terça-feira, março 30, 2010

Obras completas de Freud começam a ser editadas no Brasil

Haron Gamal, Jornal do Brasil


RIO - Paulo César de Souza, tradutor de Freud, diz que na linguagem do criador da psicanálise talvez a metáfora mais célebre seja a chamada “metáfora arqueológica”. Nela, o inconsciente humano seria comparado ao subsolo de uma antiga cidade, “com seus estratos de construções soterrados”. Daí, o trabalho do psicanalista seria comparado ao de um arqueólogo: escavar o inconsciente com o intuito de encontrar na história de cada indivíduo “Atlântidas afundadas na psique”.

O trabalho do tradutor, na verdade, não se situaria fora dessa arqueologia. Vertendo a obra de Sigmund Freud diretamente do alemão, vez ou outra Paulo César se depara com situações semelhantes: a linguagem de Freud ora beira o poético ora beira as vias das ciências naturais, a seguir espraia-se numa terminologia intermediária, não predominando totalmente nem a função poética da linguagem (como diria Jakobson) nem a referencial, que no caso refletiria a linguagem propriamente científica. Portanto, a tarefa do tradutor é a de encontrar a nuance exata do vocábulo na língua de origem, mas também captar uma espécie de tonalidade desse mesmo vocábulo, para que ele não se afaste do contexto da enunciação. Se já se mostra exaustiva e muitas vezes problemática a arte da tradução, imagine-se quando se tem em mãos versões de obras que nos chegam não diretamente do idioma em que foram escritas, mas através de línguas pontes, como o inglês, francês ou mesmo o espanhol. Só agora, praticamente um século após a criação e o desenvolvimento da psicanálise, é que o leitor brasileiro terá acesso a uma versão fidedigna da obra de Sigmund Freud.

A Companhia das Letras pretende ser a primeira editora a publicar, no Brasil, a obra completa do autor de Futuro de uma ilusão traduzida diretamente do alemão e, ao mesmo tempo, organizada em ordem cronológica.


As obras completas serão reunidas em 20 volumes, sendo 19 de textos e um de índices e bibliografia. Estão sendo lançados os três primeiros volumes, de números 10, 12 e 14, que correspondem aos textos escritos entre 1911 e 1920. No segundo semestre de 2010 a editora vai lançar mais dois volumes, os de números 16 e 18, com as obras publicadas entre 1923-25 e 1930-36, respectivamente. A coleção prosseguirá com a publicação de um ou dois volumes por ano, a partir de 2011. A edição alemã que serve de base para a tradução brasileira é a Gesammelte Werke (obras completas), publicadas na Alemanha entre 1940 e 1952. O texto foi cotejado com a Studienausgabe (edição de estudos), publicada pela editora Fischer em 1969-75.

No primeiro livro publicado em nova tradução destaca-se, entres outros textos, “Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia” (“O caso Schreber”); no segundo, com textos de 1917-20, destacam-se “O homem dos lobos” e “Além do princípio do prazer”; e no terceiro, “Introdução ao narcisismo” e “Ensaios de metapsicologia”.

Ao mesmo tempo, a editora está lançando a nova edição revista do livro do coordenador e tradutor das obras completas de Freud em português, Paulo César de Souza, As palavras de Freud. O tradutor já é conhecido no meio editorial brasileiro, tendo ganhado duas vezes o Prêmio Jabuti por traduções de Friedrich Nietzsche e Bertold Brecht.

Paulo César, em seu livro (originalmente tese de doutorado) diz que ele “representa um esforço de revisão filológica da tradução de alguns termos centrais em Freud. São objetos dessa revisão os vocábulos 'técnicos' em torno dos quais tem havido controvérsia na psicanálise: Ich, Es, Besetzung, Verdrängung, Vorstellung, Angst, Nachträglichkeit, Verneinung, Verwerfung, Zwang e Trieb. Isto é feito a partir de uma análise das traduções francesa e inglesa das obras de Freud, tendo por principal referência os textos da 'História de uma neurose infantil' (1914) e dos 'ensaios metapsicológicos' (1915)”.

Na primeira parte, o autor discute o estilo e o vocabulário de Freud, apresentando questões sobre as traduções em ambas as línguas. O tradutor brasileiro opta pela análise filológica levado também pelo debate a respeito do caráter literário e científico do autor. Cita o Prêmio Goethe concedido a Freud em 1930, o que tornou o autor vienense festejado como escritor de estilo literário por grande parte da intelectualidade europeia. Ainda nessa parte, vários estudiosos de Freud são citados: Schönau, Roustang, Holt, Mahony, e Pörksen. Alguns tendem a reconhecer o caráter literário da obra freudiana, enquanto outras se prendem ao flanco científico.

Numa discussão preliminar, que notoriamente serviu de pretexto para que traduzisse toda a obra do fundador da psicanálise, Paulo César apresenta, na segunda parte, a importância e os problemas da edição standard inglesa: “A chamada edição standard das obras psicológicas completas de Freud, publicada na Inglaterra entre 1955 e 1974, constitui um dos mais formidáveis empreendimentos intelectuais de nossa época. Formidável, em primeiro lugar, por ter sido realizada por um homem, James Strachey, com ajuda de dois ou três auxiliares e bem poucos recursos materiais. Além de terem de traduzir o que ainda era inédito em inglês, Strachey revisou extensamente as traduções existentes (algumas dele próprio), buscando a homogeneidade estilística e terminológica, e redigiu um sem-número de notas, introduções e referências”. Mas, a seguir, há a contrapartida crítica: “Num obituário assinado por A. Grinstein (Strachey morreu em abril de 1967), sua realização foi avaliada do modo mais positivo. Mas já então apareceram críticas fundamentadas, de um ou outro psicanalista que lia Freud em alemão. Elas permaneceram vozes isoladas no 'coro dos contentes', porém. Somente em 1983, com a publicação do livro Freud and man's soul, de Bruno Bettelheim, passou-se a questionar abertamente a edição britânica. A publicidade em torno do livrinho de Bettelheim poderia ser comparada à ruptura de um dique holandês: desencadeou um dilúvio de objeções (ou, no mínimo, fez um vasto número de interessados acordarem para um problema que não percebiam)”.

Em francês, até meados da década de 1990, Freud nunca teve uma tradução rigorosa e completa de suas obras. E as edições que apareceram refletem muitas vezes de maneira caótica a doutrina psicanalítica dando mais importância ao que dela entendem seus exegetas do que propriamente ao pensamento do autor vienense. Quanto à tradução francesa mais recente das obras completas, Paulo César objeta que apesar da grandiosidade do projeto – a publicação de toda a obra de Freud em francês iniciou-se apenas em 1994 – apesar da gigantesca estrutura organizacional para a tradução e o caráter milionário do empreendimento, ela esbarra na seguinte questão: embora o texto em francês se atenha à letra freudiana, muitas vezes a tradução não corresponde à intenção dos organizadores. A obsessão a respeito de um purismo excessivo com o texto original acaba por deixar de lado um fato que ocorre em todas as línguas: as palavras não são um terreno tão seguro, elas podem ter várias nuances dependendo do contexto em que se encontram.

A empreitada editorial levada a cabo pela Companhia das Letras parte de uma posição privilegiada. Além de Paulo César de Souza ser um tradutor experiente, a edição brasileira chega num momento de intensa discussão teórica sobre a psicanálise e sobre a exatidão das traduções da terminologia utilizada por Freud. Portanto, o leitor brasileiro poderá ter em mãos uma edição que evita as vicissitudes e as escorregadelas ocorridas em outros idiomas.


08:24 - 27/03/2010


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