terça-feira, março 30, 2010

Livros discutem o legado de Nietzsche

Haron Gamal e Rafael Haddock-Lobo, Jornal do Brasil


RIO - Dentre as muitas epígrafes existentes no livro Nietzsche: o rebelde aristocrata, de Domenico Losurdo, a primeira é muito reveladora. Diz o seguinte: “Quem não o pode reivindicar? Dize-me apenas de que precisas e te encontrarei uma citação de Nietzsche. Pela Alemanha e contra a Alemanha, pela paz e contra a paz, pela literatura e contra a literatura” (Tucholsky).

A biografia intelectual e o balanço crítico do filósofo alemão serão discutidos exaustivamente nas 1105 páginas do livro. O historiador e filósofo italiano parte da formação do pensamento de Nietzsche, seus primeiros anos de juventude, sua judeofobia, o namoro com as idéias do musicista Wagner, abordando depois a maturidade intelectual do autor de O nascimento da tragédia, suas obras e a relação delas com o contexto histórico do período, mostrando que muitas das ideias e posições assumidas pelo filósofo, que se cristalizaram em aforismos e em outros tipos de explanações, faziam parte do pensamento “do tempo”.

Essas ideias, na verdade, devem ser debatidas numa linha de crítica da revolução, a não ser que se queira descartar, com sérios prejuízos para a história do pensamento, as obras de juventude do autor. Diante de uma intelectualidade contemporânea, que no século 20 tendeu a citar Nietzsche e a tirar proveito de sua obra sem lhe exigir contextualização e coerência histórico-política, o professor italiano apresenta com muita retidão de pensamento o tanto que é precipitada a abordagem ahistórica e apolítica do autor.

Um outro aspecto que se impõe é o da honestidade editorial quanto ao texto do filólogo-filósofo da Basileia. Comentando a edição “definitiva” Sämtliche Werke, Kritische Studienausgabe, organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari (Dtv-de Gruyter, München, 1980), na qual Losurdo se baseia, cita-se Gadamer: “Muitos acreditaram que a nova edição crítica, publicada por Colli e Montinari, provocasse um novo e decisivo enriquecimento e aprofundamento da compreensão de Nietzsche. Ora é certamente verdade que pela primeira vez possuímos os cadernos de apontamentos de Nietzsche em forma criticamente segura e cronologicamente ordenada e que não dependemos mais da redação e da seleção em que a irmã de Nietzsche e os editores sucessivos tinham compilado os seus fragmentos póstumos, todavia é ingênuo crer que hoje, tendo o verdadeiro Nietzsche à disposição, estejamos definitivamente livres das preocupações que atormentaram os intérpretes anteriores”.

A seguir, continua o próprio Losurdo: “Embora bastante precioso, o trabalho editorial de Colli e Montinari não é aquela espécie de hermenêutica plenitudo temporum, religiosamente anunciada por intérpretes impacientes para desembaraçar-se de perguntas inquietantes que a leitura de Nietzsche contém. É a própria edição Colli-Montinari que confirma a presença, num filósofo aliás extraordinariamente rico e estimulante, de motivos que hoje não podem não suscitar ecos sinistros: celebração da eugenia e da 'super-espécie', teorização, por um lado, da escravidão, por outro, da 'criação' da 'espécie superior dos espíritos dominadores e cesáreos'; a invocação do 'aniquilamento das raças decadentes', e do 'aniquilamento de milhões de mal sucedidos', afirmação da necessidade de 'um martelo com o qual despedaçar as raças em via de degeneração e moribundas, com o qual tirá-las do meio para abrir o caminho para uma nova ordem vital'”.

Nietzsche: o rebelde aristocrata é divido em sete partes, possuindo ainda dois apêndices. Cada uma das partes contém em média sete capítulos, que por sua vez se subdividem em tópicos.

Losurdo opta por uma abordagem que privilegia a formação do pensamento histórico e político de Nietzsche, como aponta o título do primeiro capítulo: “A crise da civilização: de Sócrates à Comuna de Paris”. No trecho, o autor mostra que o filósofo alemão já vê em Sócrates a judeização do pensamento grego, o que afasta a cultura helena do preceito de “grecidade trágica” mergulhando-a numa crise a partir da concepção socrática de uma civilização que não mais privilegia o herói, mas o homem comum e em consequência a mundaneidade, o que já ameaça a aristocracia. Tal concepção anunciaria a perspectiva de igualdade, bandeira levantada pelo cristianismo, que, como sabemos, tem raízes judaicas. Losurdo afirma que o problema de Nietzsche não era com o judaísmo, mas, sobretudo, com a cristandade, pois esta é que faz a judeização da cultura. O tópico mais revelador no trecho é: “O suicídio da grecidade trágica como metáfora do suicídio do antigo regime”.

É na sexta parte, no entanto, que o livro de Losurdo se torna mais instigante. Em “No laboratório filosófico de Nietzsche”, o professor italiano pergunta: “Por que a denúncia e a crítica da revolução devem constituir o fio condutor da leitura de Nietzsche? De outro modo, não é possível 'salvar' o filósofo de sua inteireza. Quer-se ver nele o teórico de uma crítica afiada e impiedosa da ideologia que despedaça os mitos de germanismo e do antissemitismo? Salvo qualquer outra consideração, resta o fato de que esse tipo de interpretação comportaria a liquidação das obras de juventude, que ecoam temas teutômanos e judeófobos bastante difundidos na cultura do tempo e que, todavia, são extraordinariamente fascinantes. Quer-se ver em Nietzsche o campeão do 'espírito livre' e o teórico da reabilitação da carne em contraposição ao ascetismo do Ocidente cristão? De novo somos obrigados a cortes e renúncias dolorosas em prejuízo do discípulo de Schopenhauer, que exprime todo o seu desprezo pela galopante 'mundanização', evoca com acentos angustiados as consequências catastróficas do 'triste crepúsculo ateu' e defende contra Strauss 'o lado melhor do cristianismo', o dos eremitas e dos santos”.

Domenico Losurdo, da mesma forma, se contrapõe aos apologetas de Nietzsche que desejam proteger o filósofo de qualquer contaminação e revestem suas palavras com o recurso da metáfora. Ao falar sobre aniquilamento das raças decadentes e aniquilamento de milhões de mal sucedidos, o autor de Assim falou Zaratustra estaria demonstrando capacidade “bastante limitada de entender e de querer no plano político da análise histórica e política”.

Um tópico que merece muita atenção é o denominado “Nuremberg ideológico”. As concepções filosóficas de Nietzsche como a celebração do gênio e do super-homem, ou da necessidade da intervenção eugênica que serviram até certo ponto de embasamento ideológico ao 3º Reich, também circularam intensamente na cultura europeia e americana do final do século 19 e, em momento algum, nomes como o do americano Emerson e do inglês Galton são mencionados.

Talvez o extenso trabalho de Losurdo não agrade àqueles que veem um Nietzsche idealizado, apolítico e extemporâneo, filósofo do qual apenas retiram-se os trechos necessários ao desenvolvimentos de tiradas espetaculares para satisfazer a vaidade de autores que se seguem. Mas o trabalho do professor italiano se revela monumentoso não apenas em relação aos pormenores do percurso intelectual de Nietzsche, mas também sobre a trilha seguida por toda intelectualidade dos séculos 18, 19 e parte do 20, um momento em que a modernidade já está em curso e que poucos são capazes de enxergar o mundo que se anuncia.


Com sangue e com espírito

A relação com o corpo pode ser uma das mais interessantes chaves de leitura para se tentar compreender a cultura ocidental. E o mesmo pode-se dizer da filosofia. Desde Platão, a filosofia sempre dedicou esforços para tentar compreender e estabelecer o lugar do corpo em seus sistemas filosóficos. E, salvo exceções, deve-se admitir que esta relação, desde a Grécia antiga até o século 20, sempre foi muito mais tensa do que propriamente elogiosa. Não só em Platão, mas incluindo nesse movimento tipicamente filosófico a filosofia cristã e toda a filosofia de inspiração racionalista, a mente, a alma e a razão tiveram o privilégio do estudo, concedendo-se ao corpo um lugar secundário e, por isso, inferior.

Nesse sentido, Nietzsche inaugura a contemporaneidade ao tentar a todo custo trazer o corpo para um lugar de dignidade filosófica e, com isso, todos os atributos que antes o faziam ser menosprezado, como o desejo, os instintos e tudo mais que, para Nietzsche, engrandece a vida. E talvez seja impossível se aproximar de um pensamento como o de Nietzsche sem refletir sobre esse lugar de destaque que o corpo adquire em seu pensamento.

Tal é a estratégia bem sucedida de Nietzsche e o corpo, livro de Miguel Angel Barrenechea, que toma o corpo como fio condutor para apresentar o pensamento do filósofo alemão. Mas deve-se ter em mente que o termo fio condutor não pretende estabelecer uma unidade ou um sistema de pensamento assistemático por excelência, que busca justamente denunciar os grandes sistemas da tradição filosófica. “Tomar o corpo como ponto de partida é fazer dele o fio condutor, eis o essencial”, diz o próprio Nietzsche em um fragmento póstumo.

A ideia de Nietzsche, e que é tomada como fio condutor para o livro de Barrenechea, é a de que o corpo é um fenômeno de tal modo rico que pode servir como a melhor maneira de se alinhavar alguns dos temas mais importantes e reincidentes na filosofia nietzschiana, como a crítica ao dualismo, a noção de força, a relação com a vida, com a animalidade e com a dietética. Assim, seguindo esta linha que mais parece um fio de Ariadne do que um fio condutor, pois nos leva ao labirinto de um pensamento, o leitor é convocado a contra-assinar o livro que lê: pois nada mais vital (e, por isso, autobiográfico) do que a relação com o corpo e com o desejo.

E nada mais nietzschiano, como mostra Nietzsche e o corpo, do que exigir um leitor que leia com sangue (ecoando aqui a sentença de Assim falou Zaratustra que diz: “Escreve com sangue, pois sangue é espírito”). Nesse sentido, poucos filósofos provocam uma leitura desse tipo sanguínea como Nietzsche, na qual nosso corpo parece convocado a participar da leitura, sendo talvez ele mesmo o próprio órgão do entendimento. Uma leitura como a que costumamos fazer quando adolescentes, diriam alguns, e que somos desabituados ou talvez deseducados a ter, por alguma misteriosa razão.


E tal misteriosa razão não é nada mais do que aquilo que Nietzsche quer, como médico da cultura, denunciar: a conivência da razão com o rebaixamento do corpo, as atitudes constantes que visam seu enfraquecimento e toda uma glorificação de tudo que, em última instância, é pernicioso ao corpo e à “grande saúde”, para sermos fiéis aos léxico nietzschiano. Desse modo, a cultura ocidental acabou sempre exaltando ideias metafísicas, transcendentais e, nos termos de Nietzsche, falsas e mentirosas, ao invés de se voltar para o que de fato é saudável: o corpo.

Com isso, as metáforas dietéticas, as indicações das condições climáticas ideais para uma escrita, em um movimento absolutamente crítico de afastamento da postura dualista da filosofia ocidental, povoam o pensamento de Nietzsche, e são esses os elementos que Miguel Angel Barrenechea cuidadosamente alinha em sua escrita. Escrita, aliás, que recupera sem a menor vergonha o entusiasmo adolescente que tantos parecem esconder, e que acaba por contagiar o leitor. E não seria essa a mais coerente leitura? Não seria essa, ao menos, a que mais condiz com a postura nietzschiana? Talvez seja uma das possibilidades de se fugir da clausura que Nietzsche tanto denunciou, e que o livro de Barrenechea nos convida a percorrer. Com sangue – e com espírito.


08:22 - 27/03/2010


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