fique mais um pouco."


Marta percebeu que o rosto dele se franziu, que aguardava ansioso por uma resposta. Desejava sua permanência, mesmo que precária.


Ela voltou-se, chegou a dar uns passos, estacou e disse:


"Sabe, é que hoje é um dia especial para mim."


"Especial? Que bom saber disso! Então me conte, quero saber por quê."


Ela deu um longo suspiro, piscou os olhos, viu que uma onda maior se desfazia em espuma e vinha desordenada em direção à areia.


"Está vendo aquela casa logo ali?", apontou a ele, "é onde moro; acordei e saí imediatamente, nem tomei café. Estou seca por um café. Espere então um pouco que eu volto. Volto e prometo que lhe conto porque hoje é um dia especial para mim."


Caminhou de volta até a escadinha que levava à varanda. No meio do caminho teve a intenção de olhar trás. Queria saber se o homem a apreciava. Sua seminudez provocava. Mas seguiu. Não se deixou tomar pela curiosidade.


Quando voltou, ele estava voltado para o mar. A pipa, segura no ar; o cordão a sustentava e estava amarrado a uma pedra. O homem parecia um Buda a meditar, os olhos cerrados, alheio ao mundo à sua volta.


"Café?", sua mão direita estendia a ele uma caneca.


Alberto abriu os olhos sem se mexer. Apreciou Marta de rabo de olho. Depois, ainda vagaroso, desfez-se da posição e segurou o café.


"Obrigado!"


"Me desculpe se despertei você do seu transe..."


"Oh, nada disso, sua presença é mais importante."


"Desinteressou-se da pipa?"


"Não, claro que não. Ela é capaz de voar sozinha. Ela e o vento", levantou o rosto e a admirou. "Seu café está delicioso."


"Sou péssima cozinheira."


"Não diga? Você está sendo modesta. Gosto de café forte. Conseguiu me satisfazer. E, olhe, sou exigente."


"Os homens são exigentes, você tem razão. Muitos aceitam qualquer coisa no começo, mas depois se tornam exigentes."


"Não acredito. A única coisa que eu exijo é saber por que hoje é um dia especial para você. É seu aniversário?"


"Ah, sim, já ia me esquecendo. Prometi dizer o motivo. Não, não é meu aniversário. Hoje, vou me casar."


"Sério?", deu uma imensa gargalhada. "Não pense que estou debochando, não. Quero lhe dar meus parabéns! Que bom! Você se casa hoje? Que ótima notícia."


"Você acha mesmo ótima?"


"Claro que sim. Por que pensaria de modo diferente?"


"Geralmente as pessoas viram a cara quando uma mulher fala em casamento.
Muitos até mesmo desaconselham que se case."


"Não os ouçam. Case-se. Você será muito feliz?"


"Jura?"


"Claro que juro."


"Mas como você sabe que vou ser feliz?", Marta parecia ter dúvidas quanto ao futuro.


"Pela sua fisionomia, tenho certeza de que você vai ser feliz. Você possui uma face luminosa."


"Obrigada. Nunca conheci alguém que tivesse me dito isso."


"Fala sério? As pessoas por aqui não conseguem adivinhar quando alguém vai ser feliz?"


"Ah, acho que não. Muitas nem querem a felicidade dos outros."


"Fale-me sobre seu futuro marido. Como ele é?"


"É uma pessoa boa, interessante; é muito atencioso."


"Então, não há o que temer."


"Acho que não. Mas às vezes penso que o problema sou eu, sabe? Sou um tanto temerária."


"Não se preocupe. Ele saberá mantê-la. Os homens adoram temeridades."


Ele riu. Ela também. Permaneceram em silêncio por um longo tempo. Depois, ele tomou nas mãos a pedra que segurava o cordão da pipa. Pegou o cordão e fez alguns movimentos. O enorme papagaio mexeu-se no ar, pareceu que ia mergulhar, mas logo voltou à posição anterior.


"Já segurou uma pipa, alguma vez?"


"Quando era criança, acho."


"Segure, agora. Volte no tempo. Às vezes em alguns aspectos somos sempre crianças."


Marta segurou o cordão, tentou alguns movimentos. Ele a ajudou. Moveram juntos a pipa. Ela pode sentir o arfar do peito dele às suas costas. O homem era peludo. Ela sentiu uma grande vontade de abraçá-lo. Depois deixou novamente o cordão nas mãos dele, virou de frente, olhou diretamente seu rosto e sorriu.


"Dizem que os homens na noite anterior ao casamento fazem uma despedida de solteiro. É verdade?", ela.


"Os homens e também as mulheres, por que não?"


"Não me despedi. Tenho apenas duas amigas e elas estão viajando."


"Creio não haver problema. Você também pode se despedir da sua vida de solteira sozinha, pode namorar este mar, este céu, o sol."


"É, acho que posso."


"Onde vocês vão passar a lua de mel?"


"Vamos viajar para a Bahia."


"Que beleza, a Bahia. O melhor lugar do mundo. Sabia que houve um filósofo francês que sempre vinha à Bahia nas férias? Dizem que não saía de lá. Pena que ele morreu. Mas há outros estrangeiros que adoram a Bahia. Um longo e belo litoral. Muitas praias desertas, a água quente, sempre quente!"


"Vamos mergulhar?", perguntou Marta. "Não quero me despedir daqui porque vou voltar. Vamos continuar morando aqui por uns tempos."


"Ótimo. Entremos no mar", prendeu o cordão da pipa novamente na pedra, caminharam até à beira d'água e mergulharam. Nadaram mar adentro.
"Olhe", apontou ele à pipa, “está se movendo sozinha, de um lado a outro. Mas creio que continuará pairando acima de nós."


"Lembra que eu disse que sou temerária? Assim como sua pipa. Mas acho que vou conseguir ficar por cima. É sobre o casamento, sabe."


Nadaram mais um pouco. Ele ainda voltou-se para a pipa, observou que se mantinha aprumada. Sentiu então a mão de Marta a tocar-lhe o ombro, depois o peito. Voltou-se para ela. Ela sorria. Um sorriso luminoso.


Ambos se aprofundaram no mar bravio. Não pensaram que se distanciavam da costa. Preferiam aquelas águas agitadas. Talvez fosse mais fácil domá-las do que domar as intempéries provocadas pelo amor.


Naquela manhã se amaram. Ainda que apenas aquela vez.

sábado, outubro 09, 2010

Esqueça isso, sobre eleições

Desci para ir à banca de jornal. Era segunda de manhã. No meio do caminho, encontrei o Jofre.

“Oi”, falou quase me segurando por um dos braços, “já sabe o resultado das eleições?”

Fiz que não com a cabeça.

“Tanto sacrifício à toa, esses palhaços vão estar por cima por mais quatro anos.”

Eu não tinha visto a TV nem ouvido o rádio. Ia até a banca, mas também não era para saber sobre eleições. Até mesmo esqueci que tinha havido eleições.

“Lembra-se daquilo que lhe falei na última vez em que estivemos juntos?”

Não esperou que eu respondesse.

“Aconteceu exatamente o que eu temia.”

Fiz menção de continuar o meu caminho.

“Mas ouça, isso não pode ficar assim, são os mesmos que sofrem os que votam nesses caras. Acham que as coisas acontecem porque têm de acontecer.”

Fiz um movimento vago, que podia ser interpretado como concordância.

“Vai comprar o jornal?”, perguntou, “posso ir com você?”

“Fiquei vendo filmes até muito tarde, me esqueci de tudo.”

“Que filmes você assistiu?”

“Alguns que estavam na casa de meu pai. Fui até lá, ontem. Encontrei-os e resolvi trazê-los.”

“Vou até a banca com você.”

“Tudo bem. Sabe quem me procurou, na sexta?”

“Não.”

“O Reinaldo.”

“O Reinaldo?”, surpreendeu-se. “Não o vejo faz tempo. Acho que não tem aparecido por aqui. E o que ele queria?”

“Disse que ia fazer uma viagem, ficar fora por uns meses, não sei. Não acreditei muito na história dele.”

“O Reinaldo é uma pessoa estranha. Ninguém consegue entendê-lo. Certa vez, pensei que fosse viciado em algum tipo de droga. Mas nem pra isso ele serve. Bebe um pouco, fala umas besteiras e desaparece por uns tempos.”

“Acho você muito exigente com ele. Todos têm seus problemas.”

Tínhamos chegado à banca de jornal.

“Olhe só a cara do palhaço. Já colocaram a foto na primeira página. Esses jornais subservientes apoiam todos que lhes dão algum trocado.”

Olhei uma revista. Não era sobre política. Futilidades. Mas era o que me interessava. Peguei um exemplar e paguei ao dono da banca. Jofre me olhou enviesado. Mas nada falou.

“Vou tomar um café, em casa não tenho mais açúcar”, eu disse.

Atravessamos a rua e entramos no bar. Acabou me acompanhando. Em um canto, dois homens ainda conversavam sobre as eleições. Notei que Jofre esforçou-se para ouvi-los, mas logo desistiu. Bebemos nossos cafés. Pagou o dele e o meu.

“Vamos até lá em casa”, falei.

Tomei-o pelo braço e seguimos de volta. Pareceu animar-se, esboçou um ligeiro sorriso.

Quando entramos, abracei-o.

“Esqueça isso, sobre eleições, eles não vão conseguir reger nossas vidas”, terminei a última palavra e o beijei na boca.

Falou, quase em surdina:

“Não sei, Joana. Mas talvez você tenha razão.”

Recostamo-nos no sofá, ainda abraçados um ao outro.

sábado, setembro 25, 2010

Entre a paixão e o pensamento
Resenha do livro de poemas de Ronaldo Lima Lins

Mais do que a areia menos do que a pedra é o novo livro de Ronaldo Lima Lins. Conhecido ensaísta, romancista e professor de teoria literária da UFRJ, ele lança seu primeiro livro de poesia. Para quem já se acostumou à refinada prosa de reflexão presente tanto em seus romances como em seus livros de crítica da cultura, seus poemas não traem o pensamento filosófico do autor e contribuem para enriquecer o atual panorama da literatura em língua portuguesa.

Todo poeta certamente deseja que sua produção seja original e, ao mesmo tempo, apresente com maestria os temas que sempre frequentaram a alta literatura. Uma vez que a gênese do autor é a filosofia, teorias que discutem questões existenciais e/ou sociais, seu texto poético também parte do pensamento crítico. Mas nele não deixa de estar presente uma grande dose de emoção. Os poemas de Ronaldo Lima Lins sugerem que, para a consolidação do pensamento crítico, o autor precisa trafegar também na via da poesia. Sempre que as perspectivas de soluções engendradas pelo método ameaçam naufragar, a poesia surge plena de possibilidades, mostrando que na criação estética está uma das principais saídas para o ser humano. Isso não quer dizer que, além da prevalência do caráter estético, poemas não levariam o homem a um novo patamar de indagações. Talvez aqueles que no decorrer da vida conseguiram atingir a maturidade nas suas reflexões tenham percebido que a poesia é a forma que nos resta para tentar uma espécie de salvaguarda existencial, a partir do momento em que caíram por terra muitas das perspectivas filosóficas.
O poema é uma construção estética que não tem compromisso com a explicação de sistemas nem com a apresentação de respostas. Sua necessidade estaria no fato de o poeta captar o “eu” dilacerado do ser humano para que, através desta arte feita de palavras, rearticulasse a humanidade perdida.

A filiação literária de Lima Lins remonta aos trovadores, navega nas mesmas águas de Camões, passa ao longo da modernidade por Baudelaire. Na literatura brasileira, estão presentes, como também afiança o prefaciador J. M. Neistein, Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade e mais discretamente João Cabral de Melo Neto. Da filosofia, dentre muitos autores – difícil enumerar todos eles – , percebe-se a forte presença da teoria crítica. Adorno foi um autor que fez a crítica da cultura através da arte. Ronaldo Lima Lins segue seus passos, somando sua visão de mundo bastante pessoal.

O livro é dividido em três partes: “Mais do que a areia menos do que a pedra”; “O direito pelo avesso o avesso pelo direito”; e “Chegar para partir”.
Já na epígrafe de Victor Hugo, é anunciada a proposta poética do professor Ronaldo: “Pois a poesia verdadeira, a poesia completa, está na harmonia dos contrários”. Sua construção poética vai gravitar na tensão imanente em que trafega a própria literatura: forma e conteúdo, metonímia e metáfora, antíteses, paradoxos, diálogos entre os temas da literatura e da filosofia, diálogos com outros autores e, enfim, a dialética da dor e de uma espécie de esperança, que somente a arte poderia acalentar.

Na abertura, o poema “Odores” apresenta os sentidos não em oposição ao espírito, à imaginação, à memória ou ao sonho, mas como meio de despertá-los. “Algumas lembranças surgem / perfumadas. / Evocam momentos. / Eternizam instantes”. Mais adiante: “Se fosse possível / construir/ um sonho, / eu / começaria abrindo esse frasco / De magia.” Resta a possibilidade de tentar a palavra impossível, o sonho de todo poeta: “deixaria que os odores me viessem / com tudo / que não pode ser dito. / Só com eles atingiria o infinito. [...] Lá onde o sol não se põe / e as estrelas cintilam no horizonte.”

O poema “Chocolates de Pessoa” retoma Fernando Pessoa de uma forma lúdica, e mostra “os ideais traídos”: “Os chocolates de Pessoa / têm um sabor amargo. / Não se dissolvem na boca, / não lembram festas juninas. / [...] São doces da maturidade / cozidos com ingredientes / exóticos entre pitadas de / sal e frutos da consciência. / Formam navios à deriva de / navegações sem farol sobre os / mares em fúria de ideais traídos.”

Em “O momento”, o autor descobre que somente a paixão é capaz de movê-lo, e isto se dá através de um aparente paradoxo, a observação de uma escultura: “Um beijo de mármore / de uma estátua de Rodin / roubou-me / do veneno da / paralisia.”

Dois poemas, na parte final, são bastante representativos ao apresentar uma realidade que não acontece ao acaso e que exige do ser humano o cumprimento do seu papel no vasto teatro do mundo. São eles “Catástrofes” e “Ouvir tambores”. Eis alguns versos do primeiro: “Catástrofe / é o que se dá / quando um mundo desaba / e leva a vida de roldão. / Os homens / são arquitetos, / vanguarda da sua ação. / Armados marcham, / queimam e devastam / o que lhes impede o caminho. / [...] Homens que se afastaram / por um tempo, / ao voltar, / encontraram ruínas: / casas, ruas, famílias, / templos e credos / sob escombros. / Quase desmoronaram. / Mas um deles, / com argamassa / e pá de pedreiro, / começou a empilhar os tijolos. / Não dizia nada: agia. / Outros o acompanharam. Uma febre.”

No segundo poema há, no início, o chamado através do bater de tambores: “Ouvi tambores. / Eles batiam sincopados, / como se me chamassem. / Tum! Tum! Tum.” Uma série de vidas, toda uma tradição visita o poeta: “Fisionomias conhecidas, / que me visitavam, / com gestos / e movimentos de corpo, / montavam um teatro / que só existia para mim. / Tum! Tum! Tum! [...] Escorreguei / num fio de esperança. / Senti que caía / numa rede de distâncias / e aproximações. / À maneira de um trapezista, / com um passo em falso, / num clamor de espanto / voei para o abismo.” No final é a consciência que irá predominar, ainda que despertada pelos sentidos: “Um gosto / de morangos silvestres / despertou meu paladar. / Tum! Tum! Tum!” Enfim, o poeta encontra uma porta para ao menos um sinal de salvação, que, na verdade, está no pensamento e nele mesmo: “O pensamento que me ocorre / é mais duro, mais forte / e mais definitivo do que eu.”

Talvez a poesia seja isso: tambores. Uma espécie de chamado que desperta e procura na dialética entre as paixões e o pensamento uma síntese do humano.

Mais do que a areia menos do que a pedra
Ronaldo Lima Lins
7 Letras
281 páginas

segunda-feira, agosto 23, 2010

A bordo da Vespúcia(18/08/2010)
por Haron Gamal

Vespúcia do Sul, de Paulo de Paiva Serran, é um livro de aventuras. O narrador é um jornalista que vive constantemente na corda bamba, ameaçado de perder o emprego.Ao começar a contar sua história, diz: "Lá pela virada do milênio, quando eu tinha tudo na vida. Emprego, namorada, dinheiro, carro, eu tinha tudo.Menos vida".

A partir desse narrador decaído, que nos lembra detetives de romances noir, vamos saber a história de Emanuel, um velho caçador de tesouros, fanático por relatos de naufrágios. A narrativa se inicia em Cabo Frio, passa pelo Rio, depois segue para Pernambuco, aonde o personagem viaja com o intuito de produzir matéria sobre artes plásticas mas acaba investigando a suposta morte do velho capitão da embarcação Vespúcia do Sul.

O enigmático nome surge em homenagem a um dos primeiros desbravadores da costa brasileira, Américo Vespúcio. O continente, segundo Emanuel, deveria ter o mesmo nome do seu barco, porque, em todas as ocasiões, o sobrenome prevalece: "Pra começar: por que diabos América e não Vespúcia? Afinal de contas, não é Cristóvia, mas Colômbia. Não é Pedrália, mas Cabrália. O estreito é de Magalhães, e não de Fernão. Vespúcia combina muito mais e soa muito melhor!".

Na verdade Emanuel está atrás do tesouro que, segundo a lenda, vinha numa das naus da mesma expedição em que viajava Vespúcio, a nau capitaneada por Gonçalo Coelho, que naufragou nas proximidades de Fernando de Noronha. O tesouro, que estaria na nau capitânia, foi transladado para a nau de Vespúcio. Este, continuando a navegação rumo ao sul, teria costeado Cabo Frio e ancorado. Ali, teria desembarcado as peças valiosas dentro de uma arca e a enterrado nas imediações da antiga feitoria.

O autor segue a trilha aberta por Stevenson no clássico A ilha do tesouro, romance também de aventuras no mar em que o narrador Jim Hawkins passa por sérios perigos até alcançar seu objetivo. Em Vespúcia do Sul, João parte em busca não propriamente de um tesouro, mas de uma boa história capaz de lhe render algum lucro e de mantê-lo empregado no jornal. Na literatura brasileira, o périplo aberto por Stevenson encontra ressonância na obra do escritor brasileiro de nome dinamarquês Per Johns, sobretudo no livro Aves de Cassandra, ao qual o livro de Serran se filia.

Uma outra via que se pode seguir é a do romance noir, devido às peripécias vividas pelo narrador ao viajar para o Nordeste. A princípio, vai com o objetivo de fazer uma espécie de documentário sobre o artista plástico Francisco Brennand, mas casualmente se depara com um dos tripulantes que teria morrido no naufrágio da Vespúcia do Sul.Neste trecho da narrativa, ele vai se deparar com bandidos, prostitutas, pederastas, um menor infrator e até com uma senhora mafiosa que o intimará a deixar o Recife, caso não queira perder a vida. Não fica de fora o envolvimento amoroso, que acontece com Lindinha, mulher fatal, namorada e amante de vários outros personagens nada recomendáveis.

Vespúcia do Sul, segundo livro de Paulo de Paiva Serran, mostra a habilidade do autor em contar histórias com toda a riqueza que elas podem proporcionar, sendo estas tanto de extração histórica, de aventuras - devido às peripécias de Emanuel em busca de tesouros perdidos - de naufrágios, ou mesmo de natureza policial, o que move o fracassado jornalista ao perceber que os estranhos acontecimentos vivenciados por ele podem render uma boa reportagem.É bom deixar o restante como surpresa a ser descoberta pelo próprio leitor.

Também são dignos de louvor o cuidado gráfico e o fino acabamento editorial que o livro apresenta.

Fonte: Jornal do Brasil

terça-feira, julho 20, 2010

Obras de Frank Wedekind revelam conflitos e anseios da adolescência

Haron Gamal*, Jornal do Brasil

RIO - No posfácio à edição brasileira de O despertar da primavera, escreve Marcus Tulius Franco Morais: “No drama, jovens desabrocham para a primavera dos sentidos e se amam no seio de uma paisagem onírica, opondo-se aos preconceitos e ao conservadorismo das instituições”. Na época predominava o naturalismo, mas o dramaturgo conseguiu, através de seu texto teatral, introduzir a discussão sobre o despertar da sexualidade nos jovens e sobre a consequente repressão a que esta discussão era submetida. O esperado debate que a peça desencadeou foi duramente reprimido, ficando o autor durante muito tempo sem poder encená-la. O texto de Wedekind, escrito entre o final de 1890 e a Páscoa de 1891, foi visto como algo capaz de abalar as instituições e a autoridade.

Inspirada na própria vida do autor, que não viveria para gozar o título de um dos mais populares dramaturgos da Alemanha, a peça aborda o percurso dos adolescentes Melchior, Wendla, Moritz, Otto, Robert, Zirschnitz, Röbel, Lämmermeier, Bessel, Thea e Ilse, e é composta quase que inteiramente de diálogos entre eles. Estão presentes suas instabilidades psicológicas em consequência da chegada da puberdade, idealizações e angústias. Aparecem também, como personagens, os pais de alguns deles e os professores, todos extremamente repressores. Frank Wedekind, quando adolescente, teve dois amigos que se suicidaram, tendo prometido a um deles contar sua história. É o que faz através do texto. Moritz Stiefel não consegue viver sua identidade sexual, atravessa vários tipos de conflitos e acaba por suicidar-se. Melchior Garbor também quase se suicida, mas é salvo no final por um personagem simbólico chamado de o Homem Disfarçado. Wendla, uma menina de apenas 14 anos, morre em decorrência de um aborto.

A peça, que já foi encenada várias vezes nos palcos brasileiros – a mais recente delas em forma de musical, com direito à polêmica da aparição do seio da atriz Malu Rodrigues, de 16 anos – possui três atos com cinco cenas no primeiro, e sete no segundo e terceiro. Wedekind quando a escreveu chamou-a de “tragédia infantil”.

Mine-Haha, que tem como subtítulo Sobre a educação corporal das meninas, inicialmente foi escrito para ser um romance, mas seu texto não chegou aos dias de hoje. Em 1903, Wedekind publicou-o como um conto, com três capítulos e mais uma pequena peça denominada o “Príncipe dos mosquitos”, que passou a integrar também o texto. Na edição brasileira, tem 60 páginas. O texto é apresentado como se Wedekind fosse, na verdade, o editor. A autoria do manuscrito é atribuída a uma senhora que, prestes a morrer, o entrega a ele. Ela conta seus primeiros anos de vida, passados num parque, onde vários grupos de meninas e meninos são criados, e toda a educação é voltada para o corpo. Em momento algum há menção a respeito da educação intelectual. Também não se fala sobre pais e mães. Na maioria das vezes, as crianças chegam ali bem pequenas e dentro de uma caixa. Elas cuidam uma das outras, sob supervisão de uma criança mais velha. A partir de determinada idade os meninos são separados das meninas. Estas são educadas fazendo constantes exercícios físicos, aprendem acrobacias e a tocar instrumentos musicais. Próximas da adolescência, trabalham num teatro, único meio de se relacionarem com o mundo. O texto também é simbólico, transparecendo a lascívia dos frequentadores do teatro quando observam sugestões de cenas de sexo ou de sadomasoquismo.

Wedekind denuncia neste texto a exploração a que são submetidas principalmente as meninas, que vivem uma situação de quase servidão. O final é enigmático. Saindo do local pela primeira vez ao chegarem à adolescência, são apresentadas ao mundo formando pares com os meninos que conhecem naquele instante, e sob a expectativa de uma multidão eufórica.

Tanto em Despertar... como em Mine-Haha o que se percebe é a preocupação constante do autor com a consciência do estar-no-mundo das crianças e dos adolescentes, suas primeiras manifestações da sexualidade e a repressão e exploração a que são submetidos por intermédio dos adultos.

À primeira vista, pode parecer que os textos são datados e que se tornaram anacrônicos. Caso se consiga perceber que crianças e adolescentes ainda se autodestroem, enxergaremos uma mordaz crítica ao neoconservadorismo dos dias de hoje, fundamentado nas religiões, no preconceito social ou mesmo num suposto cuidado com a saúde. Não só a sexualidade continua submetida ao controle do poder, mas todo um modo de vida. Ao invés de negar e reprimir assuntos que dizem respeito à sexualidade, como nos dias em que viveu Wedekind, nega-se hoje o esclarecimento sobre os mecanismos perversos de perpetuação da ideologia, expondo-se crianças e adolescentes ao lixo cultural, fruto do mais acirrado meio de incentivo à violência: a voracidade desenfreada do capital.

* Professor e doutor em literatura brasileira pela UFRJ

Obra de Rüdiger Safranski analisa o romantismo alemão

Haron Gamal*, Jornal do Brasil

RIO -

No prefácio de Romantismo: uma questão alemã, Rüdiger Safranski diz: “O romantismo é uma época. O romântico é uma postura de espírito que não está limitada a um tempo”. Seu livro vai seguir exatamente essa estrutura. Na primeira parte, trata o romantismocomo período histórico e literário, abordando, sobretudo, a questão alemã desde Herder, passando por Schlegel, Tieck, Novalis, Schleiermacher, Hölderlin entre outros, até E. T. A. Hoffmann. Na segunda parte, o autor tratará do espírito romântico, que, na verdade, transcende o período do romantismo histórico.

As origens do romantismo, na Alemanha, começam com Herder lançado-se ao mar, isto é, embarcando num navio que o levaria para longe do seu país. Como diz o autor: “Fazer-se ao mar significou para Herder trocar o elemento vital: o firme contra o fluido, o certo pelo duvidoso; significou ganhar distância e amplidão”. A fuga da realidade encontra solo fértil na temática das viagens. O pastor luterano, ao despedir-se de sua comunidade, tinha a intenção de ver o mundo de um maior número de lados. Na verdade, a viagem ocorre devido à necessidade de busca de inspiração, fato que o racionalismo, que dominou o período anterior, não proporcionava. O pensamento romântico tem sua origem na idealização e no sonho.

Pode-se recorrer a uma frase de Hegel, uma geração mais tarde, quando ele fala sobre Kant: “O medo de errar poderia ser o próprio erro”. O homem romântico não se preocupará com o julgamento moral, mas tentará através de atitudes profundamente sintonizadas ao espírito encontrar um novo campo de significações.

A atitude de Herder acabou por incitar o culto ao gênio do Sturm und Drang (tempestade e ímpeto). Aquele que consegue fazer desabrochar sua criatividade seria considerado gênio. O próprio Goethe, num momento de reflexão tardia sobre aqueles anos, “impiedosamente” definirá o gênio como o termo geral para aquela “notória época literária de escolhidos e amaldiçoados, na qual uma massa de homens jovens surgira com toda a coragem e ousadia”.

Apesar de a revolução significar para alguns poetas o início da vulgarização que a modernidade expandirá, não há dúvida de que a Revolução Francesa serviu como estímulo para a derrubada do clássico nas artes. Mesmo que não se fizesse na Alemanha a revolução política, era possível fazer a revolução estética. A queda da monarquia, na França, era a queda do modelo clássico em troca do culto pelo nacional, pelas lendas, pelo folclore, enfim, pela mitologia local.

O olhar sobre a cultura e civilização, passando pela educação estética como um jogo – ohomo ludens, na definição de Schiller – apresenta uma das características marcantes de um período que tenta se afastar da visão estática preconizada pelo clássico. Na perspectiva da linguagem, esse jogo culminaria com a ironia, concepção romântica que permite ao homem aventurar-se com mais profundidade no terreno da linguagem. Além disso, o jogo e a figura do jogador sempre exerceram fascinação sobre o leitor. Na aposta, a vida e a sorte não deixam de estar por um fio. O jogo e a ironia vão se contrapor apenas aparentemente às concepções de religião pura e de amor exacerbado pela pátria. Uma vez que temos em muitos autores do romantismo a vida dupla, a ironia e o jogo estariam de acordo com este modelo de vida.

Outro ponto que preocupava os escritores era a questão da utilidade da arte. Chega-se à conclusão de que a arte é útil apenas a si mesma, e de que toda a sua conceituação fora desse âmbito nos remeteria ao que conhecemos na contemporaneidade como mercadoria. O romantismo foi um período em que se defendia com unhas e dentes uma arte pura, cuja magia emanasse da alma em toda sua plenitude.

Em contrapartida, o autor nos apresenta um capítulo em que há o subtítulo: “O século com nódoa de tinta”. Isso demonstra o ritmo intenso em que andava a produção literária, ou mesmo subliterária, chegando entre 1790 e 1800 a aparecerem 2.500 romances no mercado. Se por um lado existe a preocupação em combater os prenúncios da modernidade através do desprezo da vida real e de tudo que é considerado útil, por outro a máquina editorial cresce e proporciona lucros.

Um dos pontos altos da primeira parte do livro é o seguinte: “A despreocupação romântica antecipa sob certos prismas o posterior pós-modernismo. A diferença é apenas que aqui se brinca com o sentimento de ainda ter muito diante de si, enquanto o pós-modernismo acredita ter quase tudo atrás de si”.

Romantismo e pós-modernismo também se assemelham porque em ambos, apesar das vozes contrárias, tenta-se associar a arte ao lucro, apesar de, no romantismo, as vozes contrárias preconizarem a recusa à modernidade e à arte como mercadoria.

O autor discorre sobre os movimentos românticos existentes na história do Ocidente; agora, como atitudes de vida. Dentre estas posturas, aparecem reação a qualquer tipo de realismo; mobilizações nacionalistas que desencadearão a Primeira Guerra; peregrinação de grupos de jovens que ocorreu na Alemanha nos anos 20 visando a um modelo de vida baseado no dionisíaco; muitos anos depois, o Maio de 1968.

Apesar das contradições que o período traz em si, o que se pode observar é que toda vez que há afirmação violenta do racionalismo, movimentos românticos vêm à tona trazendo no bojo a perspectiva da fantasia. Talvez tenha sido essa a maior contribuição do romantismo: despertou no homem a urgência do sonho e da imaginação num momento em que a intempérie capitalista se anunciava e viria, um século depois, concretizar-se na forma mais avassaladora.

*Doutor em literatura pela UFRJ.

domingo, junho 27, 2010

Ensaio questiona a teoria freudiana da pulsão de morte

Haron Gamal, Jornal do Brasil

RIO - André Martins, em Pulsão de morte?, traz para o debate uma das questões fundamentais da psicanálise, que é a teoria das pulsões. Como se pode deduzir pelo próprio título do livro, o autor apresenta a tese de que esse conceito freudiano é perfeitamente dispensável, ou melhor, a pulsão de morte não existiria, e o que se apresenta na linguagem do inconsciente é uma pulsão originária, de onde sairiam as consequentes dualidades. A base teórica do autor trafega em meio a referências filosóficas que não são novas, remetendo a Parmênides, no mundo antigo, e a Leibniz, às portas da modernidade.

Ainda na introdução, Martins afirma que Freud tomou esse conceito, o da pulsão de morte, como hipótese, e assim insinua que esta foi uma solução momentânea encontrada pelo criador da psicanálise no que dizia respeito ao problema do conflito psíquico, detectado na clínica psicanalítica. O texto induz o leitor a não levar a sério tanto a teoria freudiana das pulsões nem a pulsão de morte. O autor também tratará a questão como hipótese. Partindo de pontos de vista de Spinoza e Nietzsche, sobretudo a partir deste último, privilegiará a concepção trágica da humanidade e invocará o amor fati, originário de uma perspectiva dionisíaca de vida, como pressuposto para uma psicanálise da potência.

Impasse sem resposta

A visão trágica da humanidade implicaria uma postura de vida desidealizada, preconizada e presente na obra do criador de Zaratustra. Mas como coadunar a clínica psicanalítica de potência a partir do ponto de vista trágico da vida, assim como está presente na arte grega, ante a precariedade da existência e a ameaça constante da morte? O impasse, Martins não responde. Os princípios da clínica psicanalítica desenvolvidos por Winnicott como resposta não convencem, porque estão relacionados a casos sintomáticos e pontuais.

A afirmação freudiana de que a cultura é um meio de impedir a ação da natureza, a qual estaria sempre agindo de modo a levar o ser humano ao inorgânico, isto é, à morte, é contestada pelo escritor. Martins tenta demonstrar uma afirmação também problemática: natureza e cultura não estariam em pares opostos, mas a cultura seria um modo da natureza, possuidora esta de uma espécie de linguagem, detectável na sua própria organização e desenvolvimento.

Na primeira parte do livro, o pesquisador apresenta vários textos de Sigmund Freud relacionados diretamente à teoria das pulsões. Martins afirma que fará a leitura desses textos preso à própria letra freudiana. Sabemos, no entanto, que uma leitura totalmente pura, sem contaminação do pensamento e das teorias de quem escreve, é questionável. Ao contestar em Freud os conceitos duais como cultura versus natureza, pulsão de morte versus pulsão de vida, o autor implica num arcabouço teórico que acomodaria o ser humano numa perspectiva de vida em que o conflito não compareceria. Isso geraria dois problemas. O primeiro seria o de que estaria completamente ignorada a tese de que a inscrição do homem no mundo da linguagem o distinguiria dos outros seres da natureza. O segundo problema é que a teoria de uma clínica psicanalítica da potência não levaria em conta o conflito existente dentro do próprio universo da cultura – ou se não se deseja usar essa palavra, para evitar a distinção natureza/cultura – dentro da organização humana com código próprio de linguagem. Tal ponto de vista talvez seja consequência do caráter excessivamente hedonista e politicamente correto da contemporaneidade, em que o “prazer” é incentivado e, ao mesmo tempo, é estimulada a aceitação aparente dos considerados “diferentes”. A forte presença da mídia corroboraria tal concepção, porque induziria as pessoas à opinião de que se vive num mundo sem conflitos e de que todos, inclusive os aparelhos de poder, estão voltados para o bem estar do cidadão e da sociedade, isto é, da cultura.

Sistema único

Uma vez que a bipolaridade política esmaeceu e que foi imposto um sistema econômico único com seu consequente e também único modo de vida – o da felicidade que o consumo possibilita (pelo menos esses é um dos atuais disfarces da ideologia) – não é difícil perceber o caráter falacioso de um princípio que não distingue natureza de cultura. Talvez possamos exemplificar com o seguinte argumento: caso não mais exista conflito entre e indivíduo e cultura – ou mesmo entre natureza e cultura – será devido ao aniquilamento da subjetividade. A não ser que se queira atribuir à natureza uma subjetividade que substitua a subjetividade humana. Em termos psicanalíticos seria o mesmo que constatar o adoecimento de todos. Talvez por isso, Freud se preocupou tanto em explicar a origem da agressividade e buscar uma saída para a questão na pulsão de morte. Portanto, tamanha complexidade não poderia ser deixada de lado por quem descobriu (ou inventou) o inconsciente.

Freud também é acusado pelo autor de Pulsão de morte? de ser um pensador fortemente influenciado pelo romantismo e pelo germanismo, estando na filosofia de Schopenhauer a origem de sua visão negativa em relação ao homem. Após a exposição da argumentação de Martins, caso tivesse razão, sobraria muito pouco da teoria psicanalítica. A proliferação, porém, tanto da clínica como de escolas de psicanálise de exegese freudiana nos permite pôr em dúvida muitos dos argumentos utilizados no livro.

No final, com a proposta de que a pulsão não seja adjetivada como pulsão de morte ou de vida, mas que seja afirmada apenas como originária, permitindo abertura para as possíveis dualidades, não estaria o autor voltando aos princípios preconizados pelo criador da psicanálise?

*Haron Gamal é professor e doutor em literatura brasileira pela UFRJ

quinta-feira, maio 20, 2010

O Hotel

Há mais de vinte anos estive na cidade de M. Fora enviado pelo jornal; estava no início de carreira e já não lembro o que fui fazer lá. Ao caminhar no final da tarde na direção da rodoviária, um senhor bastante idoso, com ares de profeta, colocou-se à minha frente impedindo-me o caminho. Subitamente, pediu que pagasse um lanche. Não sou de fazer favores a pessoas necessitadas, confesso, tanto mais num lugar desconhecido como era aquela cidade. Mas acabei cedendo. Faltava mais de uma hora para o ônibus que me levaria de volta ao Rio. Entramos numa padaria. O homem após receber seu sanduíche e um copo de café com leite me agradeceu fervoroso. Tomei apenas um café, e já ia me afastando quando ele me pegou por um dos braços e disse:

“Espere!”

Assustei-me com o seu tom de voz; parecia uma ordem. Tentei me desvencilhar; seu olhar, porém, era firme, mastigava e mantinha os olhos voltados para os meus. Deu mais uma mordida no pão, limpou um dos cantos da boca e falou:

“Em gratidão, quero lhe fazer uma profecia.”

“Profecia?”, assustei-me.”

“Sim, uma profecia”, dessa vez sua voz soou afetuosa. “Não tema, não é nada de mal; se fosse, eu não diria.”

Assenti através de um ligeiro movimento com a cabeça.

“Vê aquele armazém, no outro lado da rua?”, pousou a xícara sobre o balcão e apontou na direção.

“Vejo, o que há de mal nele?”

“Em breve, vai deixar de existir.”

“E daí?”

“E daí que vai deixar de existir, ora.”

“Era essa a profecia?”

Mordeu o pão mais uma vez; após alguns movimentos com a boca, prosseguiu:

“Há mais uma coisa.”

“O que, então? Fale.”

“Calma, já vou falar.”

Tomou mais um gole de café com leite, levou a xícara mais uma vez, vagaroso, até o balcão.

“Vejo o senhor”, completou, “numa altura de mais ou menos quarenta metros, no espaço aéreo.”

Olhei para ele. Só podia ser louco. Joguei uns trocados ao empregado, paguei a despesa e parti.

Quando ia do outro lado da rua, ainda ouvi a sua voz:

“Quarenta metros, no espaço aéreo!”

Vinte anos depois voltei a M. A cidade havia-se tornada a capital brasileira do petróleo. Fora cobrir um evento importante, onde várias personalidades da área política e econômica compareceriam.

À noite, após tudo terminado, fui para o hotel. Retornaria ao Rio apenas na manhã seguinte. Afastei a cortina, olhei por trás da janela fechada e vi a cidade lá embaixo. Estava toda iluminada, em alguns pontos era possível ver prédios muito altos. Em determinado momento, jurei que via a padaria onde pagara o lanche ao profeta anos atrás. E o armazém, onde estaria? Tinha realmente desaparecido? Após procurá-lo com insistência, doeu-me a cabeça. Doeu-me ainda mais quando deduzi que poderia ter-se transformado no hotel onde eu estava. E eu me encontrava no décimo andar, a quarenta metros do solo, no espaço aéreo...

quinta-feira, abril 22, 2010

O drama de todos nós

Talvez o drama de todo poeta seja o mesmo: como transformar seu drama particular, talvez drama de todos, em poesia? Carlito Azevedo, em Monodrama, não deixa de nos remeter a tal reflexão. Ganhador do prêmio Jabuti em seu primeiro livro, o poeta carioca trafega pelo poético no seu mais recente (quinto) livro, conseguindo a mais alta afirmação. Com vinhetas com os dizeres rêve générale, o texto transita entre a constatação da realidade e a metafísica, como em Paraíso: “foi quando a luz / voltou e vimos / o rosto da jovem / que se picava junto / à mureta do Aterro, / a camiseta salpicada, / a seringa suja. / ‘Nenhum poema é mais difícil do que sua época’, / você disse / em meu ouvido / sem que eu soubesse / se era a ela que se / referia ou se ao livro / que passava das mãos / pra o bolso da jaqueta”. Num outro poema se fazem presentes o desejo e a excitação de um segurança por uma jovem de seios grandes: “a jovem / olhos de guepardo / leitora de Rilke / seios grandes / Entre tantos / manifestantes / é ela que arranca / a primeira / ereção do dia / do segurança / de óculos espelhados”.

Ora o poeta apresenta partes que se subdividem em vários pequenos poemas, os quais mantêm a coesão com os títulos, como em Emblema, O tubo, Dois estrangeiros, Margens e, sobretudo, em Monodrama, que dá título ao livro; ora sua voz ecoa em poemas isolados. Sempre, no entanto, mantendo o diálogo com a linha temática estabelecida pelos trechos que se intercalam, sobressaindo-se poemas como Garota com xilofone, As metamorfoses, Conto da galinha, Pequenas humilhações diárias e O anjo boxeador.

Uma característica da poesia contemporânea, que teve início ainda no século XIX e se fortaleceu com o Modernismo, é a demasiada aproximação tanto da temática como das palavras ao cotidiano. Como tornar poético aquilo que vemos e que vivemos no dia a dia? Como tornar mágicas as palavras que usamos na linguagem diária, linguagem banalizada pela pequenez de nossos afazeres? Carlito consegue transformar a língua corriqueira na mais alta expressão, intensificando o limite de tensão entre vocábulos, remetendo enunciação e enunciado a patamares sobre os quais poderíamos perguntar: o poeta tornou poética sua rua, seu bairro e arredores ou conseguiu tirar do inefável a poesia que sempre existiu ao seu lado? Um exemplo interessante há no poema “Purgatório”: “você lembra? / tínhamos dado no / máximo uns vinte / passos sobre o morro – / se abriu um buraco / no meio das nuvens, / um tubo ou coisa assim, / que trouxe até nós, / de cima: / o sol, brilhando / com os seus cem sóis, / e de baixo: / o fundo do abismo, / a cidade, / o torvelinho, / o renque de palmeiras / de alguma rua / irreconhecível / ao menos para mim”.

A resistência contraideológica da tradição poética em língua portuguesa não deixa de estar presente no poema “Drummond”: “Sabe que nada mais agora / poderá mover sua poesia. / Cruza a avenida Rio Branco, o Aterro, / a enseada, o túnel do Pasmado / (do mundo caduco, é a parte / que mais lhe agrada)./ Nem o vestido de flores da / filha do tipógrafo, nem os / pássaros de fogo que dele / partiam de vez em quando / (tudo perdido num antigo / crepúsculo itabirano)”. O gauchismo do poeta de Itabira é reforçado e coroado por Carlito Azevedo no verso: “havia um melro no alto / do muro de cantaria negra”.

Comovente a parte final do livro denominada “H”, em que o eu poético retrata seu drama particular: a morte da própria mãe e a consequente solidão em que se vê mergulhado. Por meio de um texto em prosa, difícil de definir a que gênero pertence, o relato, no entanto, em momento algum soa piegas:

“Passeio agora pela mesma casa de minha infância, adolescência e vida adulta, consolado pela idéia do descanso que ela [sua mãe] terá de agora em diante. Sem precisar de ajuda para levantar da cama, sem precisar de ajuda para tomar banho, sem precisar de ajuda para limpar a própria merda. Passeio pela mesma casa de então, do quarto para a sala, da sala para a cozinha, da cozinha para o quarto e assim por diante, mas começo lentamente a perceber um sinal que me alarma: não tenho nenhum controle sobre meus passos e me será impossível parar de caminhar do quarto para a sala, da sala para a cozinha, da cozinha para o quarto e assim por diante por decisão própria. A cada volta observo com cada vez mais apreensão as paredes, não sei se pelo temor de que me faltem a qualquer momento ou de que comecem a se estreitar sobre mim. Descubro desse modo bem cruel que não é assim tão fácil livrar-me de um medo que vem sendo o meu medo absoluto desde os quatro anos de idade”.

Mais adiante, para encerrar, há referência à literatura como tábua de salvação: “Venho escrever por medo de perder a razão, não pelo estardalhaço dos nervos, que não há, mas pelo seu contrário e sinuoso, a idiotia. Sinto que se conseguir escrever agora o que se passa comigo estarei salvo”.

Talvez seja isso, o poeta a sobreviver ao seu drama através da escrita. E nós, como leitores, ao experimentar o abandono e solidão em que ele se encontra, percebemos o drama em que todos nos irmanamos. Uma maneira também de nos salvar.

Monodrama

Carlito Azevedo

7 Letras, 152 páginas

terça-feira, março 30, 2010

Obras completas de Freud começam a ser editadas no Brasil

Haron Gamal, Jornal do Brasil


RIO - Paulo César de Souza, tradutor de Freud, diz que na linguagem do criador da psicanálise talvez a metáfora mais célebre seja a chamada “metáfora arqueológica”. Nela, o inconsciente humano seria comparado ao subsolo de uma antiga cidade, “com seus estratos de construções soterrados”. Daí, o trabalho do psicanalista seria comparado ao de um arqueólogo: escavar o inconsciente com o intuito de encontrar na história de cada indivíduo “Atlântidas afundadas na psique”.

O trabalho do tradutor, na verdade, não se situaria fora dessa arqueologia. Vertendo a obra de Sigmund Freud diretamente do alemão, vez ou outra Paulo César se depara com situações semelhantes: a linguagem de Freud ora beira o poético ora beira as vias das ciências naturais, a seguir espraia-se numa terminologia intermediária, não predominando totalmente nem a função poética da linguagem (como diria Jakobson) nem a referencial, que no caso refletiria a linguagem propriamente científica. Portanto, a tarefa do tradutor é a de encontrar a nuance exata do vocábulo na língua de origem, mas também captar uma espécie de tonalidade desse mesmo vocábulo, para que ele não se afaste do contexto da enunciação. Se já se mostra exaustiva e muitas vezes problemática a arte da tradução, imagine-se quando se tem em mãos versões de obras que nos chegam não diretamente do idioma em que foram escritas, mas através de línguas pontes, como o inglês, francês ou mesmo o espanhol. Só agora, praticamente um século após a criação e o desenvolvimento da psicanálise, é que o leitor brasileiro terá acesso a uma versão fidedigna da obra de Sigmund Freud.

A Companhia das Letras pretende ser a primeira editora a publicar, no Brasil, a obra completa do autor de Futuro de uma ilusão traduzida diretamente do alemão e, ao mesmo tempo, organizada em ordem cronológica.


As obras completas serão reunidas em 20 volumes, sendo 19 de textos e um de índices e bibliografia. Estão sendo lançados os três primeiros volumes, de números 10, 12 e 14, que correspondem aos textos escritos entre 1911 e 1920. No segundo semestre de 2010 a editora vai lançar mais dois volumes, os de números 16 e 18, com as obras publicadas entre 1923-25 e 1930-36, respectivamente. A coleção prosseguirá com a publicação de um ou dois volumes por ano, a partir de 2011. A edição alemã que serve de base para a tradução brasileira é a Gesammelte Werke (obras completas), publicadas na Alemanha entre 1940 e 1952. O texto foi cotejado com a Studienausgabe (edição de estudos), publicada pela editora Fischer em 1969-75.

No primeiro livro publicado em nova tradução destaca-se, entres outros textos, “Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia” (“O caso Schreber”); no segundo, com textos de 1917-20, destacam-se “O homem dos lobos” e “Além do princípio do prazer”; e no terceiro, “Introdução ao narcisismo” e “Ensaios de metapsicologia”.

Ao mesmo tempo, a editora está lançando a nova edição revista do livro do coordenador e tradutor das obras completas de Freud em português, Paulo César de Souza, As palavras de Freud. O tradutor já é conhecido no meio editorial brasileiro, tendo ganhado duas vezes o Prêmio Jabuti por traduções de Friedrich Nietzsche e Bertold Brecht.

Paulo César, em seu livro (originalmente tese de doutorado) diz que ele “representa um esforço de revisão filológica da tradução de alguns termos centrais em Freud. São objetos dessa revisão os vocábulos 'técnicos' em torno dos quais tem havido controvérsia na psicanálise: Ich, Es, Besetzung, Verdrängung, Vorstellung, Angst, Nachträglichkeit, Verneinung, Verwerfung, Zwang e Trieb. Isto é feito a partir de uma análise das traduções francesa e inglesa das obras de Freud, tendo por principal referência os textos da 'História de uma neurose infantil' (1914) e dos 'ensaios metapsicológicos' (1915)”.

Na primeira parte, o autor discute o estilo e o vocabulário de Freud, apresentando questões sobre as traduções em ambas as línguas. O tradutor brasileiro opta pela análise filológica levado também pelo debate a respeito do caráter literário e científico do autor. Cita o Prêmio Goethe concedido a Freud em 1930, o que tornou o autor vienense festejado como escritor de estilo literário por grande parte da intelectualidade europeia. Ainda nessa parte, vários estudiosos de Freud são citados: Schönau, Roustang, Holt, Mahony, e Pörksen. Alguns tendem a reconhecer o caráter literário da obra freudiana, enquanto outras se prendem ao flanco científico.

Numa discussão preliminar, que notoriamente serviu de pretexto para que traduzisse toda a obra do fundador da psicanálise, Paulo César apresenta, na segunda parte, a importância e os problemas da edição standard inglesa: “A chamada edição standard das obras psicológicas completas de Freud, publicada na Inglaterra entre 1955 e 1974, constitui um dos mais formidáveis empreendimentos intelectuais de nossa época. Formidável, em primeiro lugar, por ter sido realizada por um homem, James Strachey, com ajuda de dois ou três auxiliares e bem poucos recursos materiais. Além de terem de traduzir o que ainda era inédito em inglês, Strachey revisou extensamente as traduções existentes (algumas dele próprio), buscando a homogeneidade estilística e terminológica, e redigiu um sem-número de notas, introduções e referências”. Mas, a seguir, há a contrapartida crítica: “Num obituário assinado por A. Grinstein (Strachey morreu em abril de 1967), sua realização foi avaliada do modo mais positivo. Mas já então apareceram críticas fundamentadas, de um ou outro psicanalista que lia Freud em alemão. Elas permaneceram vozes isoladas no 'coro dos contentes', porém. Somente em 1983, com a publicação do livro Freud and man's soul, de Bruno Bettelheim, passou-se a questionar abertamente a edição britânica. A publicidade em torno do livrinho de Bettelheim poderia ser comparada à ruptura de um dique holandês: desencadeou um dilúvio de objeções (ou, no mínimo, fez um vasto número de interessados acordarem para um problema que não percebiam)”.

Em francês, até meados da década de 1990, Freud nunca teve uma tradução rigorosa e completa de suas obras. E as edições que apareceram refletem muitas vezes de maneira caótica a doutrina psicanalítica dando mais importância ao que dela entendem seus exegetas do que propriamente ao pensamento do autor vienense. Quanto à tradução francesa mais recente das obras completas, Paulo César objeta que apesar da grandiosidade do projeto – a publicação de toda a obra de Freud em francês iniciou-se apenas em 1994 – apesar da gigantesca estrutura organizacional para a tradução e o caráter milionário do empreendimento, ela esbarra na seguinte questão: embora o texto em francês se atenha à letra freudiana, muitas vezes a tradução não corresponde à intenção dos organizadores. A obsessão a respeito de um purismo excessivo com o texto original acaba por deixar de lado um fato que ocorre em todas as línguas: as palavras não são um terreno tão seguro, elas podem ter várias nuances dependendo do contexto em que se encontram.

A empreitada editorial levada a cabo pela Companhia das Letras parte de uma posição privilegiada. Além de Paulo César de Souza ser um tradutor experiente, a edição brasileira chega num momento de intensa discussão teórica sobre a psicanálise e sobre a exatidão das traduções da terminologia utilizada por Freud. Portanto, o leitor brasileiro poderá ter em mãos uma edição que evita as vicissitudes e as escorregadelas ocorridas em outros idiomas.


08:24 - 27/03/2010


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Livros discutem o legado de Nietzsche

Haron Gamal e Rafael Haddock-Lobo, Jornal do Brasil


RIO - Dentre as muitas epígrafes existentes no livro Nietzsche: o rebelde aristocrata, de Domenico Losurdo, a primeira é muito reveladora. Diz o seguinte: “Quem não o pode reivindicar? Dize-me apenas de que precisas e te encontrarei uma citação de Nietzsche. Pela Alemanha e contra a Alemanha, pela paz e contra a paz, pela literatura e contra a literatura” (Tucholsky).

A biografia intelectual e o balanço crítico do filósofo alemão serão discutidos exaustivamente nas 1105 páginas do livro. O historiador e filósofo italiano parte da formação do pensamento de Nietzsche, seus primeiros anos de juventude, sua judeofobia, o namoro com as idéias do musicista Wagner, abordando depois a maturidade intelectual do autor de O nascimento da tragédia, suas obras e a relação delas com o contexto histórico do período, mostrando que muitas das ideias e posições assumidas pelo filósofo, que se cristalizaram em aforismos e em outros tipos de explanações, faziam parte do pensamento “do tempo”.

Essas ideias, na verdade, devem ser debatidas numa linha de crítica da revolução, a não ser que se queira descartar, com sérios prejuízos para a história do pensamento, as obras de juventude do autor. Diante de uma intelectualidade contemporânea, que no século 20 tendeu a citar Nietzsche e a tirar proveito de sua obra sem lhe exigir contextualização e coerência histórico-política, o professor italiano apresenta com muita retidão de pensamento o tanto que é precipitada a abordagem ahistórica e apolítica do autor.

Um outro aspecto que se impõe é o da honestidade editorial quanto ao texto do filólogo-filósofo da Basileia. Comentando a edição “definitiva” Sämtliche Werke, Kritische Studienausgabe, organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari (Dtv-de Gruyter, München, 1980), na qual Losurdo se baseia, cita-se Gadamer: “Muitos acreditaram que a nova edição crítica, publicada por Colli e Montinari, provocasse um novo e decisivo enriquecimento e aprofundamento da compreensão de Nietzsche. Ora é certamente verdade que pela primeira vez possuímos os cadernos de apontamentos de Nietzsche em forma criticamente segura e cronologicamente ordenada e que não dependemos mais da redação e da seleção em que a irmã de Nietzsche e os editores sucessivos tinham compilado os seus fragmentos póstumos, todavia é ingênuo crer que hoje, tendo o verdadeiro Nietzsche à disposição, estejamos definitivamente livres das preocupações que atormentaram os intérpretes anteriores”.

A seguir, continua o próprio Losurdo: “Embora bastante precioso, o trabalho editorial de Colli e Montinari não é aquela espécie de hermenêutica plenitudo temporum, religiosamente anunciada por intérpretes impacientes para desembaraçar-se de perguntas inquietantes que a leitura de Nietzsche contém. É a própria edição Colli-Montinari que confirma a presença, num filósofo aliás extraordinariamente rico e estimulante, de motivos que hoje não podem não suscitar ecos sinistros: celebração da eugenia e da 'super-espécie', teorização, por um lado, da escravidão, por outro, da 'criação' da 'espécie superior dos espíritos dominadores e cesáreos'; a invocação do 'aniquilamento das raças decadentes', e do 'aniquilamento de milhões de mal sucedidos', afirmação da necessidade de 'um martelo com o qual despedaçar as raças em via de degeneração e moribundas, com o qual tirá-las do meio para abrir o caminho para uma nova ordem vital'”.

Nietzsche: o rebelde aristocrata é divido em sete partes, possuindo ainda dois apêndices. Cada uma das partes contém em média sete capítulos, que por sua vez se subdividem em tópicos.

Losurdo opta por uma abordagem que privilegia a formação do pensamento histórico e político de Nietzsche, como aponta o título do primeiro capítulo: “A crise da civilização: de Sócrates à Comuna de Paris”. No trecho, o autor mostra que o filósofo alemão já vê em Sócrates a judeização do pensamento grego, o que afasta a cultura helena do preceito de “grecidade trágica” mergulhando-a numa crise a partir da concepção socrática de uma civilização que não mais privilegia o herói, mas o homem comum e em consequência a mundaneidade, o que já ameaça a aristocracia. Tal concepção anunciaria a perspectiva de igualdade, bandeira levantada pelo cristianismo, que, como sabemos, tem raízes judaicas. Losurdo afirma que o problema de Nietzsche não era com o judaísmo, mas, sobretudo, com a cristandade, pois esta é que faz a judeização da cultura. O tópico mais revelador no trecho é: “O suicídio da grecidade trágica como metáfora do suicídio do antigo regime”.

É na sexta parte, no entanto, que o livro de Losurdo se torna mais instigante. Em “No laboratório filosófico de Nietzsche”, o professor italiano pergunta: “Por que a denúncia e a crítica da revolução devem constituir o fio condutor da leitura de Nietzsche? De outro modo, não é possível 'salvar' o filósofo de sua inteireza. Quer-se ver nele o teórico de uma crítica afiada e impiedosa da ideologia que despedaça os mitos de germanismo e do antissemitismo? Salvo qualquer outra consideração, resta o fato de que esse tipo de interpretação comportaria a liquidação das obras de juventude, que ecoam temas teutômanos e judeófobos bastante difundidos na cultura do tempo e que, todavia, são extraordinariamente fascinantes. Quer-se ver em Nietzsche o campeão do 'espírito livre' e o teórico da reabilitação da carne em contraposição ao ascetismo do Ocidente cristão? De novo somos obrigados a cortes e renúncias dolorosas em prejuízo do discípulo de Schopenhauer, que exprime todo o seu desprezo pela galopante 'mundanização', evoca com acentos angustiados as consequências catastróficas do 'triste crepúsculo ateu' e defende contra Strauss 'o lado melhor do cristianismo', o dos eremitas e dos santos”.

Domenico Losurdo, da mesma forma, se contrapõe aos apologetas de Nietzsche que desejam proteger o filósofo de qualquer contaminação e revestem suas palavras com o recurso da metáfora. Ao falar sobre aniquilamento das raças decadentes e aniquilamento de milhões de mal sucedidos, o autor de Assim falou Zaratustra estaria demonstrando capacidade “bastante limitada de entender e de querer no plano político da análise histórica e política”.

Um tópico que merece muita atenção é o denominado “Nuremberg ideológico”. As concepções filosóficas de Nietzsche como a celebração do gênio e do super-homem, ou da necessidade da intervenção eugênica que serviram até certo ponto de embasamento ideológico ao 3º Reich, também circularam intensamente na cultura europeia e americana do final do século 19 e, em momento algum, nomes como o do americano Emerson e do inglês Galton são mencionados.

Talvez o extenso trabalho de Losurdo não agrade àqueles que veem um Nietzsche idealizado, apolítico e extemporâneo, filósofo do qual apenas retiram-se os trechos necessários ao desenvolvimentos de tiradas espetaculares para satisfazer a vaidade de autores que se seguem. Mas o trabalho do professor italiano se revela monumentoso não apenas em relação aos pormenores do percurso intelectual de Nietzsche, mas também sobre a trilha seguida por toda intelectualidade dos séculos 18, 19 e parte do 20, um momento em que a modernidade já está em curso e que poucos são capazes de enxergar o mundo que se anuncia.


Com sangue e com espírito

A relação com o corpo pode ser uma das mais interessantes chaves de leitura para se tentar compreender a cultura ocidental. E o mesmo pode-se dizer da filosofia. Desde Platão, a filosofia sempre dedicou esforços para tentar compreender e estabelecer o lugar do corpo em seus sistemas filosóficos. E, salvo exceções, deve-se admitir que esta relação, desde a Grécia antiga até o século 20, sempre foi muito mais tensa do que propriamente elogiosa. Não só em Platão, mas incluindo nesse movimento tipicamente filosófico a filosofia cristã e toda a filosofia de inspiração racionalista, a mente, a alma e a razão tiveram o privilégio do estudo, concedendo-se ao corpo um lugar secundário e, por isso, inferior.

Nesse sentido, Nietzsche inaugura a contemporaneidade ao tentar a todo custo trazer o corpo para um lugar de dignidade filosófica e, com isso, todos os atributos que antes o faziam ser menosprezado, como o desejo, os instintos e tudo mais que, para Nietzsche, engrandece a vida. E talvez seja impossível se aproximar de um pensamento como o de Nietzsche sem refletir sobre esse lugar de destaque que o corpo adquire em seu pensamento.

Tal é a estratégia bem sucedida de Nietzsche e o corpo, livro de Miguel Angel Barrenechea, que toma o corpo como fio condutor para apresentar o pensamento do filósofo alemão. Mas deve-se ter em mente que o termo fio condutor não pretende estabelecer uma unidade ou um sistema de pensamento assistemático por excelência, que busca justamente denunciar os grandes sistemas da tradição filosófica. “Tomar o corpo como ponto de partida é fazer dele o fio condutor, eis o essencial”, diz o próprio Nietzsche em um fragmento póstumo.

A ideia de Nietzsche, e que é tomada como fio condutor para o livro de Barrenechea, é a de que o corpo é um fenômeno de tal modo rico que pode servir como a melhor maneira de se alinhavar alguns dos temas mais importantes e reincidentes na filosofia nietzschiana, como a crítica ao dualismo, a noção de força, a relação com a vida, com a animalidade e com a dietética. Assim, seguindo esta linha que mais parece um fio de Ariadne do que um fio condutor, pois nos leva ao labirinto de um pensamento, o leitor é convocado a contra-assinar o livro que lê: pois nada mais vital (e, por isso, autobiográfico) do que a relação com o corpo e com o desejo.

E nada mais nietzschiano, como mostra Nietzsche e o corpo, do que exigir um leitor que leia com sangue (ecoando aqui a sentença de Assim falou Zaratustra que diz: “Escreve com sangue, pois sangue é espírito”). Nesse sentido, poucos filósofos provocam uma leitura desse tipo sanguínea como Nietzsche, na qual nosso corpo parece convocado a participar da leitura, sendo talvez ele mesmo o próprio órgão do entendimento. Uma leitura como a que costumamos fazer quando adolescentes, diriam alguns, e que somos desabituados ou talvez deseducados a ter, por alguma misteriosa razão.


E tal misteriosa razão não é nada mais do que aquilo que Nietzsche quer, como médico da cultura, denunciar: a conivência da razão com o rebaixamento do corpo, as atitudes constantes que visam seu enfraquecimento e toda uma glorificação de tudo que, em última instância, é pernicioso ao corpo e à “grande saúde”, para sermos fiéis aos léxico nietzschiano. Desse modo, a cultura ocidental acabou sempre exaltando ideias metafísicas, transcendentais e, nos termos de Nietzsche, falsas e mentirosas, ao invés de se voltar para o que de fato é saudável: o corpo.

Com isso, as metáforas dietéticas, as indicações das condições climáticas ideais para uma escrita, em um movimento absolutamente crítico de afastamento da postura dualista da filosofia ocidental, povoam o pensamento de Nietzsche, e são esses os elementos que Miguel Angel Barrenechea cuidadosamente alinha em sua escrita. Escrita, aliás, que recupera sem a menor vergonha o entusiasmo adolescente que tantos parecem esconder, e que acaba por contagiar o leitor. E não seria essa a mais coerente leitura? Não seria essa, ao menos, a que mais condiz com a postura nietzschiana? Talvez seja uma das possibilidades de se fugir da clausura que Nietzsche tanto denunciou, e que o livro de Barrenechea nos convida a percorrer. Com sangue – e com espírito.


08:22 - 27/03/2010


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Livro de Richard Rorty defende o pragmatismo

Haron Gamal, Jornal do Brasil

RIO - Partindo do princípio de que os seres humanos deveriam dedicar todas as suas energias para o aumento da felicidade humana, expressão que não é propriamente sua, mas de pensadores tanto materialistas como também de pensadores místicos, Richard Rorty (1931-2007) desenvolve em Filosofia como política cultural uma espécie de pragmatismo. Segundo ele, deveríamos nos preocupar com as finalidades e não com reflexões abstratas, que, ainda conforme suas palavras, não levariam a nada. Como exemplo, um artifício utilizado no início do livro para sustentar sua argumentação descarta a perspectiva de classificar os seres humanos segundo raça, privilegiando uma abordagem geneticista. Em vez de “falarmos sobre raças diferentes, vamos falar sobre genes diversos”. Portanto, segundo Rorty, não deveríamos falar sobre coisas que não fazem sentido.

A espécie humana caracteriza-se pelo desenvolvimento do raciocínio e, a partir dele, pela construção tanto de obras concretas – como as possibilitadas pelas ciências físicas – como também pela elaboração de outro tipo de obras, estas abstratas, que existem apenas na imaginação e se concretizam em forma de textos, literários ou não. As teorias filosóficas, que se caracterizam pelas sutilezas do pensamento, muitas vezes servem mais como demonstração da engenhosidade humana do que como meios de estabelecer um propósito propriamente físico. Não é de se admirar que filósofos como Platão e Aristóteles tenham escrito obras com a intenção de que o ser humano obtivesse alguma vantagem. Mas mesmo tendo desencadeado intermináveis discussões, muitas delas de caráter controverso, não se podem abandonar as perspectivas abertas por esses filósofos, desejando que se discuta apenas o que possui lógica interna, útil para a melhoria da vida humana.

A própria discussão filosófica também serve como uma espécie de melhoria ao permitir às pessoas o desenvolvimento do pensar. Afinal, a obra dos grandes filósofos, mesmo que contestada, não deixa de ser um tipo de obra de arte, que merece apreciação em toda a sua plenitude. Na história da humanidade, todo homem que desenvolveu algum tipo de filosofia talvez tenha pensado que os seres humanos teriam como resultado um mundo melhor. O que acontece é que não se pode utilizar essa afirmação com o objetivo de demonstrar a perenidade e validade do pragmatismo.

Ao defender sua tese, Rorty pergunta: “Como deveríamos dividir a cultura em áreas para as quais a política cultural seria relevante e áreas que deveriam ser mantidas livres dela?”. Neste livro, com artigos elaborados, sobretudo, na última década, o filósofo norte-americano tenta responder a questão por meio da filosofia, mas despindo-a de qualquer resquício metafísico.

A primeira parte do livro tem o título “Religião e moralidade de um ponto de vida pragmatista”. No primeiro capítulo, Rorty afirma que se deve abrir mão da discussão sobre as crenças para que se possa esboçar um tipo de “comunidade cooperativa global entre as nações”. O descarte do apego às crenças e mesmo a existência ou não de Deus não deveria ser levado em conta quando se tem como meta o estabelecimento de um mundo em que o ser humano saia beneficiado. Voltando a John Stuart Mill e a Wiliam James, e seguindo o pensamento deste último, “a crença certa a ser adquirida é aquela que fará mais pela felicidade humana”.

No segundo capítulo, o livro quer demonstrar que a visão de mundo pragmatista está mais próxima do politeísmo romântico que do monoteísmo secular. A argumentação de Rorty, sempre voltada para a realização da felicidade, se bate às voltas com o discurso religioso como forma de afastar o homem do caminho da vida secular. Valeria a pena não se preocupar tanto com os fins religiosos, os quais preconizam a salvação numa outra vida, optando pelo aqui e agora, de modo que as nações convivessem de forma harmônica.

Na segunda parte, considerando pensadores canônicos, o autor afirma: “Quando Copérnico e Galileu extinguiram a imagem do mundo que havia confortado Tomás de Aquino e Dante, Espinosa e Kant ensinaram à Europa como substituir o amor de Deus pelo amor à verdade, e como substituir a obediência à vontade divina pela pureza moral. Quando as revoluções democráticas e a industrialização nos forçaram a repensar a natureza do vinculo social, Marx e Mill se apresentaram com algumas sugestões”. São discutidas questões que levam em conta mais uma vez a crença e opção materialista da vida humana. Rorty afirma que “as classes educadas da Europa e da América se tornaram complacentemente materialistas em sua compreensão de como as coisas funcionam. (...) Também se tornaram utilitaristas e experimentalistas em suas avaliações das iniciativas sociais e políticas propostas”. O autor traça um percurso filosófico em que prevalece a opção pelo descarte de princípios tanto teológicos como filosóficos que mantenham o ser humano afastado de fazeres que não privilegiam a vida em sociedade.

Na última parte, ele propõe a discussão entre a filosofia analítica e conversacional. O princípio de pensamento que não leva em consideração o diálogo e a interação com outras linhas de pensamentos não estaria condizente com o estabelecimento daquilo que ele chama de política cultural. Rorty refuta o conversacionalismo de Habermas, o qual, segundo ele, não atinge a proposta pragmatista ao não seguir perspectivas historicistas na mesma linha do autor de Filosofia como política cultural.

Após a leitura, fica a impressão de que os ensaios tentam responder a questões pontuais da cultura norte-americana. Ao procurar estabelecer uma forma de pensar que leva em consideração apenas soluções de problemas práticos, que na verdade privilegiam apenas as ciências físicas, não haveria lugar para a crítica que se mostrasse fora de um modelo de vida predominantemente tecnicista. Poder-se-ia dizer que o desenvolvimentismo empreendido pelos Estados Unidos deveria servir de modelo bem sucedido para toda a humanidade.

O que se pode estabelecer como crítica é que o pensamento pragmatista, preconizado por Rorty, não leva em conta as contradições sociais, negligenciando questões como a luta de classes e, sobretudo, os interesses de países que tentam alcançar o mesmo patamar das nações desenvolvidas. Através da mundialização atual, pode-se concluir que ser pragmático seria pensar e agir de modo a beneficiar seu próprio país e sua consequente população. Mas o que fazer quando levamos em consideração o acirramento dos interesses e a intensificação dos conflitos, sem ainda considerar a extensão do fundamentalismo tanto do Ocidente como do Oriente?