sexta-feira, setembro 07, 2007

O LIVRO

HARON JACOB GAMAL



O LIVRO





Rio de Janeiro - 2007





As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Carlos Drummond de Andrade








I
Relacionamento sem futuro, pensei quando conheci Sílvia. Decidi, porém, arriscar. Aproveitaria. Ela parecia ser mais velha do que eu, mas como era bonita!

Nosso primeiro contato foi na praia. Aqui em Copacabana. Prenunciava-se a tempestade, mas resistíamos por crença de que o sol não nos abandonaria. Eu lia o jornal, que era fustigado por um incessante e inoportuno vento. Foi ela quem se aproximou. Queria acender o cigarro. Não pude ajudá-la inicialmente. Olhou ao redor, anteviu o fracasso. Enfim, deixei o jornal de lado. Minhas sandálias serviram de peso para que ele não se perdesse. Pedi o cigarro. Fui até a turma do vôlei. Voltei com ele aceso. Tentava protegê-lo entre uma das mãos. Ao recebê-lo, agradeceu e exclamou:

- Que vento horrível!

Nada fiz além de concordar, com um movimento com a cabeça. Ainda permaneceu ali por uma meia-hora. Depois, se despediu e partiu.

Alguns dias depois, no mesmo local, reapareceu muito sorridente. Reconheceu-me. Perguntou se me podia fazer companhia. Disse que sim, seria um grande prazer. Conversamos sobre futilidades. De repente, perguntou:

- Que tal nos encontrarmos hoje à noite?

Concordei de imediato. A sugestão contentou plenamente meu desejo. Marcamos encontro no Mondego, na Atlântica. Logo ali na esquina da Constante.

O dia transcorreu sem incidentes. Após a praia, almocei no Parada's, um boteco metido a restaurante, na Santa Clara. Voltei para casa. Dormitei durante três quartos de hora. Ao acordar, fiz café. Liguei o aparelho de CD e ouvi algumas sonatas de Bach. Havia vários livros sobre a mesa do pequeno apartamento. Peguei um pocket e continuei a leitura iniciada havia alguns dias. Quando olhei o relógio, percebi que já eram horas de sair: oito e meia. Desci. A noite estava quente.

Entrei no Mondego. Cumprimentei um dos garçons. Para falar a verdade, nunca gostei dos bares da Atlântica. Parece que há constante avidez por dólares e por turistas estrangeiros. Quando um simples nativo cruza a porta de qualquer um deles, percebe-se o desagrado dos empregados. Eles já nos conhecem. Sabem que gastamos pouco. Se continuarmos saindo, pensei, vou propor um bar mais aconchegante, fora do circuito turístico.

Sílvia chegou às 9:10h. Ela era pequena e magra. Tinha charme. Trajava uma saia jeans, camiseta sem mangas e percebia-se que não usava sutiã. Calçava sandálias que achei perfeitas a seu estilo. Beijou-me. Sentou-se. Pediu um chope. Eu já esvaziara o primeiro copo.

- Você vem sempre aqui?

- Pelo contrário - respondi -, quase não freqüento os bares da orla.

- Conheço um bar que é uma gracinha. Fica naquela rua entre a Figueirdo e a Siqueira. Qual é mesmo o nome daquela rua?

Tentei lembrar sem sucesso.

- Se você quiser - sugeri -, podemos tomar uma ou duas rodadas aqui. Depois vamos até lá.

Conversamos. Tentei não indagar em que trabalhava. Ela, porém, não hesitou. Tive que dizer-lhe que fazia traduções. Mas trabalhava em casa. Achou interessante. Quis saber detalhes, como idiomas, autores, etc. Percebi que gostava de ler e que tinha opiniões exageradas.

Pagamos a pequena conta - conta que contribuiu para sermos ainda mais desprezados pelos garçons - e caminhamos, inicialmente pelo calçadão, junto aos edifícios; depois entramos numa das transversais. Chegamos em dez minutos.

O bar estava cheio. Um homem tocava violão e cantava. Mas de modo discreto. As pessoas tomavam cerveja. A atmosfera do verão carioca se manifestava no local não apenas devido ao calor, mas pelo temperamento vibrante e expansivo das pessoas. Falavam alto. Sorriam. Esbanjavam saúde, êxtase, felicidade. Ali se via um pedaço vivo e bem característico do Rio. Ocupamos uma das mesas laterais. Eram pequenas as mesas do bar. Ficamos próximos um do outro. Esbarrávamo-nos, às vezes, sem querer.

Pusemo-nos a acompanhar o músico. Silvia conhecia a letra de cada canção. Passado algum tempo acendeu um cigarro, virou-se para mim e falou:

- Tenho uma porção de CDs de MPB, você gosta?

- Gosto, possuo muitos discos. Ultimamente tenho comprado mais clássicos e alguma coisa de jazz.

- Jazz? Você gosta de jazz? - perguntou torcendo um pouco o nariz.

Iria retrucar, porém à mesa ao lado, um grupo de jovens ria e falava alto. Eram quatro rapazes e uma moça. As fisionomias transmitiam entusiasmo. De repente, mais um jovem aproximou-se do grupo. Todos se levantaram. Cumprimentaram-no. Abraçaram-no. Estavam envoltos numa aura de intensa amizade.

O recém chegado exclamou:

- Vejam o livro que comprei! Tem um título estranho, chama-se Macabeth. É de um tal de Shakespeare. Parece que esse rapaz tem futuro! - mostrava o pequeno exemplar, e, ao mesmo tempo, girava o corpo em semicírculo à esquerda e à direita. Todos entregaram-se a uma prolongada gargalhada.

Olhei em direção a Sílvia, já esquecido do que lhe falaria sobre jazz. Ela também estivera acompanhando o divertido diálogo. Sua face era clara, compartilhava a alegria deles.

Eles devem fazer parte de algum grupo de teatro - falei.

Ela continuava sorrindo. Sentia imenso prazer por estar ali e poder acompanhar toda aquela movimentação. Quando a algazarra entre eles diminuiu e voltaram a conversar normalmente, ela se dirigiu a mim:

- Você conhece essa peça de Shaskespeare?

- Conheço. Já assisti a duas montagens.

- Quando for montada de novo, você me convida?

- Convido.

Senti-me animado porque ela se mostrava feliz em minha presença. Ainda quis acrescentar alguma coisa sobre a peça, preferi, entretanto, permanecer calado. Esperava que ela retomasse o diálogo.

Permaneceu também em silêncio durante algum tempo. O cigarro ainda reluzia entre seus dedos. Olhou em volta. Gozava a noite. Sorriu em minha direção.

- Você não vai acreditar no que eu vou lhe contar - acrescentou.

- O quê? – perguntei curioso.

- Duas coisas.

- Diga - aproximei-me com intenção de ouvi-la.

- A primeira é a seguinte: de vez em quando, adoro um baseado. E a segunda: já fui campeã sul-americana de atletismo. Cem metros rasos.

Não pude conter o riso diante de duas coisas tão diferentes.

- De que você está rindo? - ela me perguntou séria. - Faz muito tempo, mas é verdade.

Continuei com expressão de riso e afirmei meio incompreensível:

- Você é totalmente louca.

Acabamos rindo juntos, enquanto o garçom chegava com mais dois chopes.

Entramos pela noite conversando. As pessoas próximas já eram outras. Os jovens do grupo de teatro haviam partido. O homem do violão parara de cantar. Passava da meia-noite quando nos levantamos. Silvia não bebera muito. Eu, apenas o dobro. Quando saímos do restaurante, me perguntou:

- Será que a gente consegue um baseado agora?

- Bem, podemos tentar. Você não tem fornecedor?

- Tenho, mas a essa hora não sei se vou conseguir.

Caminhamos de novo até a orla. No Posto Quatro, em frente ao Marriot, me dirigi ao quiosque do Chaves.

- Chaves, tenho um pequeno problema.

Contei-lhe a situação. A solução foi rápida.

- Júlio - disse -, você senta um pouco e toma uma cerveja, é por minha conta. Seu pedido não vai demorar, será entregue em mãos, com toda a segurança.

Não tardou. Eu ainda não acabara de beber a cerveja quando alguém me entregou o objeto tão desejado por Sílvia. Paguei a despesa e rumamos para meu apartamento.

Havia muito tempo que eu não fumava maconha. Mas naquela noite tudo se deu com perfeição. Silvia estava feliz. E eu também. Fumamos juntos e namoramos durante boa parte da madrugada. Só não sei se os vizinhos tiveram o mesmo sentimento. Fumaça densa e malcheirosa escapava daquele pequeno apartamento, na Domingos Ferreira.


II
A porta do elevador se fechou em silêncio. Eu subia pela terceira vez o prédio de número 52, da Bolívar. Já telefonara outras duas. Nenhuma resposta. Toquei a campainha do 602. Esperei. Ninguém veio abrir. Liguei do celular. Ouvi o telefone tocar lá dentro. Uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Enfim, a secretária eletrônica. Desliguei. Tive vontade de bater forte. Derrubar a porta.
Desisti. Desci pelas escadas. Senti a cabeça girar. A descida ligeira alterou-me o equilíbrio. Atravessei a rua sem olhar. Um som de buzina surpreendeu-me. Depois, a voz do motorista. Um palavrão. Segui em direção à praia. No caminho, entrei num bar. Encostei no balcão. Do lado esquerdo, dois homens bebiam cerveja e discutiam futebol. Uma mulher loura, de short curto e top, entrou em busca de um maço de cigarros.
- De caixinha - ainda a ouvi pronunciar.
O empregado a atendeu. Depois que deu as costas e partiu, ele ainda a continuou olhando. Quando se voltou para mim, arregalou os olhos. Tentava cumplicidade. A bunda da mulher o impressionara. Pedi um café, sem compactuar com ele.
- Tem genebra gelada? - perguntei após depositar a pequena xícara sobre o balcão.
O homem não respondeu. Abriu o frigorífico, tirou uma garrafa verde, despejou num copo comum uma enorme dose. Ainda sinalizei para não exagerar. Ele, no entanto, não me olhou. Tomei o copo em uma das mãos, reparei o líquido transparente e o bebi, de único gole.
Saí de ânimo novo. No calçadão, lancei-me a caminho do Posto Seis. Sob o sol da tarde, as pessoas caminhavam, banhavam-se, encontravam-se, conversavam, se amavam. Uma espécie de êxtase absorveu-me. Sutil alegria de apenas poucos momentos. Naquele sábado, não mais procuraria Sílvia. Andaria. Aproveitaria o fim de tarde, ao ar livre. O verão crepitava. Observei uma senhora passeando com uma pequena cadela. O animal farejava. Deparou-se logo adiante com outro da mesma raça. Ambos se cheiraram. Giraram em semicírculo. A dona do primeiro se dirigiu ao dono do segundo, um senhor:
- Do seu, ela gosta. Há um outro ali, nas proximidades da Figueiredo, que é um problema. Ela não gosta dele, de modo algum.
Os cães permaneceram durante alguns segundos enredados. Depois ela falou:
- Vamos, Anete.
O pequeno animal se desembaraçou do outro com facilidade. Facilidade característica dos animais. Seguiram. A mulher e a cadela. Longa correia unia as duas.
Em frente ao Othon, parei num quiosque. Mesa alguma desocupada. Junto ao balcão, três pessoas não se davam conta de que impediam qualquer aproximação. Numa das mesas, duas louras conversavam e sorriam. Um ambulante negro lhes tentava vender camisas de clubes cariocas, ou da seleção nacional. Elas continuavam rindo. Nada entendiam. Ou fingiam. Ele falava um inglês desencontrado, sintaxe portuguesa, alguns vocábulos em espanhol. Tentava ser engraçado. Trabalhava. Elas, sorrisos de plástico, não compraram.
A genebra já me deixara rastros. Sentia-me um pouco frio, apesar da caminhada e do calor. Meu espírito, porém, flutuava. Acreditava ter a solução para vários enigmas. Não queria perder aquela sensação. Perguntei ao empregado do quiosque:
- Tem genebra gelada?
- Gelada, não.
- Como? Não tem gelada?
- Posso fazer o seguinte: coloco duas pedras de gelo.
Sorri diante da solução. Gesticulei como se não houvesse outro jeito. Ele veio em seguida com um copo e duas enormes pedras.
- Vou caprichar! Não é pra qualquer um que faço isso, viu?
O homem me olhou. Queria minha amizade. Achei que lhe devia retribuir a boa vontade. Sorri novamente. Bebi. Paguei e agradeci. Disse que ele era gente boa, que sempre voltaria. Despedi-me. Ele, com vasto sorriso e algumas palavras, agradeceu-me:
- É isso aí, doutor. Nós estamos aqui pra servir. O senhor é sempre bem chegado.
Segui. Agora tudo parecia mais límpido. O mundo adquirira leveza. Difícil descrevê-la. Próximo à rede de vôlei do Gustavo, alguém me acenou. Parei. Era Joana. Trabalhara comigo havia alguns anos. Recentemente nos reencontramos. Às vezes, saíamos. Parecia esperar a vez para o vôlei.
- Não fala mais comigo, não?
Abraçou-me alegre, como se não me visse há tempos. Beijou-me.
- Olha, há uma festa hoje. Você quer ir? Não tenho companhia.
- Festa? Onde?
- No Joca's.
- Que Joca's?
- O Joca's, o bar do Debret.
- Ah, sim, sei onde é.
- Você vai ou não?
- A que horas? - indaguei.
- Às dez e meia .
- Vou - afirmei sem titubear.
- Espero você lá, hein? Não vai me dar bolo, viu?
- Claro que não - respondi.
De repente, das proximidades da rede, alguém chamou:
- Vamos, Joana, é a nossa vez. Joga ou não?
- Claro que jogo! - gritou.
Deu-me um beijo ligeiro e se foi. Acenou-me quando se posicionou junto à rede.
Continuei em frente. Mais pessoas surgiam. Aproveitavam o fim de tarde. Ao mesmo tempo, caminhavam sob sol mais ameno. Lembrei-me dos livros que me esperavam em casa. As duas doses de genebra atrapalhariam a leitura. Pensei em voltar, fazer alguma coisa para me livrar do álcool, manter a tranqüilidade costumeira. Atravessei. Um garçom conhecido me acenou de um dos bares. Ofereceu-me uma boa mesa. Gente bronzeada entre copos de chope se espalhava em conversas miúdas. Arre, com a leitura! Que fique para outro dia. A bebida dourada chegou-me imediatamente. Numa tulipa de cristal.
- Vou trazer pra você um tira-gosto. É cortesia.
Voltou logo em seguida. Deixou uma porção de salame.
Silvia é uma mulher transtornada. Como podia acontecer aquilo? Não era a primeira vez. Desaparecera. Não deixara aviso. Nenhum vestígio. Tentei desviá-la do pensamento. Iria logo mais à festa da jogadora de vôlei. Foda-se Sílvia.
Quando comecei a beber o segundo chope, percebi que teria de me cuidar. Do contrário, estaria de porre à hora marcada. Repeti o ritual apenas mais uma vez.
Depois que deixei o bar, voltei ao calçadão. Decidi correr um pouco. Queria suar. A intenção era eliminar o álcool. Iniciei em ritmo lento, mas não resisti por muito tempo. Senti que, caso insistisse, entraria em colapso. Após algumas centenas de metros, surpreendeu-me súbita vertigem. Suava frio. Na altura da Santa Clara, com dificuldade de respirar, atravessei. Embrenhei-me pelos quarteirões internos de Copa. Avistei um bar. Entrei. Pedi café. Era um bar antigo. Balcão, o empregado do outro lado e as pessoas de pé, homens na maioria. Bebiam e conversavam. O café estava velho e tinha gosto amargo. Mesmo com açúcar. Lembrei que o açúcar aumenta a glicose e impede o efeito do álcool. Resultado: tentei engolir meio copo de café quase intragável.
Regressei. Percebi um recado na secretária eletrônica. Avancei sobre o aparelho. Quando tentei ouvir a mensagem, silêncio. A pessoa desligara ao perceber o sinal de gravação. Decepção. Desesperança. Larguei-me no chão. Ao lado do telefone. Olhei para o teto. Tentei concatenar os pensamentos. A tarde de sábado findava. O apartamento aos poucos escurecia. Lá fora, vozes de crianças e o burburinho da rua.

III
Às dez e meia da noite acordei um tanto confuso. Lembrei-me do convite de Joana. Levantei-me. Tomei um banho rápido. Procurei no pequeno armário o vidro de perfume. Vesti-me.
A cabeça ainda me doía quando entrei um tanto tímido no Joca’s. Pelo caminho, enquanto atravessava algumas ruas das proximidades, tive a sensação de que esquecia algo; agora, a mesma sensação retornava. A lembrança de Sílvia tomou-me de repente. Ao menos lhe poderia ter telefonado ou me voltado em direção a seu apartamento, já que passara pela rua onde ela morava; se estivesse em casa haveria luz em um dos cômodos. A decepção à tarde, o início de bebedeira e o torpor em que caíra logo após ter entrado em casa, já no início da noite, tolheram-me a memória. O que fazer agora? Na verdade, eu desejava mesmo era estar com ela.
Joana ao me avistar foi tomada de imensa alegria. Correu a meu encontro, agarrou-se a meu pescoço, beijou-me exagerada e sussurrou, ainda com o rosto colado ao meu:
- Puxa, pensei que você não viria.
Olhei o relógio. Só então reparei que já eram onze e meia. Várias mesas estavam ocupadas pelos amigos do aniversariante. Alguns se surpreenderam ao me ver. Levantaram-se e me vieram cumprimentar. O primeiro foi o Guilherme:
- Porra, Júlio, quantas vezes já traduziram Os três mosqueteiros para o português?
Acabei rindo enquanto o abraçava e não deixei de lhe responder no mesmo tom:
- Quatrocentos e quarenta e quatro.
Aqueles que acompanharam o breve diálogo e sabiam da minha profissão não perderam a oportunidade, riram alto. Procurei o aniversariante. Joana disse-me, entre a alegria geral e a música que era alta:
- A Adriana foi buscá-lo. Esta é uma festa surpresa.
O chope era livre e chegava com facilidade. Muitos já estavam bastante alegres, bebiam havia algumas horas, quando ainda se encontravam na praia. Os grupos discutiam vários assuntos. Sentei-me junto a três pessoas: dois homens e uma mulher. Conversavam sobre cinema. Um deles, que se dizia cineasta, eu apenas conhecia. Cumprimentou-me com um breve gesto. Dirigira dois curtas, e ainda, segundo ele, concluía seu primeiro longa.
- É a questão do patrocínio – afirmava -, o preço está um absurdo. Como se sabe que são as estatais que entram com o grosso do dinheiro, os preços vão lá em cima. Quem não sabe captar, não consegue rodar. É uma burocracia terrível. Em alguns casos é preciso contratar especialistas para fazer esse trabalho.
Seu interlocutor o ouvia atento entre um gole e outro de cerveja. Era um pouco mais velho e parecia muito interessado no assunto.
- A classe exigiu a regulamentação do audiovisual, não? Não estão então satisfeitos?
- Nem todos – continuava -, quem inicia agora, se deseja ser independente, não consegue bancar os custos.
- E quem consegue filmar, então?
- Apenas os grandes. Veja só, um Cacá Diegues consegue todos os recursos. A lei é discriminatória. É necessário que sejam criadas restrições para estes. Mas é um assunto sobre o qual ninguém deseja falar. Além disso, você fica preso ao patrocinador. Precisa agradá-lo. Não há independência para se filmar.
Entrei na conversa quando Joana voltava de um cumprimento e puxava a cadeira para sentar-se a meu lado:
- Não temos um grande filme sobre o golpe militar, ou sobre as conseqüências dele – arrisquei. - Talvez seja devido a isso.
- Exatamente – animou-se o cineasta -, é uma ótima observação – virou-se em minha direção. – Como você vai fazer um filme sobre esse tema, se quem financia a maior parte é o governo? Ainda há pessoas daquela época no poder. O filme vai ferir interesses. Há a televisão também a patrocinar através de sua própria produtora. Esta emissora cresceu durante a ditadura, obteve privilégios. Como abordar com isenção o episódio e seus envolvidos?
Nas outras mesas, as pessoas começaram a cantar em homenagem ao aniversariante. Ele acabara de chegar. Todos se levantaram animadamente. Abraços e beijos se multiplicaram. A conversa foi interrompida e as pessoas se misturaram. Um garçom trouxe outra bandeja cheia de copos de chope. Rapidamente ela se esvaziou e todos se posicionaram para um novo e festivo brinde. Quando a conversa voltou ao normal, algumas pessoas haviam mudado de lugar. Joana envolveu-se em uma discussão sobre música. Mas não me deixou. Levou-me para junto dela e manteve-se abraçada a mim durante um bom tempo. O cineasta perdera-se em outra roda de conversa. Quis integrar-me ao novo grupo. Pus-me a ouvir o que discutiam. Não viera ao aniversário pelo aniversariante, que, aliás, eu pouco conhecia. Procurava distração e companhia. Não demorou e a conversa sobre música também esquentou. Discutia-se a qualidade da atual MPB. De um dos lados vinha uma opinião ácida:
- A música brasileira atual é uma música de mercado.
- Os músicos precisam sobreviver...- alguém retrucava.
- Sempre precisaram e sempre conseguiram, mas não era necessário que chegassem ao estágio atual.
Joana intercedeu:
- Na música, a cultura brasileira tem uma marca, que normalmente não se vê em outras artes. Merece, portanto, respeito.
A polêmica se estendeu. Uma mulher, que depois eu descobri chamar-se Míriam, rebateu:
- Esperem aí, por favor, não se pode generalizar.
- Não estou generalizando – voltou a carga Joana -, estou apenas querendo dizer que a nossa música em qualquer lugar do mundo é respeitada.
- Tanto nossa música clássica, quanto a popular – falou Alberto.
- Nosso cinema também é respeitado. Em qualquer cineclube de uma minúscula cidade que seja, de qualquer país, sabe-se quem foi Glauber – opinou Míriam.
- Quanto a isso não há dúvida – Joana concordou enquanto levava um gole de cerveja à boca. – Sobre música, porém, é preciso ressaltar que a atual música brasileira é de boa qualidade.
- Mas é de mercado, é feita para vender - disse Miriam.
- Se pensarmos assim, o cinema também...
- O cineasta que não nos ouça – falei entre um riso irônico.
Um rapaz, que fazia parte de uma banda de rock, intrometeu-se na conversa:
- Muitos começam protestando, mas acabam aderindo ao mercado. É preciso viver, dizem. A desculpa é sempre a mesma. Dizem que é impossível escapar a essa máquina terrível de fazer dinheiro...
- E você, o que acha? – Joana perguntou a ele.
- De que vale minha opinião?, será que temos capacidade de reverter essa situação? - procurou esquivar-se
- Não é questão de reverter, mas de criar uma mentalidade que fortaleça os verdadeiros artistas, aqueles que cultivam as raízes de nossa cultura e procuram, ao mesmo tempo, novas linguagens - afirmou Joana.
- Isso é verdade – intercedeu Alberto -, aqueles artistas que iniciaram suas carreiras nos anos 60 não mais se preocupam com isso. Qualquer disco que lançam, pretendem vender milhões de cópias. Tem gente até cantando em inglês...
- Começaram protestando, depois ficaram ricos – acrescentou o roqueiro.
A conversa se estendeu, se ramificou, alguns trocaram de lugar, e logo se percebeu que, para a comemoração de um aniversário, não se poderia chegar à conclusão alguma em relação ao debate. Ou melhor, a única conclusão era a de que o mercado saía duramente criticado, combatido, golpeado, mas vencedor. Vencia porque era uma luta desigual, alguns sentenciavam. Vencia, ao menos por enquanto. Vencia, segundo outros, de modo irreversível.
À uma e quarenta, um grupo sugeriu que a comemoração continuasse em outro lugar. Como os participantes eram muitos naquele momento, as propostas foram várias. Venceu a daqueles que opinavam por um pub em Ipanema. Mesmo os que se mostravam defensores ferrenhos da cultura nacional acataram a sugestão. Joana chegou-se a mim e falou:
- Você não vai me deixar, não é mesmo? Vem comigo? – indagou de modo carinhoso, beijando-me uma das faces. Não tive outra alternativa: segui em companhia dela.
O grupo foi chegando pouco a pouco no pub, situado na General Osório. Logo na entrada reparei que o local estava lotado. Mesmo assim nos esprememos, tentávamos atingir a pista de dança, no segundo andar. O som tecno logo me chegou aos ouvidos. Não se podia conversar naquele ambiente. Nem era local para isso. Um público predominantemente jovem se amontoava por todos os cantos. O ambiente ia escurecendo à medida que nos aproximávamos da pequena pista. Joana me agarrava com um dos braços. Creio que temia perder-me em meio ao tumulto.
- Vamos para o bar – gritou em meu ouvido. Precisou repetir a proposta ainda duas vezes para que eu entendesse.
Ao atingirmos o balcão do bar, ocupamos uma das poucas brechas, ao lado direito. Joana voltou-se ao garçom. Ele mesmo preparava as bebidas e as servia.
- Duas margueritas, por favor.
Olhei para ela um tanto surpreso. Bebêramos vários chopes no Joca’s. Ela sorriu e moveu os ombros, como que pedindo minha compreensão. Bebemos e dançamos a nosso jeito.
Às três e meia resolvemos partir. Em meio ao barulho ensurdecedor, despedimo-nos de quem estava próximo a nós. As luzes, que saltavam de várias partes do teto, piscavam continuamente. Sentia-me tonto e com dor de cabeça. Joana ainda estava agarrada a mim. Bebera, como a maioria, demais. Eu contive-me durante boa parte da noite. Mas perto da hora de ir embora, bebi duas doses de tequila com limão.
Logo que saímos, pegamos um táxi. Perguntei a Joana se queria ir para casa. Disse que sim, mas queria que eu ficasse com ela. Descemos na Constante, em Copa. Era onde morava. Subimos. Ela demorou para encontrar a chave dentro da bolsa. Ao abrir a porta, percebi que não estaria só no apartamento. Uma das irmãs dormia, na sala, com o namorado.
- Joana, é melhor eu ir – falei. – A gente se vê amanhã ou depois.
Ela me beijou, enquanto reparava a irmã bêbada de sono tentando entender o que acontecia. Saí rápido. Desci pelas escadas.
Quando cheguei a meu prédio, percebi luz na janela do quarto. Provavelmente esquecera de apagá-la. Entrei. Reparei que havia alguém no apartamento. Era Silvia. Estava acordada. Deu-me um beijo demorado sem fazer qualquer tipo de pergunta e sem dizer palavra alguma. Também nada falei. Tirei toda a roupa.
Permanecemos agarrados um ao outro durante o resto da noite.

IV
Estávamos no deck do Leblon. Sílvia, sôfrega, aspirou o cigarro recém aceso. Eu lia uma matéria sobre cinema, no jornal. Não deixei de me surpreender e exclamei:
- Puta que o pariu! Ou esse cara nunca foi ao cinema ou assistiu a outro filme. Não é possível escrever uma bobagem dessas.
Sílvia não reagiu. Sem dizer palavra alguma, virou uma das páginas do caderno que estava lendo.
Quando terminei a leitura, passei-lhe o jornal. Ela esticou o pescoço, olhou-me por cima dos óculos e falou:
- É sobre aquele filme que vimos, não é mesmo? É um filme polêmico. E veja só quem escreveu o artigo, é pessoa de renome.
- O que é que tem? Por acaso alguém é perfeito?
- Ah, que bom ouvir isso de você! Se ninguém é perfeito, você também não é... Lembra outro dia no B’s? Você arranjou uma discussão desnecessária com aquele jornalista do G. Só faltaram sair no tapa. O assunto era sobre uma matéria que comentava a nova tradução de O idiota, de Dostoievski.
- Discussão desnecessária?, nada disso, – assegurei -, ele é mesmo um ignorante. Você lembra o que ele falou?
- Lembro – respondeu dirigindo-me os olhos rapidamente, voltando-os, a seguir, ao jornal, que segurava nas mãos.
Através desse pequeno movimento, percebi todo o charme que me tornava uma fácil presa daquela mulher. Esqueci-me por uns momentos do que conversávamos. Pensei em me aproximar e beijá-la. Mas algo me deteve, o beijo ficou para depois.
- Você falou que a tradução estava perfeita - continuou -, irrepreensível. Viu? Lembro até a palavra: irrepreensível. Ele falou que havia alguns problemas que precisavam ser revistos. Você perguntou se ele sabia russo. Ele respondeu que não. Então você mandou que ele lesse o almanaque do Tio Patinhas. O homem ficou furioso e queria partir pra briga. Vocês dois já tinham bebido demais. Se não fosse eu, o episódio teria um final bem diferente.
- Como alguém que não sabe a língua de origem pode criticar uma tradução?
- Claro que e possível comentar alguma coisa. Basta comparar a tradução atual com a antiga. A que nos faz compreender melhor está mais adequada, não é mesmo?
Sílvia olhou-me demoradamente. O vento soprou mais forte, movendo-lhe os cabelos. Sobre nossas cabeças, um enorme guarda-sol preso no centro da mesa nos lançava pequena sombra. Olhei para o empregado do quiosque. Ele entendeu que eu desejava uma cerveja. Sílvia disse que não queria bebida alcóolica.
- Não faz mal – respondi -, peça um refrigerante.
Dizer que o dia estava agradável seria redundância. Dali se viam várias pessoas na praia. No Leblon e em Ipanema. O clima era de meia estação. Continuei olhando o caderno cultural do jornal, quando falei novamente:
- Por falar em O Idiota, você acabou de ler o livro?
- Acabei.
- E o que achou?
- Gostei.
- Não é possível ler O idiota e falar apenas "gostei", é importante discutir algumas questões, não?
- Sim. O romance aborda muita coisa. É muito complexo.
Começamos a conversar sobre o livro. Ela era uma pessoa que gostava de ler. Não era especialista em literatura, mas uma leitora contumaz e um tanto exigente. Normalmente não conseguia verbalizar questões complexas. À medida que a conversa se aprofundava, falava pouco, até que, em determinado momento, se colocava inteiramente como ouvinte. Aquilo me desagradava. Eu acabava falando sozinho e ela, por não rebater, parecia ter dúvidas sobre minhas palavras.
O empregado do quiosque trouxe a lata de cerveja. Despejei-a num copo de plástico. Temi que o vento o levasse. Mas o copo permaneceu estável, ao menos enquanto cheio.
- É muito difícil falar sobre a obra de Dostoievski - comecei um pouco preocupado com a reação dela. - Devem existir milhares de teses sobre o que escreveu e grande parte do que a gente comenta, para os especialistas, pode ser assunto de criança.
- Não falo de especialistas - disse enquanto levava o cigarro mais uma vez aos lábios. Depois entornou um pouco do refrigerante também dentro de um copo de plástico. Continuou: - a gente pode conversar sobre qualquer livro, a nosso nível, sobre o que entendemos. As questões colocadas por especialistas não são para nós. Não sei por que você se preocupa com isso. Acho que esse é um dos motivos que afastam as pessoas dos livros. Especialistas, teses e etc. só atrapalham.
Concordei com ela em silêncio. Acabei por lhe contar a experiência de um professor que conheci havia tempos.
- Tive um amigo que ministrava aulas de português para os alunos dos últimos anos do ensino fundamental. Ele dizia. "Os jovens se afastam dos livros por culpa dos professores". E afirmava categórico: "eles complicam demais". Ele me contou que certa vez leu A metamorfose, de Kafta, para a garotada. Então falei: "você está maluco? Kafka para a gurizada?" Ele disse: "eles já não são tão guris assim e olha que o resultado foi surpreendente." Segundo ele, os alunos ficaram impressionados com a transformação de Samsa num inseto monstruoso. Ele leu o livro junto com eles e após o término da leitura falou: "agora vamos dividir a turma em grupos e vocês vão tentar encenar uma pequena parte da história que acabaram de ouvir. Vocês podem fazer as modificações que quiserem. A encenação precisa ter, pelo menos, alguma coisa a ver com o que eu li para vocês." Os alunos se reuniram durante uns quarenta minutos e, perto do final da aula, cada grupo fez sua apresentação. Um dos grupos representou da seguinte forma: "alguém deitava sobre três carteiras enfileiradas, usadas como cama improvisada. Fazia de conta que despertava, olhava apavorado para seus braços e pernas recém transformados em garras, levantava com dificuldade. Depois descobria que tinha asas (foi preciso permitir esta concessão), batia-as e levantava vôo. A mesma encenação se repetia, exatamente da mesma forma, com mais outros dois alunos. O último, porém, ao se levantar e tentar voar, era abatido de modo impiedoso por outra personagem, que entrava em cena e não o perdoava, espancando-o com uma grande sandália. Ele caía no chão fulminado e morria. Aí está, A Metamorfose, de Kafta, para a garotada da 7a série. Uma encenação irrepreensível"
Sílvia acompanhou toda a narração com interesse e sorriu quando terminei.
- Interessante esse trabalho que seu amigo faz.
- É - continuei -, ele diz que tenta fazer os alunos gostarem de leitura.
Permanecemos em silêncio por alguns instantes. Dobrei alguns cadernos do jornal e cuidei para que não voassem. Ela procurou mais um cigarro. Após acendê-lo, retomou a conversa.
- Acho que os romances de Dostoievski permitem muita discussão - comentou e esperou que eu falasse algo.
- Você sabe que falo como um leitor comum. Embora trabalhe profissionalmente com traduções, não sou professor de literatura. Há pessoas que descobrem muitas coisas no decorrer da leitura. Há também aquelas que somente se prendem propriamente à história.
- Creio que as pessoas, de modo geral, gostam de uma boa história - disse ela.
- Em O idiota, há o enredo propriamente, mas encontramos, pouco a pouco, outras coisas interessantes.
- O que, por exemplo?
- A princípio, o que se observa é que acontece muita coisa em pouco tempo. Não é uma crítica negativa que estou fazendo, o que quero dizer é que há um jorrar incessante de palavras, frases... A gente até se preocupa e fica pensando: será que num espaço tão curto de tempo é possível se falar sobre tanta coisa, fazer tantas observações? Dostoievski foi acusado também de criar personagens inverossímeis.
- Talvez o príncipe, não é mesmo?
- Isso. O príncipe Michkin não pensa praticamente em si. Vive em função dos outros. Ao mesmo tempo é considerado um idiota porque é sincero e não sabe fazer o jogo de aparências daquela sociedade. Mas que ele tem conversa, tem. Acaba por conquistar a todos, passam até a amá-lo. O problema é que ele não suporta o peso de sua opção, ou pode-se dizer, de sua maneira de ser. Ele se torna um verdadeiro idiota porque não se coloca sob o escudo das aparências, não se permite proteção alguma, dentro de uma sociedade em que todos vivem a se esconder continuamente.
- Eu não sei - hesitou, sorvendo o cigarro mais uma vez -, li o livro com interesse, gostei muito, mas o que me tocou mais foi a questão do casamento. Praticamente não havia amor. O interesse era pelo dinheiro e por vantagens que se arranjavam com dotes. Era um outro tempo.
- Vejo uma outra coisa interessante, que acontece também em Crime e castigo.
- Qual? - olhou-me com algum interesse, mas reparei que talvez não gostasse de meus comentários ou os achava um tanto complicados.
- A questão da febre, ou da doença.
- Como assim?
- Repare que quase todos os personagens de Dostoievski, quando perdem a razão, estão possuídos por uma febre ou por algum tipo de mal que os leva a cometer atos que não os praticariam se estivessem sãos.
Silvia olhou-me enquanto eu observava mais uma vez seus cabelos ao sabor do vento. Ela tentava segurá-los, prendê-los em forma de rabo-de-cavalo. Continuei:
- Em ambos os assassinatos que acontecem, tanto em Crime e castigo quanto em O idiota, os personagens que os cometem estão em estado de demência devido à febre. Isso tem a ver com outra discussão que o autor coloca em algum outro ponto da narrativa: é também sobre crime e criminosos. Ele diz, logicamente não com essas palavras: "Todo criminoso, por mais cruel que tenha sido seu crime, sabe que cometeu algo que causou danos, que gerou algum tipo de mal a alguém. Ele pode não se arrepender do que fez, mas no fundo reconhece que cometeu algo nocivo à sociedade. Se isso não acontecesse, se ele achasse corretas suas ações, estaríamos num momento em que já não se faria distinção entre os conceitos e, consequentemente, viveríamos num estado de confusão total." Agora escute ainda - eu continuava me entusiasmando pelo assunto -, no momento em que um crime é cometido e o criminoso se encontra em estado de febre, demência ou doença, não significa que ele, o criminoso, esteja isento de culpa, mas o tratamento dado a ele é outro. É como se a doença o tivesse levado ao crime. O arrependimento e a punição seriam, consequentemente, o processo de absolvição.
Sílvia olhou-me com certa curiosidade. Inclinou a cabeça parecendo não demonstrar concordância ou discordância. O empregado trouxe outra cerveja. Ergui a lata na direção dela. Disse mais uma vez que não queria beber. Enchi meu copo, tomei um grande gole. Levantei-me e fui até ela. Sílvia permanecia imóvel em seu lugar. Envolvi-lhe o pescoço com um de meus braços, beijei-lhe o rosto. Arrastei a cadeira até ali, sentei-me. Permanecemos abraçados durante algum tempo.


V
Na verdade, nunca gostei da Lapa. Sempre achei decadente o bairro, sem chance alguma de recuperação. Aquela fileira de sobrados antigos, que se estende do Asa Branca até os Arcos, sempre me pareceu prestes a desabar. Basta entrar ou subir em uma daquelas construções para que você comece a sentir premente preocupação sobre o futuro de sua existência. As edificações restauradas, situadas nas ruas próximas, transformaram-se em caros restaurantes e casas de show que passaram a freqüentar as páginas dos guias turísticos. A razão da revitalização do local, na linguagem de homens da prefeitura e empresários da noite, é a preservação da memória do bairro e da cidade. Mas tudo aquilo nada mais é do que um belo motivo para você ser explorado em todos os bolsos e, ao final da noite, sair sorrindo, sob os olhares de seguranças falsamente gentis. Os ambulantes também são outro aborrecimento de que é impossível se livrar. Vendem de tudo. As opções se multiplicam quando se trata da oferta de cervejas. É possível encontrar as piores marcas, é possível encontrar latas que já entraram e saíram da geladeira de isopor duas dezenas de vezes. Não vou falar sobre a qualidade da cannabis, encontrada à venda em abundância nas redondezas, porque aí já seria trilhar veredas perigosas. Mas há aqueles que gostam. Do fumo e do lugar. Sorriem ao dizerem que estiveram na Lapa e curtiram uma noite de boêmia maravilhosa.
Eu caminhava sozinho e entrava pela Mem de Sá. Parei nas proximidades do Carioca da Gema. Eram mais ou menos 9:30 da noite. Marcara encontro com Silvia e um casal de amigos dela, na porta daquela famosa casa. Um negro de um metro e noventa, trajando terno preto, permanecia imóvel debaixo de um toldo branco, enquanto outro funcionário da casa conferia a reserva dos recém-chegados. O tráfego em frente era caótico. Inúmeros táxis desembarcavam passageiros ávidos em conhecer o local. Logo que cheguei, o negro se dirigiu a mim e perguntou se eu tinha reserva. Respondi que sim, mas que esperava três pessoas. Pediu então que eu me afastasse, que não permanecesse à frente do local. Por duas vezes me afastei e inconscientemente voltei, na ansiedade de avistar Sílvia e seus amigos. E por duas vezes ele me falou exatamente a mesma coisa. Não queria ficar mais adiante porque a alguns metros, à esquerda, era um famoso ponto de travestis. Não tenho nada contra travestis. Acho-os pessoas autênticas e interessantes. Mas não me sentia bem em estar próximo a eles, uma vez que minha intenção era outra.
Inúmeros casais chegavam. O lugar não é para quem anda só. Entravam sorridentes, e, entre eles, notava-se a presença de turistas.
Ouvi som de chorinho. Vinha lá de dentro. Não gosto desse tipo de música. Sei que se trata de cultura brasileira, mas percebo ritmos mais instigantes. O choro sempre me pareceu algo retrógrado, tentativa vã de dar vida a alguma coisa morta, composição executada por instrumentos que nunca me convenceram. Batida rápida, constante repetição, notas que fogem, pessoas que parecem tentar escapar de alguma perseguição. Molejo falso, falsa malandragem, algo improvisado no pior sentido da palavra. Pensei se não teria sido melhor permanecer em casa naquela noite.
Atravessei a rua. Queria me livrar da aglomeração e beber algo enquanto eles não chegavam. Entrei num botequim, na rua do Lavradio. Pedi uma dose de genebra gelada. O atendente abriu um dos frigoríficos localizado abaixo do balcão, encheu um pequeno copo. Ficou a olhar-me como que perguntando se eu queria mais um pouco. Meneei a cabeça negativamente. Tomei o copo nas mãos e bebi tudo de um só gole. Quando ensaiei deixar o bar, vi um letreiro luminoso: Hotel País de Gales. Construção antiga, talvez um sobrado do início do século XX, descaracterizado, restaurado a mercê de interesses comerciais. Ao mesmo tempo, uma mulher alta, magra, de vestido comprido tipo bata indiana atravessou, passou por mim e me olhou de soslaio. Chegou a me dirigir um ligeiro sorriso. Pensei em segui-la, abordá-la. Mas fiquei apenas na intenção. Imediatamente lembrei algo que ocorrera havia, mais ou menos, vinte anos. Eis a história.
Sábado. Mais de duas da tarde. Estava no centro da cidade com objetivo de visitar velhos sebos. Andara durante toda a manhã. Entrara em quase todos, revirara estantes, regateara alguns livros e devo ter comprado uma pequena quantidade deles. Tomava um café numa padaria que existia na Treze de Maio. De repente, vejo uma mulher passar adiante, sobre o passeio. Eu fazia o meu lanche, de pé, voltado para a rua. Ela me olhou. Também me sorriu. Naquele dia, meu destino seria outro. Engoli o mais rápido que pude o lanche, paguei e saí em desabada correria. Tentei alcançá-la. Fora em direção à Cinelândia. Encontrei-a na altura do Teatro Municipal. Dirigia-se ao Castelo. Mais tarde descobri que desejava condução para a Ilha do Governador.
Ela diminuiu as passadas ao reparar que eu a seguia. Olhou lateralmente para se certificar de quem se tratava. Não foi difícil fazê-la parar e estabelecer um diálogo. Não lembro com que palavras iniciei, só recordo que ela falou:
- Você me paga um guaraná?
- Só um guaraná? - ainda repeti surpreso.
- É, pode ser.
Voltamos à mesma padaria. Pedi o guaraná. Insisti e acabou aceitando um salgado. Via-se que era pessoa simples. Era magra, mas saudável. A roupa escondia um corpo bonito, que eu apreciaria depois.
- O que você faz aqui no centro?
- Vim à procura de uma loja de reparo de roupas - respondeu-me sorrindo, enquanto recolocava o copo de refrigerante sobre o balcão. Deu uma mordida grande no salgado. Reparei, então, que ela tinha fome. Ainda perguntei:
- Você não quer almoçar?
- Não, não, obrigada - respondeu-me de forma rápida.
- Você está com pressa? - atirei a minha pedra. Queria ficar um pouco com ela e tentar alguma coisa.
- Não - respondeu-me, alongando o ã. Percebi uma ponta de charme na expressão.
- Vamos caminhar um pouco? - sugeri.
Ela aceitou. Partimos em direção ao Largo da Carioca, entramos na rua do mesmo nome. Todas as lojas já estavam fechadas. Uma ou outra lanchonete permanecia aberta. A cidade, nos fins de semana, ao menos naqueles tempos, era uma desolação total. Ainda não estava na moda a palavra depressão, mas era isso que sentíamos ao cruzar aquelas ruas vazias. Raramente esbarrávamos em um ou outro transeunte extraviado. Quando chegamos à praça Tiradentes, afligi-me ante ao abandono a que aquele grandioso monumento se encontrava, condenado a estar ali por anos, décadas, talvez séculos. Do outro lado, havia algum movimento. Olhei em direção à rua Luís de Camões. As prostitutas mantinham-se a postos. Insistiam. Lembrei-me de um amigo. Certa vez ele me falara: "com uma nota de dez você passa a noite com uma delas. É o ponto mais barato da cidade”. Tive pena do meu pau, caso saísse com alguém dali. Tive pena de Camões. Acho que ele merecia uma rua melhor.
Eu e a mulher, seu nome era Soraia, pouco conversamos. Perguntei se ela encontrara a loja e se obtivera sucesso.
- Mais ou menos, não consegui falar com a proprietária.
Percebi então que ela fora em busca da tal loja não para algum conserto, mas à procura de trabalho.
- Está difícil trabalho, não é mesmo?
Ela respondeu de modo silencioso, com uma expressão de desânimo. Naquela época, eu tinha vinte e poucos anos, trabalhava na prefeitura, mas nada falei sobre isso.
Descemos pela Visconde do Rio Branco. Deparamo-nos com vários hotéis baratos. Passamos por todos eles, até que entramos na Lavradio. Ela já percebera minhas intenções. Nada, porém, falara. Quando passávamos junto ao Hotel País de Gales, ela mesma estacou e voltou-se a mim com as seguintes palavras.
- Se nós transarmos - apontou com a face o prédio do hotel -, você me arranja uma nota de cinco?
- Arranjo - respondi sem titubear. Nunca fizera uma conquista tão fácil e barata. Ainda fiquei seriamente preocupado se ela era mesmo mulher. Pensei que pudesse estar me enganando. Quando entramos, apalpei sua calcinha pela frente. Ela segurou minha mão e disse:
- Calma, já vamos, aqui não.
- Não foi essa minha intenção - ainda sussurrei. Ela me lançou um leve sorriso. Percebi nele toda a melancolia daquela tarde.
O empregado, atrás do balcão, em meio a uma escuridão quase total, suavizada apenas por luzes em tom azulado, alertou-me:
- O senhor sobe, dobre a direita e siga até o fim do corredor. É a última porta. Não repare, o hotel ainda está em obras. Estou lhe oferecendo a melhor suíte.
Fizemos o que ele disse. Quando tentei abrir a porta, a chave não girava. Havíamos passado por três homens que trabalhavam em um vão, à direita. Eles, naquele momento, se voltaram com olhar malicioso na direção da mulher. Ao nos ver em dificuldades, um deles veio em nosso socorro e tentou abrir a porta. Não conseguiu. Disse que esperássemos. Pegou a chave e correu em direção à recepção. Os outros dois ficaram a nos olhar. A fisionomia deles era de desejo. Perguntavam em silêncio a si mesmos: "Como esse idiota consegue uma mulher dessas, e nós aqui, com água na boca?" Rapidamente o empregado da portaria apareceu. Vinha seguido do homem que propôs nos ajudar. Desculpava-se de mil maneiras. Ofereceu a chave correta. Disse que daria um desconto por tal falha.
Entramos. Tranquei a porta. Os homens da obra devem ter ficado imaginando o que faríamos lá dentro.
Agarrei a mulher. Ela disse:
- Calma, calma.
Fui tirando sua roupa até deixá-la totalmente nua. Era bonita e boa de cama. Mas confesso que, naquele tempo, eu não tinha a experiência de hoje. Trocamos beijos, carícias, mas no momento da relação sexual, gostaria de ter demorado mais. Quando terminamos, Soraia levantou-se. Procurava juntar suas roupas. Entrei no banheiro. Logo que acabei de me lavar e saí, reparei que ela, ainda nua, apanhava uma nota de cinco que eu deixara em meio a meus pertences, sobre um aparador. Escondeu-a entre as pernas, junto às nádegas. Temia que eu não lhe pagasse. Tive pena daquela mulher.
- Porra, Júlio! Nós já estamos plantados em frente ao Carioca da Gema há meia-hora. Onde você se meteu? Quase entramos só nós três! - era Sílvia e seu casal de amigos. Acordava-me de tal devaneio, quando eu, ainda no mesmo bar, acabava de beber a segunda dose de genebra gelada.

VI
- Oi, tudo bem? - perguntei.
- Quase tudo.
Meu pai se levantou da mesa de jogo. A praça ainda era fresca àquela hora da manhã. Com poucas pessoas circulando, os velhos podiam cartear com toda a tranqüilidade. Jogavam todos os dias. Aposentados temerosos do vazio, do nada para fazer. Eram pequenos Ulisses em cujas faces havia vestígios de odisséias silenciosas.
- Vamos tomar café - disse a ele.
Caminhamos até o bar, no outro lado da praça. Ao entrarmos ele saudou, com leve movimento de cabeça, um conhecido.
- Como estava o jogo? – indaguei.
Nada bom, esses caras não sabem jogar. Falam muito, pensam que jogam.
A garçonete colocou duas xícaras sobre o balcão. O açucareiro foi usado primeiro por ele, depois o passou a mim. Ela veio com o bule e encheu as duas pequenas xícaras.
- Você não apareceu mais pra almoçar. Vai lá, Mercedes sempre faz comida.
- Estou muito ocupado – me desculpei. - É melhor encontrar com você aqui.
- E o trabalho?
- Tem sido muito. Tenho prazos a cumprir, às vezes quase não saio.
- E as mulheres? – fez meio sorriso, ar de deboche.
Dei de ombros, não queria entrar em detalhes.
– Não vejo você na praia ultimamente - observei.
Não tenho ido. Não tenho me sentido bem pra entrar na água. Sabe como é, minha idade, esses problemas todos, não posso facilitar.
- Não tem caminhado?
Tem feito calor. Deixa o tempo refrescar um pouco.
Ele não tinha muito assunto. Fora um bom pai, trabalhara, se esforçara para dar o melhor aos filhos. Conseguira, mas sentia-se um tanto ludibriado pelo destino. Não previra uma velhice daquelas. Vivia de modo comedido. Apesar do que ganhara quando ainda trabalhava, era obrigado a pequenas economias no presente. Tentava que nada faltasse, para ele e para a mulher, a segunda esposa. A primeira, minha mãe, morrera quando eu ainda era criança. Ele não gastara muito durante boa parte da vida. Creio, porém, que pensara em viver a velhice com mais conforto. Seu lazer era o carteado com os amigos, se é que eles podiam ser chamados de amigos. O problema era ele, uma pessoa difícil, sem papas na língua. Certa vez arranjara confusão com um dos parceiros de jogo, quando descobriu que ele, o parceiro, não era aposentado.
- Repare bem – dizia -, este é um clube de aposentados. Apontava o indicador no rosto do homem. Fica numa praça. Mas é um clube. E para aposentados. Você não pode jogar aqui.
Quase brigaram. Disseram-lhe que o oponente não era flor que se cheirasse, que não se metesse com ele. Poderia até matá-lo. Os outros parceiros não conheciam o homem. O pai andou sumido dali por uns tempos. Procurou outras praças, tentou outras parcerias. Até que voltou. Os companheiros o saudaram. Ele sorriu. O homem com quem quisera brigar, aquele que não era aposentado e que não podia pertencer ao clube, sumira.
- Tem ido ao cinema? – perguntou enquanto repousava a xícara sobre o pires.
- Tenho tentado ir menos.
Ele sorriu de modo sutil.
Seu outro lazer era a televisão. Ia para casa almoçar, às vezes voltava às duas, às vezes ficava em casa, ligava a TV e ia até à meia-noite. Via filmes, mudava de canal, tentava alguma coisa diferente. Até que era vencido pelo sono. Reclamava sempre de alguma coisa. Principalmente durante os finais de semana. O pai sempre fora homem sério em casa, até amargo. Risonho e piadista só para os amigos. Nos tempos em que ainda bebia – só gostava de cerveja, de muita cerveja – era, ainda no bar, mais engraçado, quando chegava em casa, no entanto, pouco falava, almoçava e depois dormia durante duas ou três horas.
Voltou caminhando devagar até onde eu o encontrara. As duplas de jogo já haviam mudado. Olhou o jogo sobre a mesa, as cartas nas mãos do homem a quem costeava, depois voltou-se a mim.
- O que você vai fazer agora?
Fiz um gesto de hesitação sem dizer nada. Ele permaneceu num longo silêncio. Disse, enfim, a ele:
- Já vou.
- Vê se aparece. – finalizou.
Voltei à Nossa Senhora de Copacabana como quem vai em direção ao Posto VI. A temperatura ainda não era quente, embora o verão ia alto, começo de março. Entrei num pequeno sebo, numa pequena galeria. Engraçado, ainda não me dera conta daquela loja. A lembrança de meu pai pouco à pouco foi se apagando de minha mente. Sentia um pouco de tristeza por ele, quando comecei a observar os livros sobre o balcão. Não sei se suportaria aquela sua vida. Passava-a numa praça jogando cartas, ou em casa vendo TV. Comecei a manusear o primeiro livro e minha vida retomou seu curso.
Discutira havia poucos dias com Silvia sobre Virgínia Wolf, e ali, sobre o primeiro balcão, havia Mrs. Dallowey. Lembrei do filme As horas. Eu tinha visto aquele filme com Silvia. Lembro-me de que ela o achara deprimente, pesado. Fora ao cinema por minha causa. Depois dei a ela o livro, de presente. Não sei se ela o leu. Suspeito que discutiu comigo apenas pelo que vira na tela. Li o livro pouco depois e achei a história muito complexa. Pensamentos e lembranças das personagens afloram durante todo aquele dia. Impossível não lembrar Joyce. Não sei se Mrs. Dallowey pode ser definido como uma narrativa. Mas gostei da história. Fluxo de pensamento transbordante, certezas e incertezas, delírio e loucura. Uma Londres ainda organizada. Um caminho inglês sobre uma época em que ainda havia algum tipo de crença. Ao menos na literatura Virgínia acreditava. Personagens fascinantes, marcados por muitos riscos, algo tão incomum entre os ingleses. Com Mrs. Wollf, o chão inglês deixou de ser tão sólido. Corri os olhos por outras prateleiras. Reparei que abrigavam livros de literatura policial. Romance inglês, séries sobre detetives famosos. Na ponta da estante, um brasileiro solitário: delegado Espinosa. Recordei-me de dois romances em que ele despontava como policial íntegro, cujo primeiro objetivo era livrar-se das amarras existentes dentro da própria corporação. Tomei na mãos Achados e Perdidos. Era muito recente para estar num sebo. Lembrei que a Copacabana dele era a mesma que a minha. E ele era apenas um personagem de ficção, mas muito convincente.
Saí do sebo. Tinha contrato com a editora. Precisava terminar duas traduções até o final do mês. Inicialmente entregava os trabalhos dentro do prazo. Às vezes, até antes. Mas relaxara. Andava demais pela manhã. Muitas vezes acordava tarde, resolvia ir ao Centro sem objetivo específico. Deixava o trabalho para mais tarde. As coisas, no entanto, não se davam como eu imaginava e as tarefas se iam acumulando. Prometera a mim mesmo que, naquele dia, voltaria logo e retomaria as tarefas. Era preciso disciplina para realizar aquele tipo de trabalho conforme as editoras exigiam. Iria me esforçar.
Atravessei a Santa Clara. Muitas pessoas passavam apressadamente. Continuei na Nossa Senhora. Após alguns metros, entrei no Cirandinha. Pedi um café. Olhei o salão de lanche. É mais movimentado à tarde, quando senhoras, ali, tomam chá e saboreiam waffles. No verão, a casa vende muitos milk shakes. Aquela hora da manhã apenas o balcão de entrada tinha algumas pessoas. Tomavam café. Um homem, ao fundo, bebia cerveja. Uma mulher de cabelos louros encaracolados chamou-me a atenção. A cor do cabelo não era natural, tratava-se certamente de tintura. Mas a mulher era bonita. Ao passar por mim, tocou o canto do lábio esquerdo com a ponta da língua, voltou-me os olhos e depois caminhou de cabeça baixa. Era magra e bem vestida. Tinha sua graça. Uma prostituta, na verdade. Àquela hora da manhã. Mas as traduções me esperavam. Eu tentava disciplinar-me.

VII
O restaurante exibia seus freqüentadores habituais. Eram mais de onze da noite. Um grande número de artistas o escolhera como ponto de encontro, e assim o lugar tomara fama. Recentemente, escritores também afluíam ao local. Eram homens e mulheres que procuravam visibilidade. Pessoas que discutiam o tempo todo, apertavam mãos amigas e desconhecidas, procuravam ouvir sugestões e, como é de praxe, faziam propaganda dos próprios livros. Tinham vida social tão intensa, que se desconfiava da autenticidade do que escreviam. Um dado não tão novo, mas que se intensificava nos tempos mais recentes, era a presença, no local, de gente de televisão, gente que começava também a se arriscar na literatura. Seria possível nomear literatura o que escreviam? Havia alguns bons, tinha-se de reconhecer. Mas o número de oportunistas aumentava. Essas pessoas, os bons e os nem tanto, não deixavam de se fazer notar ali. E, por último, avistavam-se os tietes. Vinham com a intenção de conseguir algum autógrafo, alguns traziam o exemplar do livro debaixo de um dos braços, outros pediam autógrafos em guardanapos, ou mesmo em qualquer outro pedaço de papel. Eu, que freqüentava o restaurante de longa data, antes mesmo de estar na moda, sentia um certo desconforto diante de todas aquelas pessoas.
Quando Sílvia chegou, falei:
- Vamos para aquele bar que você gosta. Aqui já não é possível.
- Por que você não falou antes? Me fez vir até aqui para dizer isso?
- Está bem. Vamos ficar um pouco, mas depois vamos a outro lugar, ok?
- Tudo bem - respondeu e pediu ao garçom um chope.
À medida que peças de teatros e shows acabavam, o restaurante recebia mais pessoas: artistas e o público em geral. Para os admiradores de vida social intensa, o lugar era ideal para se estar numa noite de sábado.
O garçom retornou. Serviu-nos com alguma cerimônia. Olhei o líquido dourado e pensei se não teria sido melhor ter pedido uma taça de vinho. Comentei com Silvia. Ela sentenciou:
- Está muito quente pra beber vinho.
Olhei seu rosto de maneira minuciosa. Às vezes, não gostava de suas opiniões, mas, por outro lado, não deixava de admirar o senso prático, o caráter resoluto de sua personalidade. Em alguns momentos, quando mexia na ponta de um guardanapo, ou mesmo procurava na bolsa o maço de cigarros, eu descobria nela traços que reluziam um aspecto de mulher que me atraía bastante. Silvia estava mais para o figurativo do que para o abstrato, mais para a narração do que para o ensaio. Preferia conversas que não demorassem muito, detestava pessoas que se perdiam em explicações. Entediava-se freqüentemente com livros que se estendiam e não diziam muita coisa, segundo ela. Às vezes, eu queria conversar sobre algumas inquietações, alguma dúvida sobre música, literatura ou cinema. Ela, no entanto, não era a pessoa certa para esse tipo de conversa. Ouvia a princípio, mas não emitia opiniões, ou se as proferia não o fazia com facilidade. Sua respiração se tornava pesada, parecia querer dizer algo, mas acabava calada. Sua paixão mesmo era a música, música que pudesse ouvir a letra e cantar. Ali se apresentava, por inteiro, o conhecimento que possuía sobre arte e talvez sobre a própria vida, na música, na boa música, como ela mesma dizia.
- Não sei o que tanto te incomoda nesses caras - disse, virando-se para o salão lotado.
- Não é que me incomodem – rebati -, é que predomina a hipocrisia.
- Como assim? - incitava-me.
- Se eu começar a falar, você vai me censurar, vai dizer que estou sendo desagradável...
- Já sei, você vai dizer que estão vendidos ao mercado, que são comerciantes, não são artistas...
- Você trouxe seu baralho cigano hoje, não é mesmo? Já consegue ler meus pensamentos! - ri na direção dela. Ela também riu, segurou o copo de chope e bebeu mais um pequeno gole.
- Veja só - ela continuava -, se você fosse escritor ou outro tipo de artista, faria o mesmo. Como é que se vai viver? Eles são profissionais.
- A questão não é essa - contra-argumentei. - Sei que eles são profissionais, que precisam viver, mas o que me preocupa é o destino que as coisas estão tomando, principalmente quando o assunto é arte ou cultura.
- Você por acaso vai salvar o mundo, vai ter capacidade de influir no destino que as coisas estão tomando? - soltou a fumaça do cigarro recém aceso, que a princípio se espalhou diante de mim, mas depois tomou direção contrária devido a circulação do ar.
- Você sabe minha opinião sobre este assunto. A arte sempre resistiu, sempre estabeleceu questões; agora vemos essas pessoas produzindo arte como se fosse um grande negócio, um meio fácil de ganhar dinheiro.
Silvia fez um leve movimento com os olhos, pôs-se a observar durante longos segundo um dos cantos da superfície da mesa, até que voltou a falar:
- Como é que você fala mesmo sobre a cultura de massa? Aquele negócio de esclarecimento, manipulação, coisa e tal...
- Aliás, não sou eu que falo, é uma afirmação que vem desde meados do século XX. A cultura de massa não leva ao esclarecimento, mas à manipulação ainda maior...
- Então, você tem respostas para as próprias questões. - cortou Silvia. - Talvez estejamos no auge da indústria cultural. Será que há alguma forma de resistir a isso? Não estou querendo dizer que o artista deve ser vendido ao mercado, mas qual a alternativa para se estar fora disso? Qual? - insistia ela. - A gente vê por aí pessoas que se colocavam à margem, hoje estão inseridas, seguem fórmulas de sucesso, obedecem às regras do jogo.
Silenciei por alguns instantes. Bebi um pouco da cerveja. De repente, um homem dirigiu-se a nossa mesa.
- Conheço você - disse -, já li duas traduções suas, fique com esse convite, não deixe de ir ao lançamento...
Tratava-se de famoso jornalista. Era também escritor. Tinha vários livros publicados. Seu texto, a princípio, era ágil, inovador e sua rotina diária era a redação de um grande jornal. A presença dele me fez refletir sobre o que conversávamos. Dirigi-me a Silvia novamente.
- Este homem que deixou o convite é exemplo do que estou falando. No início, prometia, mas já a partir do segundo livro rendeu-se. Hoje vende muito, na linguagem que usam por aí. Se quiser, pode viver de literatura; digo, de má literatura. Os jornais, a crítica, a indústria cultural, enfim, querem-nos fazer acreditar que ele é um grande autor, mas nunca foi tão reles. Não falo que exista uma fórmula para se vencer "as forças do mercado", mas que é importante levantar algumas questões, estabelecer bases para se fazer algum tipo de reflexão...
- Mas mesmo assim se faz parte do jogo.
- Depende de que jogo - opinei sem deixar de sorrir da própria pilhéria.
Silvia me olhou com seriedade e falou:
- Prefiro não conversar mais sobre isso. Já estou com dor de cabeça. Vamos sair, vamos tomar um pouco de ar. Depois podemos beber mais um pouco em outro lugar. Essa conversa é muito complicada e não vai levar a nada.
- Vamos - concordei.
E para embaralhar ainda mais o assunto afirmei:
- Nada melhor para resolver um impasse do que temperamento de mulher, principalmente se ela for linda...
Beijei-lhe uma das faces.

VIII
Copacabana amanheceu fria. Desci cedo. Ia em direção ao calçadão. Uma mendiga, à esquina da Santa Clara, encolhia-se sob um cobertor esfarrapado. Alguns senhores tentavam vencer o inverno caminhando e vestindo agasalhos esportivos. Quando atravessei a Domingos Ferreira, Antônio gritou em minha direção:
- Não vai querer a Folha?
- Guarda que eu pego depois - respondi sem me deter.
No calçadão, enquanto andava, alguém passou correndo e tocou-me o ombro. Olhei em sua direção. Era Joana. Acenou-me sem interromper a marcha. Deixou no ar as seguintes palavras:
- Me telefona, preciso falar com você.
Segui para o Leme. Precisava caminhar. Olhava os prédios, as outras pessoas, o mar, até que lembrei um sonho. Daquela mesma noite. Caminhava por uma rua remota, talvez próxima à infância. O passeio era calçado por quadrados de cimento cujas intercessões eram preenchidas pela grama. Cultivava-se grama entre blocos de cimento. De onde me surgira aquilo? A cidade, a do sonho, possuía muitas árvores. As construções, enfileiradas, obedeciam à rigidez geométrica. Mondrian. Senti intensa vontade de procurar por aquele lugar, de voltar àquelas ruas. Um carro freou bruscamente em frente ao Meridien. Alguém atravessara distraído. Quase atropelado. Quando retornei, junto à pedra do Leme, um garoto me pediu dinheiro. Sem palavras, fiz gesto de desalento. Agora, regressava. Imprimia ritmo mais veloz à marcha. Alguém passou de bicicleta e me acenou. Correspondi. Mas não o reconheci.
O metrô entrava lentamente na estação Saens Pena. Pelo microfone veio a voz. Avisava que todos deveriam desembarcar. Estação terminal. Quando atingi a superfície, comecei a me arrepender de estar naquele lugar. Chovia fino. As pessoas esbarravam guarda-chuvas. Os carros buzinavam no sinal da General Roca com a Conde de Bonfim. Era o exílio. Um banco substituía o bar aonde meu pai nos levava. Eu e meu irmão. Íamos ao encontro do avô. Tomávamos guaraná e comíamos batata frita de saquinho transparente. Ele, o avô, fazia-nos comer devagar. Queria-nos educados. Devíamos sempre deixar um pouquinho de guaraná no fundo do copo. Enfiei-me por uma galeria que dava passagem à Santo Afonso. A chuva levava as pessoas por ali. Reparei duas adolescentes bem louras. Sorriam e carregavam mochilas. Uma delas comia uma barra de chocolate. Um rapaz de cabelos negros compridos passou e olhou para as duas.
Ao chegar ao outro lado, segui em direção à Antônio Basílio. Naquele trecho, a paisagem da Tijuca muda. Sem o tráfego de ônibus, a rua se estende elegante, com seus prédios ajardinados e luxuosos. Um amigo de escola invadiu-me a mente. Fazia tantos anos. Onde estaria ele? Lembro que tocava violão. Percorri toda a rua. Não mudara muito. Alguns prédios novos, nada mais. No encontro com a José Higino, o Corpo de Bombeiros. Sonhara muitas vezes com um trote sensacional. Toda a guarnição saía em sirenes. Iam em busca de um incêndio de ficção - comecei cedo a carreira -, mas eles nunca me deram crédito. Parei diante do prédio onde eu morara. Havia grades por todos os lados. Um porteiro desconhecido atrás de uma enorme mesa via televisão. Senti-me impelido a chamá-lo pelo interfone. Aproximei-me. Ele me viu. Assustei-me com o som metálico que abriu a porta. O porteiro confundiu-me com algum outro morador. Não entrei. Deixei a porta aberta e segui em frente. Sobre o passeio, o cimento era inteiro. Agora, ia sem destino. De repente, a casa de Ronaldo.
***
- Ela concordou – disse Ronaldo com entusiasmo para, logo em seguida, terminar a frase com desânimo -, mas só se for de carro.
- De carro? - indaguei -, impossível!
De Sandro, a idéia de sair com a Aparecida.
- Vamos falar com ela. Ela topa - dissera.
Ronaldo se encarregara do contato. Mas a exigência de ser de carro nos pegou de surpresa. Eu e Ronaldo concordamos que seria melhor desistir. Sandro, não.
- Tenho uma idéia - falou.
- Espero que não seja outro fiasco - acrescentou Ronaldo.
- Porra, quando foi que eu coloquei vocês numa fria?
- Só num certo jogo do Flamengo. Aquele negócio do bar do Dida...
- Aquilo já passou. E foi uma outra história. Agora estou falando de mulher. Será que vocês não gostam de mulher?
- Gostamos - respondeu Ronaldo -, mas de carro é sacanagem. E quem aqui, por acaso, sabe dirigir?
- Eu - respondeu Sandro.
- Porra, cara, nunca vi você tocar num volante!
- Nunca viu? Dirijo sim. Arranja o carro que me encarrego de dirigir.
Duas horas depois, já tínhamos todo o plano traçado. O carro seria o do pai do Ronaldo. Um fusca 68.
- Porra, cara, se meu pai descobrir ele me mata, tá entendendo? Me mata!
- Não vai descobrir, deixa com a gente.
No dia combinado, nos encontramos às oito e meia da noite. Hora do jornal. Todas as televisões ligadas. Ronaldo já estava de posse das chaves. Tínhamos que empurrar o automóvel, em silêncio, até à rua. Sem que ninguém percebesse. Sandro se posicionou ao volante. Deu-nos o sinal.
- Agora eu quero ver o que esse maluco vai fazer - disse entre os dentes Ronaldo, enquanto tentávamos movimentar o veículo.
Após algum esforço, o carro começou a deslizar garagem afora. Ao atingir a rua, Ronaldo gritou em surdina para mim:
- Fecha o portão! Cuidado pra não bater!
Quando dobramos à Conde de Bonfim, sentimo-nos aliviados. Ou melhor, eu e Sandro. Ronaldo morria de medo.
- Onde você combinou com ela? - perguntou Sandro, agarrado ao volante.
Na São Miguel.
- Porra, cara, na São Miguel?
Naquele tempo, a São Miguel não era esse terror todo de hoje, mas mesmo assim preocupava.
- Só falta ela não estar lá - arrisquei.
Os dois me olharam a contragosto. Ronaldo assustou-se e se dirigiu a Sandro.
- Olha pra frente, cuidado! - alguém atravessara diante do automóvel.
Contornamos a Xavier de Brito. Subimos a segunda rua à esquerda. Lá em cima, havia uma quebrada, também para a esquerda. Sandro fez a curva. Depois vem um tipo de curva do s, em descida. Ronaldo gritou:
- Diminui, porra, você tá voando.
- Deixa comigo - disse Sandro -, isso é coisa pra profissional.
- E desde quando você é profissional?
Aparecida estava no local combinado. Ainda nos sacaneou:
- Quase deixo vocês na mão. Pensei que não vinham mais. Tem um cara aí de carro que já deu duas voltas. Tá me enchendo o saco. Me convidou para ir à Barra.
Naquele tempo a Barra era deserta e desabitada, lugar ideal para namorar às escondidas.
Ela entrou. Sentou-se a meu lado. Permanecemos em silêncio. Sandro deu a partida.
- Vamos lá, garotada - continuou nos sacaneando -, como é?, vão ficar aí parados?
Olhei para Ronaldo. Ele fez um movimento com a cabeça como que me mandando atacar. Virou para frente. Eu agarrei a mulher. Ela tinha o corpo quente. Viera de vestido. Ficamos atracados no banco traseiro, enquanto Sandro fazia as curvas do Alto da Boa Vista. Era dezembro de 1973.
Entramos pela Floresta da Tijuca. Paramos num lugar ermo e distante. Aparecida estava nua. Ronaldo passou para o banco de trás.
- Agora é a minha vez - falou.
Saí do carro e pedi um cigarro a Sandro. Acendi. Dei um trago e tossi duas vezes. Virei para ele e falei:
- Porra, que mata-rato!
- Viu como dirijo bem? - falava orgulhoso de si mesmo.
- Fica com o volante, que eu fico com a mulher - sugeri.
- Porra, assim também não!
Ronaldo continuava dentro do carro com Aparecida.
Após um quarto de hora, a vez era de Sandro. Mas quando ele entrou e se agarrou a ela, algo nos fez crer que começaríamos a ter problemas. Vimos ao longe um carro que se aproximava. Parecia ter uma lanterna na capota.
- A polícia! - gritei, mas já era tarde. Rapidamente eles se aproximaram e nos bloquearam a passagem. Sandro e Aparecida, dentro do carro, tentavam se vestir. Um dos policiais avançou sobre nós.
- Estamos fodidos - disse Ronaldo.
Éramos menores. Não tínhamos documentos. Sandro, apesar da habilidade no volante, não possuía habilitação.
Quando nos dávamos por perdidos, veio a voz lá de dentro.
- Deixa que eu converso com eles.
Aparecida e os dois policiais desapareceram na escuridão vizinha. O vento frio da noite nos gelava ainda mais. Permanecemos calados e assustados. Ela demorou a voltar.
Quando retornou, veio sozinha. Os dois homens entraram na viatura e se foram sem nos incomodar. Ouvimos a voz dela.
- Me emprestem um pano ou algo parecido?
Ronaldo abriu o porta-luvas e tirou uma flanela que o pai dele usava para lustrar a carroceria. Aparecida se abaixou, limpou-se. Partimos sem mais palavras. Paramos para deixar a mulher no mesmo lugar onde a encontramos. Piscou-nos um dos olhos.
- Como é, não vão pagar?
Sandro e eu olhamos para Ronaldo.
- Pagar? - surpreendemo-nos quase juntos.
- Você não nos falou sobre isso – virei-me para Ronaldo.
- Porra, como vamos fazer agora? - apavorou-se Sandro.
- Se vocês não pagarem, já sabem o que vai acontecer - a mulher encerrou suas palavras olhando na direção do morro.
Ronaldo tirou duas notas amassadas no bolso. Deu a ela.
- Não foi esse o combinado. Mas vou liberar vocês. Amanhã, a essa hora, venham trazer o resto. Sei onde vocês moram.
Sandro deu a partida novamente.
Entramos na nossa rua. Tremenda confusão. O pai de Ronaldo chamara a polícia: tivera o carro roubado.
***
Olhei para a casa mais uma vez. Os antigos moradores provavelmente perderam-se por outros bairros, outras cidades. Quis perguntar por eles. Não tive coragem. Viera impelido pelo passado. O passado estava morto. Precisava esquecê-lo.
Quando retornei, apanhei a Folha com o Antônio. O frio diminuíra. O sol arriscava suas fichas.

IX
- Joana? Como vai?
- Tudo bem. Pedi que me telefonasse...
- E o que você manda?
- Quero convidar você para o lançamento de um livro.
- Mais um?
- Júlio, estou convidando...
- Tudo bem, qual a data?
- Na próxima terça.
- Onde?
- Na Argumento.
- Tudo bem, acho que dá pra ir. O livro é sobre o quê?
- Poesia.
- Poesia?
- É, e não vai debochar de novo. O cara é bom. Vai fazer história.
- Pessoa também fez.
- Júlio, você vai mesmo?
- Vou.
- Mas promete que não vai fazer nenhuma provocação?
- Eu já deixei você em má situação alguma vez?
- Não, mas você é muito crítico...
- Vou comprar o livro e vou ler em voz alta alguns poemas.
- Não precisa chegar a tanto. Acho que eles vão declamar. Dizem que vai o Gullar.
- Ele já leu o livro antes?
- Não sei, Júlio, mas deve ter lido. Não ia colocar o nome às cegas...
- Qual o nome do autor?
- Que autor?
- O do livro que será lançado.
- João.
- João de quê?
- Que importa, Júlio? Sei que o primeiro nome é João, e é meu amigo.
- Espero que não seja mais um Cabral.
- Júlio ...
- Não me leve a mal.
- Só não vou levar você a mal se nós marcarmos um encontro.
- Mas você já não acaba de marcar?
- Antes, Júlio. Quero encontrar você neste final de semana.
- Tudo bem.
- E a Sílvia?
- Dou um jeito.
- Me pega em casa sexta, às nove?
- Pego.
- Então está marcado?
- Está.
- Um beijo.
- Outro.
- Tchau.
***
- O carro deu problema. Quase perdi a hora, Joana.
- O que houve?
- Ainda não sei. Demorou a pegar. Amanhã vou ver.
- Será que ele agüenta hoje?
- Não sei. Se enguiçar, pegamos um táxi. Para onde vamos?
- Você que sabe.
- Não gosto de mulher indecisa.
- Vai ter que gostar. Não vou deixar de ser por você...
- Está bem. Vamos ao Bar Luiz. Uma viagem ao século XIX.
- Vamos. Lá tem aquele chope imenso.
- Isso mesmo.
- E os garçons são do tempo da inauguração.
- São.
- E hoje não falemos de literatura.
- Isso, sem literatura.
- Claro...
- Seremos duas pessoas normais.
- E não somos?
- Claro que não.
- Então como faremos?
- Serei um homem querendo comer uma mulher.
- Puxa, Júlio, que baixaria!
- Baixaria é escrever para ganhar prêmios.
- Cuidado, Júlio.
- Estou guiando devagar.
- Não é isso.
- É o que, Joana?
- A literatura.
- Esqueci.
- Então tá. Um homem querendo comer uma mulher. Será que não é ela que vai comê-lo?
- Pode ser. Até concordo.
- Não gostei do até.
- Por quê?
- Preconceito.
- Também concordo! Veja: Bar Luiz, rua da Carioca. Um homem e uma mulher. Final do século XIX. Machado ainda vive. Mas ele não bebe.
- Cuidado, Júlio!
- Já saímos do túnel, Joana.
- Não é isso, Júlio.
- O quê, então?
- A literatura....

X
No bar Luiz
- Frustrado!
- Frustrado é o caralho!
- Júlio, não faça isso!
- Me solta, Joana, me solta que eu vou arrebentar esse cara!
- Filho da puta!
- Fala quem é filho da puta, fala!
- Júlio, olha o que você tá fazendo, você vai matar o cara, solta ele, Júlio, solta!
- Frustrado, você é um frustrado! Você não consegue escrever uma linha...
- Júlio, não faça isso! Ele vai morrer! Por favor, vamos parar! Pessoal, ajudem aqui! Ajudem a separar esses dois!
- Veado.
- Veado é o caralho!
- Pára Júlio, por favor, pára de cuspir na cara dele.
- Isso mesmo levem esse veado daqui! Aqui não é lugar de bicha!
- Frustrado! Frustrado!
- Frustrado é o caralho. Quanto você pagou por aquele prêmio, babaca?
- Você fala isso porque nunca conseguiu nada na vida. Eu sou um vencedor. Você só faz tradução de livro b. Otário! Pode me bater, você nunca vai escrever como eu!
- Falso poeta! A literatura nunca foi tão reles, tão bem comportada! Você é um deles. Escrevem como se jogasse bingo. Fazem uma grande aposta.
- Escreva você então!
- Eu não escrevo, eu bato. Dou porrada!
- Júlio, volta aqui, ele já tá todo ensangüentado. Para com isso. Seu Alfredo, ajuda aqui, por favor!
- Calma, Joana. Júlio, pense bem, segura a barra, essa briga não vale a pena! Sai fora você, Armando! Deixa que eu seguro ele. Vá embora. Já basta por hoje!
- Eu vou embora, mas vou dar queixa, viu? Vou dar queixa. Dessa vez isso não vai ficar assim.
- Dê a queixa! Me solta, seu Alfredo, me solta que esse cara merece apanhar!
- Júlio, vamos embora. Tá todo mundo olhando pra gente. Não vai demorar vem a polícia. Vamos, Júlio!
- É melhor vocês irem, Joana. Vou ver se limpo a barra do Júlio. Ele tá nervoso. Vão! Amanhã a gente vê como fica essa situação.

XI
Silvia estava sentada no sofá de dois lugares, na pequena sala de seu apartamento. Cuidava das unhas da mão. Ouvia música. O som vinha do pequeno aparelho, situado a suas costas. Mergulhava delicadamente a extremidade do pequeno pincel no vidro de esmalte vermelho, levava-o até a ponta de um dos dedos com todo apuro. Ficava feliz ao olhar cada unha pintada. Quando se voltou à mão direita, sentiu alguma dificuldade. Um dos poucos e desconfortáveis problemas que enfrentava por ser destra. Mas insistia. Terminada a tarefa, sempre chegava à conclusão de que fora sua obra-prima. Sentia-se, então, cansada. Queria dormir.
Sobre a cama, sempre de casal (era só para ela, partidária do conforto), havia um livro. Estava com o marcador saliente. Indicava que ela não ultrapassara a metade do volume. A capa alaranjada se destacava sobre o edredom de cores suaves. O livro parecia fazer parte da decoração do quarto. Mas Sílvia lia. Lia sempre. Esquecia-se. Mas nada de leituras difíceis, acadêmicas; divertia-se.
Precisava de alguém? Dizia que se bastava. O apartamento à meia luz, a música suave, o livro próximo às mãos; era tudo que desejava. Se alguém se dispusesse a amá-la, deveria ter cuidado. Sílvia jamais amara alguém. Poderia até ter um namorado ocasional, conviver com ele durante certo tempo, mas amar, não amava. Dizia que uma vez amara. Mas não era verdade. "Ama ao próximo como a ti mesmo". Se ela algum dia se enamorasse por alguém, seria amor verdadeiro. Porque amava a si própria intensamente.
Silvia levantou-se. Sentia sede. Encheu um copo com água. Bebeu até a metade, vagarosa. Depois o pousou sobre a mesa, sobre um pequeno guardanapo de papel. Lembrou que não almoçara. Como lhe podia acontecer tais coisas? Esquecer de almoçar. Por isso sempre fora magra. Quando se lembrava que precisava alimentar-se, deparava-se com as primeiras luzes da noite. Fumava. Muito.
Sobre a mesa de TV, (a TV permanecia dias e dias desligada) havia um pequeno bloco de anotações. Descobriu um lembrete. Escrevera-o no dia anterior. Devia comprar sabonete.
Houve um dia em que se trancara em casa por tempo indefinido. Ficara com as cortinas cerradas. Luz, somente a do dia, filtrada pelo forro cinzento da cortina. Silêncio. A vida exterior chegava em sol menor. Através dos ruídos da rua, de alguma voz mais alta, do murmúrio coletivo do bairro. Quando anoitecia, os sons eletrônicos: jornais distantes que prenunciavam o fim do mundo. Naqueles dias, nem o telefone atendera. Cortara relações com o mundo exterior. Não se alimentara. Bebera água. Água apenas. Permanecera deitada durante quase todo o tempo. Olhava um livro. Mas nem com ele se comprometia. Na terceira noite de reclusão espontânea, dormia. Sonhou então que o telefone tocava. Acordou. Ele tocava de verdade. Atendeu. Ana, uma amiga de adolescência que estudara com ela e se tornara jornalista, suicidara-se.
Silvia olhou o relógio. Sete horas da noite. Escreveu mais algumas palavras no mesmo bilhete onde lera sabonete. Abriu a bolsa, tomou nas mãos o maço de cigarros. Tentou acender um, mas o isqueiro falhava. Tentou seguidas vezes. Deu alguns passos até a cozinha. Acendeu o fogão, aproximou-o do fogo. Sorveu, ávida, o primeiro trago. Fechou os olhos durante alguns segundos. Apagou a luz e saiu.
Na rua, a noite já se estabelecera. Mas ainda havia muito movimento. Reparou uma mulher que puxava uma criança pelo braço. O pequeno vinha quase se arrastando. Ele olhou para o lado e a encarou. A pequena face do menino se estampou a Silvia como alguém assustado, os dois olhinhos arregalados. Talvez tentava enxergar nela algo misterioso. A criança seguiu agarrada à mãe, mas só tirou os olhos de Silvia quando não pode mais torcer o pescoço.
Sílvia entrou no pequeno mercado. Procurou alguma verdura nas primeiras prateleiras. Depois lembrou que precisava comprar pão. Pão integral, era melhor. Não esqueceria o sabonete. Ah, um isqueiro. Um isqueiro para acender os cigarros.
Pagou e saiu. Carregava uma pequena sacola.
O rosto da moça do caixa demorou a desaparecer de sua mente. Gente simples. Gente que mora longe. Talvez tivesse o marido desempregado, ou quem sabe, trabalhador temporário, autônomo, como ele mesmo diria. Alguém que, com ar de posse e sempre com alguma reclamação, esperava a mulher, olhava-a impingindo temor. Talvez tivessem um filho. Ela passava antes na casa de algum parente para pegá-lo. Esperava ansioso pela mãe. Apesar de tudo, a mulher era feliz. Tinha seu homem, tinha o filho, um emprego. E uma casa para morar. Mesmo que bem longe. Não havia tempo para pensar em outras dificuldades. A vida a excitava no calor mágico de algumas noites. Algo vibrava dentro dela, da mulher do supermercado, que a levava sempre adiante. Identificava-se com os outros. Pertencia, como os outros, ao mundo. Era feliz.
Silvia chegou à portaria do prédio. Voltou-se para rua. Surpreendia-se.
Naquela noite, sairia com Júlio. Tinham marcado às nove. Ainda havia tempo.
Abriu a porta do apartamento, atirou-se no mesmo sofá onde estivera a fazer as unhas. A caminhada até o mercado a deixara exausta. Estava realmente fora de forma, pensou. Tentara um dia manter-se atleta, mas...
A vida transcorre, na maioria das vezes, com sutileza. Sílvia encontrava sentido nas pequenas coisas. Conhecia pessoas que teimavam ir em busca do grandioso, do surpreendente, mas acreditava que o dia-a-dia, se vivido com delicadeza, era de um tamanho imensurável. Para ela, os pequenos afazeres eram o surpreendente. Queria andar à noite, respirar o ar ainda quente, sentar à mesa de um restaurante, beber uma ou duas taças de vinho. No dia seguinte, continuaria a leitura, descobriria uma música nova, entraria numa loja que não reparara, apesar de passar sempre naquela rua.
O telefone a acordou.
- Júlio? Tudo bem. Já vou descer.

XII
- Você assistiu à peça, Joana? Reparou os cenários? São meus.
- Assisti. Gostei muito, Rony. Combina muito com o tema, com o argumento. Você está de parabéns.
Jaime foi até o bar pegar uma garrafa de vinho. O apartamento em que estavam era em Ipanema. De repente, Joana mudou o destino da conversa.
- Vocês moram num apartamento muito bonito.
Olhou os quadro, as soluções arquitetônicas modernas e práticas, as cores em tom suave. Voltou-se a Rony e continuou:
- Vocês têm bom gosto. É bom viver em meio à arte. Poucos tem esse privilégio.
- Na verdade, viver em meio à arte, como você diz, e viver de arte são coisas bem difíceis.
- Eu sei, Rony, você precisa estar sempre atrás de trabalho, ou de alguém que precise de cenógrafo. Muitos grupos ou artistas já têm esse tipo de profissional, não é mesmo? Já possuem a pessoa certa, trabalham com ela há anos...
- Tenho com quem trabalhar, tenho como sobreviver, basta que ele esteja acertando. Se alguma coisa começa a não dar certo, o trabalho de todos torna-se arriscado. Se o artista naufraga, quem está com ele afunda também.
- Ouvi falar que você está fazendo cinema, é verdade?
- Estamos começando. Eu e o Jaime. É uma área nova para nós. No cinema não é como no teatro. Tudo acontece muito rápido. E nem sempre seu trabalho aparece. Às vezes, aquilo de que você mais gostou é cortado na hora da montagem.
- Mas ganha-se, não?
- Depende. Hoje há uma série de artifícios em relação a patrocínio. Você precisa saber com quem está trabalhando. O que não se pode é trabalhar de graça. É preciso um contrato, necessita-se ter uma firma, assinar como pessoa jurídica, há todo um ritual burocrático. Torna-se mais um burocrata do que um artista.
- Você já pensou se Van Gogh precisasse vender seus quadros?
Todos riram da solução de Joana para o curto diálogo. Viera a convite de Rony. Esperavam pessoas para uma pequena comemoração devido ao sucesso da peça em que ele participava.
Em determinado momento, foi Jaime que fez a Joana uma pergunta:
- Como vai seu amigo?
- Que amigo?
- O Júlio.
- Tenho encontrado com ele vez ou outra. Mas acho que não anda nada bem.
- Por quê?
- Tem arranjado algumas encrencas.
- Como assim?
- Um dias desses estávamos no Bar Luiz. O Armando apareceu por lá. Foi tomar satisfações sobre uma resenha que o Júlio escreveu sobre o livro de poemas que acabara de publicar. A resenha fazia crítica feroz ao livro. A matéria nem chegou a ser publicada, mas o Armando soube. Acabaram brigando. Foi um vexame. O Júlio acertou o poeta em cheio. Ele até registrou queixa. Tá dando o maior rolo.
- Briga por literatura? Que coisa mais salutar... - Rony meteu-se na conversa ao ouvir a história que Joana contava.
- Salutar nada. Aquilo foi um caos, um vexame.
- Joana, eu acho muito saudável que ocorra no atual momento briga por literatura. O clima anda muito morno. Não há sequer uma polêmica nos dias de hoje. Não se vê discussão conceitual. Há uma espécie de não me toques e coisa e tal. Todos parecem ser amigos. Ninguém deseja desagradar o outro. Fazem parte de uma grande confraria - disse Rony.
- Se você pensa assim, dê a mão ao Júlio. Ele fala exatamente isso.
- Taí, um cara autêntico! - elogiou Rony.
- Joana - disse Jaime -, eu só conheço o Júlio de vista, mas se ele é assim como vocês falam, deve ser alguém bastante interessante..
- Ele é legal, é interessante. Mas essas brigas não vão levar a nada. E amanhã ou depois ele nem vai ter onde trabalhar.
- Por que você pensa assim? - a pergunta foi de Jaime.
- Porque os artigos dele nunca são publicados. Ele só consegue fazer traduções.
- E ele não é um bom tradutor?
- Claro que é, mas esse ramo também está congestionado e não é bom ele arranjar confusão, ou tanta confusão como eu mesma acho.
- Aí vem mais alguém – disse Rony.
Foi à porta e a abriu. Um casal de amigos chegava. Joana os conhecia. Eles se aproximaram e cumprimentaram os três. Rony serviu a ambos duas taças de vinho e trouxe da cozinha uma tábua de queijos.
- Não se incomode – disse o rapaz.
- Obrigada – disse delicadamente a mulher segurando a taça e a levantando em sinal de saudação.
Rony, após acomodar os recém chegados, voltou a tocar no assunto anterior.
- Alguém brigar por causa de literatura, que sensacional!
- Como é? – indagou surpreso o rapaz que não ouvira a conversa desde o início.
Rony fez ao casal um pequeno resumo do que ouvira até ali.
- Vejam só, todos são amigos, todos querem agradar, querem vender os próprios livros. Não há ninguém que tenha coragem para dizer que muitos abriram mão de seus princípios para se tornarem comerciantes, no sentido mais vil que essa palavra possa ter – voltou à carga Rony.
- Comerciantes? Como assim – indagou a mulher.
- Arte é transgressão. Eu concordo com o Júlio. Não há quem discuta as inquietações estéticas ou ideológicas da atualidade - expôs Rony.
- Poucos estão interessados nisso – afirmou Jaime.
- Mas é preciso – continuou Rony -, quando faço um cenário, desejo buscar sempre o novo, mas, na maioria das vezes, não tenho liberdade para isso. Caso o faça, o diretor me pede que suavize aqui e ali, que estou inventando muito, que a peça é para o grande público e que ninguém vai entender aquilo. Conclusão: muda-se o cenário e assunto encerrado.
- Mas você pode discutir essas questões no âmbito acadêmico... - insinuou o rapaz.
- Posso, mas fica somente na discussão. O Júlio quer levar o debate para além do texto literário, para o público, para as páginas dos jornais. Nota-se, porém, que não há quem queira enfrentar seus pares. Parece que todos devem favores, uns aos outros.
- O Júlio agrediu fisicamente o Armando, machucou-o seriamente. Não posso concordar com isso – afirmou Joana.
- A ação do Júlio foi metafórica – insinuou Rony -, ele quis mostrar que a arte não pode acomodar-se. Acredito que tenha sido isso. Conheço ele, é pessoa extremamente sensível.
- Eu acho - continuou Joana - que essa discussão pode acontecer civilizadamente. Mesmo que o Júlio diga que estão todos acomodados, isso precisa acontecer de maneira escrita e em debates sobre literatura, não como ocorreu. Uma briga de bar...
- Você quer dizer que uma briga de bar macula a literatura?
- Não, Rony – assegurou Joana -, eu nem entendo muito bem sobre isso, acho que é preciso educação e cavalheirismo.
- Não sei, Joana, estamos num tempo estranho. Todos querem vender, poucos querem pensar. Será também o fim do pensamento? Pode-se notar que - continuava Rony - na história da arte sempre houve a busca pelo novo. Mas estamos, na verdade, na era da repetição, da mesmice. Dizem que a arte, de modo geral, é o único local onde a subversão é permitida. Onde a desordem é instaurada. Mas hoje há procura pelo estrelismo, pelo preciosismo, pela expressão adequada, principalmente na literatura.
- A transgressão se dá na obra, não na vida... - falou Joana.
- Não é isso, Joana. Atualmente a transgressão não se dá nem na obra. Estamos num tempo em que os escritores são objetos de culto, não as obras. Se procurarmos na atualidade por algum tipo de vanguarda, esta será dos gregos da antigüidade - concluiu com sarcasmo Rony.
- Aí eu discordo - intercedeu Jaime -, você está esquecendo os paulistas.
- Que paulistas?
- Serafim, Miramar...
- Poesia é desordem - falou em forma de bordão o rapaz que chegara com a moça; e acabou por concluir: - desde que me abram as portas dessa ordem!
Todos riram e mergulharam em mais uma garrafa de vinho.

XIII
Joana comia um sanduíche no Mc Donald’s. Não costumava freqüentar o local nem gostava dali, mas era questão de emergência. O dia transcorrera sem tropeços, já passavam das dez da noite, não queria chegar em casa com fome e descobrir que não havia coisa alguma na geladeira. Carregava na bolsa um pequeno fichário com anotações sobre o último trabalho. Fazia traduções para cinema. Isto é, traduzia diálogos que se tornavam legendas. Aquele trabalho, a uma pessoa comum, podia parecer atrativo. A ela, porém, tornara-se extremamente banal, devido ao grande número de filmes de baixa qualidade que as distribuidoras encomendavam. Tomou o resto do refrigerante já de pé, pronta para partir.
Após alguns instantes, caminhava na Nossa Senhora de Copacabana, ia para casa.
Olhou a caixa de correio, não encontrou correspondência. Quando entrou, reparou que a luz da secretária piscava. Apertou a tecla com a intenção de ouvir as mensagens e aproveitou para estirar-se no pequeno estofado, ainda de posse da bolsa e do livro que trazia em uma das mãos. Dentre os recados, não descartou o de Marcelo, velho amigo que morava em São Paulo; dizia estar no Rio a serviço da editora e que desejava marcar um encontro, queria conversar a respeito de um trabalho incumbido a ele, acreditava que poderia ajudá-lo. Joana achou interessante a possibilidade de encontrar alguém que não via de longa data. Pensou em ligar imediatamente, mas depois achou melhor esperar o dia seguinte. Ouviu outra ligação. Era silenciosa. Alguém esperara a secretária atender, permanecera longamente junto ao aparelho, mas nada gravara, ouvia-se apenas sua leve respiração. Talvez fosse Júlio, mas por que não falara?
Joana levantou-se, deixou a bolsa e o livro sobre o local onde deitara e caminhou preguiçosa até o banheiro. Abriu a torneira e pôs-se a lavar o rosto. Quando acabou, olhou-se no espelho. Sua face molhada reluzia. Algumas gotas escorriam-lhe. Tomou a pequena toalha e tocou a pele com suavidade. Sentia calor. Entrou no quarto e ligou o ar-condicionado. Enquanto esperava o local esfriar, tentou ordenar as tarefas que faria pela manhã. Lembrou que não poderia deixar de correr no calçadão. Agora que conseguira superar sua própria marca, precisava a todo custo manter-se em forma. Quando ainda perdia-se em tais pensamentos, o telefone soou. Levantou-se e o atendeu após o terceiro toque. Era Marcelo.
- Joana? Tudo bem? Tenho-te procurado.
- Tudo bem, acabei de ouvir seu recado, ia ligar para você amanhã. Achei que estava tarde.
- Tens trabalhado muito?
- Mais ou menos. E a vida em São Paulo?
- Não é como aqui no Rio, mas dá para se viver.
- O que você veio fazer aqui na cidade?
- É sobre isso que eu desejo-te falar. Trabalho para uma editora. Preciso escrever sobre a cidade. Como estudamos juntos, sempre fomos amigos, resolvi procurar-te. És a pessoa certa para me dar algumas informações.
- Olha que São Paulo é a terra do dinheiro, vou cobrar caro, viu?
- Há, há, Joana, não sabia que te tinhas tornado consultora.
- Não é o que você precisa?
- É sério o que estás falando?
- Brincadeira. A gente se encontra, você marca e conversamos.
Marcaram encontro para o dia seguinte, depois das nove da noite. O local era a Letras e Expressões, em Ipanema. Marcelo ficou satisfeito pelo encontro se dar numa livraria. Sempre admirara os modos cultos dos cariocas. Gostam desses lugares para conversar.
Joana, depois de desligar, deitou-se e apoiou a cabeça na almofada que ficava sobre a cama. Tomou nas mãos o livro de poemas que carregara durante boa parte do dia. O autor era um amigo. O livro fora lançado há duas semanas. Voltou a reler alguns poemas. Júlio lhe dissera que ali não havia nada de novo, apesar de os poemas serem bem construídos e apresentar imagens fortes. O importante é que ela, Joana, gostara. Às vezes, elogiavam algum livro novo, ela lia e não conseguia concordar com as opiniões gerais. Aquele, porém, segundo ela, era bom, e despertava em cheio seus sentimentos.
***
A Visconde de Pirajá à noite é uma rua interessante. O tráfego é intenso, mas as calçadas largas permitem o caminhar despreocupado e a apreciação das vitrines das diversas lojas. Dentre o comércio local, encontram-se as livrarias. São quatro ou cinco numa distância não muito longa. E sempre bem freqüentadas Dizem que o público leitor carioca se encontra na zona sul da cidade e que Ipanema e Leblon são bairros onde a compra de livros acontece quase como no primeiro mundo. Segundo os habitantes locais, os dois bairros são de primeiro mundo. O amigo paulista já folheara alguns livros e revistas, quando Joana cruzou a porta da livraria. Uma quantidade grande de leitores e curiosos compunham a cena.
Joana beijou Marcelo e falou:
- Puxa, você está diferente, quase não o reconheço.
- E tu continuas linda - ele aproveitou para elogiá-la.
Ela cumprimentou alguns funcionários, que eram seus velhos conhecidos, e apontou a escada. Foram para o café, no segundo andar. Marcelo não conhecia o local e parecia admirado.
- Em São Paulo, vocês devem ter locais semelhantes ou melhores, me surpreende que você esteja tão interessado assim.
- Lá há lugares bons, mas somente vocês, com esse jeito tão peculiar, conseguem dar colorido todo especial que não existe em outros locais.
- Veja bem, Marcelo, você não veio aqui pra me sacanear...
Ele ainda era jovem - apesar de estar em torno dos quarenta anos e ser gordo. Olhou para Joana como que surpreso e ofendido:
- Claro que não, nunca falei tão sério. E não me lembro desta livraria na época em que vivi aqui na cidade.
- Está bem, peço desculpas - disse Joana.
Marcelo olhou o cardápio demoradamente. Parecia deslumbrado. Mostrava-se muito contagiado pelos pequenos arranjos alimentares enumerados naquelas páginas. Olhou a carta de bebidas.
- Servem meia garra de vinho, que bom!
Chamou o garçom e disse o que desejava. Joana pediu café com leite e algumas torradas.
- Fala, então, Marcelo. Qual é a história?
- Tu sabes, não é mesmo? Tenho dois livros publicados. A editora quer lançar uma coletânea. Obra de encomenda, vários autores. Recebi a incumbência de escrever um conto ambientado aqui na cidade.
- É mesmo? Que legal! Então você veio com tudo pago pela editora?
- Vim.
- Está no Othon ou no Copacabana Palace?
- Que isso? Não dá pra tanto. Estou num hotel pequeno, no Flamengo. Nada de gastos excessivos, não é coisa de governo.
- Há, há! Essa é boa, coisa de governo, gostei. Realmente, o governo gasta demais.
- Acho que tu podes-me ajudar. Não conheço a cidade o suficiente para escrever uma história ambientada aqui. Na época da faculdade, nós saíamos muito, lembras? Mas o tempo passou, e acho que, naquela época, freqüentávamos sempre os mesmos lugares, não?
- Sobre o que você deseja escrever?
- Ainda não sei ao certo. O Rio é um local fascinante para muitas histórias.
- Espero que seja uma história legal.
- Vai ser, com certeza.
- Olha, Marcelo, nada de traficantes e tiroteios. Aqui já não agüentamos mais esse assunto.
- Queres-me ditar o tema? Preciso de ajuda apenas a respeito do ambiente. O crime e a violência é a realidade, não?
- Nem tanto. Acho que para escrever sobre isso, você poderia ter ficado em São Paulo.
- Mas o editor quer uma história ambientada no Rio. Sobre o assunto, pensei em outra coisa.
O garçom chegara com o vinho. Abriu a garrafa, colocou uma pequena quantidade na taça. Marcelo experimentou e aprovou a bebida. O garçom completou a taça.
- Na verdade, eu desejo escrever uma história de amor.
- De amor?
- Isso, de amor.
- Nada de tiros nem cocaína?
- Não.
- Então concordo em ajudar-te – forçou Joana a pronúncia, o que não passou despercebido ao escritor.
- Você anda romântica, hein? Pensei que vocês daqui se tivessem tornado intelectuais em excesso.
- Que nada, Marcelo. Nunca se amou tanto nesta cidade. Todos, de uma forma ou de outra, amam. E amam muito!

XIV
- Júlio, espere aí!
Joana jogava vôlei na praia, pediu para que alguém ocupasse seu lugar e correu até o calçadão, onde eu andava.
- Você hoje não pode deixar de encontrar comigo, por favor - foi logo dizendo.
- Assim, em cima da hora, hoje? Não sei se vai dar.
- Júlio, é importante. Tem um amigo meu aqui no Rio. Ele é de São Paulo. Estudou comigo. Acho que já falei com você sobre ele. Veio ao Rio escrever um conto. É escritor.
- Porra, Joana, escritor? Já não agüento esses caras.
- Mas ele é legal. Quer que a gente ouça o conto que ele escreveu. É para a 34, vai sair numa coletânea. Você certamente já leu algum livro dele. Encontra comigo, vai? Será uma noite boa.
- E onde você marcou?
- Na Letras e Expressões, de Ipanema, ele adorou o lugar.
Aproveitei para olhar Joana da cabeça aos pés. Ela vestia apenas um minúsculo biquíni. Estava mais bonita do que nunca. Voltei-me novamente a ela e afirmei:
- Vou.
- É, seu engraçadinho! Já sei quais são suas intenções, mas não tem problema, você sabe que gosto de você. Depois, se você quiser, pode ir lá pra casa. Mas nada de bebedeira, viu?
- Você sabe que eu não bebo.
- Sei, não bebe outra coisa além de genebra gelada.
Rimos. Ela estava toda suada e ainda ofegante. Mesmo assim a abracei e beijei-lhe a boca. Ela permaneceu agarrada a mim durante alguns segundos. Quando me soltou, sorriu e passou uma das mãos na minha cabeça. Voltou correndo para junto da rede.
- Joana, a que horas? - gritei.
- Me pega às nove.
***
Chegamos adiantados ao café da livraria. Pedi um expresso, e ela, café com leite. Era quinta-feira, mesmo assim, àquela hora, quase todas as outras mesas mantinham-se ocupadas. Marcelo não demorou a chegar. Joana levantou-se e o beijou no rosto. A seguir, apresentou-me.
- Fico contente por saber que alguém de São Paulo vem ao Rio escrever sobre a cidade - eu disse amistosamente.
- O prazer é todo meu. A estadia nesta cidade foi muito boa e interessante. Joana me levou a muitos lugares e creio que consegui cumprir minha tarefa.
- Joana me disse que você vai ler o conto para nós.
- Vou, mas me deixa beber alguma coisa. Preciso tomar coragem.
- Já li um de seus livros - falou Joana -, creio que você nada teme. Parece não dever nada a ninguém.
- Calma, minha querida, literatura é literatura, a vida real é um pouco mais complexa.
- Se você disser que o castelo é de Hamlet, ele se torna fabuloso - interferi sem que Joana entendesse.
Marcelo riu. Entendeu a pilhéria. Na verdade, eu não o dissera em tom de deboche. O escritor aproveitou a proximidade do garçom para pedir uma taça de vinho.
- Você vai embora amanhã? Por que não fica mais um pouco? - perguntou Joana.
- Vontade eu tenho, mas não posso. Pretendo voltar ao Rio assim que tiver uma folga. Tenho compromisso depois de amanhã em São Paulo.
- Um escritor atualmente tem muitos compromissos... - atalhei.
- Exatamente. Vocês sabem que vivo de minha profissão. Sempre há alguma encomenda da editora. Apreciação de originais, resenhas para jornais, palestra em alguma universidade.
- A ocupação é tanta que quase não há tempo para escrever, não é mesmo? - insisti.
- Exato, o escritor atual precisa ter boa organização, caso contrário ocorre exatamente isso.
- Eu acho que sempre foi assim - interferiu Joana. - Já conversei sobre isso com Júlio várias vezes. O escritor recluso, que vive produzindo histórias fantásticas como se fosse um ser misterioso, não mais existe. O profissional precisa aproveitar todas as frentes.
- Sabe, Marcelo - reiniciei -, dizem que aqui no Rio, atualmente, há um escritor em cada esquina.
Marcelo riu. Reparou que o garçom chegava com a taça de vinho. Depois de colocada sobre a mesa, ele a levantou saudando-nos e tomou o primeiro gole. Sua face demonstrou aprovação pela bebida.
Acabei de tomar o café. Pedi uma água com gás e dei prosseguimento ao que falara:
- É verdade. Um escritor em cada esquina. Você está rindo? Quando nós sairmos daqui, podemos fazer uma aposta. Vamos até a próxima transversal, perguntemos a no mínimo três pessoas, logo descobriremos outro escritor, você verá.
Marcelo ria com gosto.
- Vocês cariocas são muito engraçados. Tudo é motivo para piada.
- Já conheço a continuação do que Júlio está falando. Por favor, deixa que eu termino - agora era a vez de Joana que falava com ar divertido. - Como é mesmo? Ah, já sei: Em cada esquina há um escritor, mas estão todos embriagados, nos bares. Repare, Marcelo, aqui no Rio quase todos os bares ficam nas esquinas; ficcionistas e poetas, completamente bêbados, porque só há escritores, não há leitores. Não é isso, Júlio, ou me enganei?
Rimos os três intensamente.
- Engraçado, sempre me disseram lá em São Paulo que no Rio há um bom público leitor.
- E sempre me disseram que o que se fala em São Paulo não deve ser ouvido aqui no Rio... - pilheriei mais uma vez.
Marcelo achava a conversa engraçada. Voltou-se a Joana e falou:
- Creio que se tivesse conhecido seu amigo antes, escreveria sobre outra coisa, ele é muito divertido.
Joana olhou-me com ar de reprovação.
- Vamos agora ouvir o que nosso amigo escreveu. Olha que deve ser coisa boa, muito especial - Joana tentava mudar a direção da conversa.
Enchi o copo com o restante da pequena garrafa de água mineral, tomei um longo gole, depois falei:
- O nosso amigo Marcelo não vai levar a mal o que acabamos de conversar, não é mesmo? Ele tem razão, nós cariocas gostamos de brincar, de nos divertir e vez ou outra lemos também alguma coisa!
Não houve jeito de esconder outra sonora gargalhada. Dessa vez também por parte de Joana.
Marcelo abriu a pequena pasta de couro, tirou algumas folhas impressas por computador e disse:
- Chegou o grande momento, pessoal, desculpas antecipadas, vou ler a história prometida.

XV
Talvez uma representação
Os degraus de madeira da escada antiga rangiam ruidosamente sob nossos passos. À meia luz, parecíamos entrar em um túnel misterioso e fantasmagórico. O odor de mofo misturado com excreções de sexo produzia uma volúpia lúgubre. Às vezes, uma das mulheres cruzava comigo, ainda ajeitando-se. Vinha seguida do último cliente. Quem subia tinha que se encostar e roçar as nádegas nas paredes úmidas, enquanto dava passagem a quem descia. Chegávamos a nos tocar frente a frente. Quando galgava o último degrau, tive de dividir a passagem com Isaura. Ela chegou-me ao ouvido e sussurrou raivosamente: - o filho da puta levou minha calcinha.
O que me intrigava naqueles quartos eram as manchas e riscos traçados pelo envelhecimento da pintura nas paredes. Enquanto me despia, olhava com desconfiança aquelas manchas. Pareciam possuir algum significado antigo, alguma marca codificada que tentava transmitir mensagem difícil de ser decifrada.
Ao voltar ao passeio, após a saída do cliente, reparei a paisagem escura. O vulto dos antigos sobrados acentuava o aspecto decadente daquele lugar. Um automóvel passou lentamente, tentei divisar a fisionomia que vinha ao volante, mas me deparei com o rosto de uma mulher. Pensei conhecê-la de outrora, mas logo a imagem dissipou-se, precisava fazer mais um programa para ganhar a noite e mulheres não me dariam lucro.
Em torno de três da madrugada, divisei com uma desconhecida. Meu destino naquela noite seria as mulheres? Ela não parecia ser uma prostituta. Era estranha no local. Eu estava sozinha, as outras ou se haviam dispersado ou ainda tinham clientes. Aproximou-se e me pediu um favor:
- Estou fugida de Copacabana, não posso aparecer por lá, querem me matar.
- Mas o que você aprontou?
- É uma história complicada.
- O que você quer aqui?
Preciso de ajuda para um ponto. Sei que as meninas não gostam de gente nova, mas não sou nova. Preciso apenas ficar um tempo por aqui.
- Não sei se posso ajudar. Aqui já tem gente demais. As outras não vão gostar.
- É só por uns dias, depois me viro.
- Vou ver - ainda resisti.
Eu não acreditava em ninguém, e além de tudo, a mulher, se fugia, nos poderia trazer complicações.
- Eu te pago - ainda me falou - você não vai se arrepender.
Ela vestia uma saia preta muito curta. Desconfiei. Aquele tipo de roupa não era comum ali. As prostitutas já não se vestem assim. No passado, talvez, mas agora o costume não era pouca roupa. Ainda perguntei:
- Com essa roupa você está mais para travesti, olhe lá, hein?
- Quer que eu levante a saia?
- Acredito em você
Ela não trazia blusa, mas um top minúsculo. Nas pernas, as botas negras subiam até os joelhos. Quando virou, ainda observei a saia curta e semi transparente, arrisquei:
- Há homens que te batem se te descobrem sem calcinha...
- Quem está sem calcinha? - ainda perguntou.
Acreditei e acabei por ajudá-la, ao menos naquela noite. Ainda mencionei:
- Pelo andar da hora, acho que você vai ter que deixar pra outro dia.
Ao acabar de pronunciar aquelas palavras, um automóvel antigo parou junto a nós.
- Vai - acenei a ela.
Hesitou a princípio, mas acabou encostando-se à janela do carro.
Depois disso, enquanto o homem estacionava, ela perguntou-me:
- Como é o preço do hotel?
Vou subir antes. Eles não conhecem você. O pagamento é adiantado, vinte cada vez. Eles vão lhe dar a chave, você entra direto. Mais uma coisa.
- Qual?
Não deixe o homem perceber que é a primeira vez que você faz programa aqui.
Subi na frente e acertei a situação com o funcionário da recepção. Ele só me pediu que eu evitasse complicações, já tinha problemas demais. Quando a recém chegada passou seguida do cliente, uma chave já esperava por eles sobre o balcão. Ela a apanhou e prosseguiu. Ainda tive tempo de sussurrar:
- É o último quarto à esquerda.
Quando voltou, encontrou-me encostada à direita da entrada do hotel. O homem seguiu em frente sem virar-se, entrou mecanicamente no automóvel que deixara sobre a calçada e partiu anônimo. Eu fumava. Dei mais um trago, enquanto ela se chegou a mim. Também acendeu um cigarro, sorveu-o algumas vezes, tinha o olhar distante e estava voltada em direção à rua.
- Vamos ver se aparece mais alguém - ainda falou.
- Você não vai querer outra moleza dessa, não é? O próximo deixa comigo.
Ainda parou um fusca antigo. Vinha com dois sujeitos. Conversamos. Eles regateavam. Queriam sexo quase de graça. Acabaram partindo.
Deixei a ela ainda o último que apareceu. Nunca fui pelas aparências, mas a fisionomia dele me embrulhou o estômago.
Eles subiram. Demoraram. A demora me causou certa apreensão. Quando escutei passos na escada, me senti aliviada. Era ela. Vinha seguida do homem. Aproximou-se de mim, enquanto ele deixava o local sem olhar para trás. Reparei que ela chorara. Nada me falou.
Perto do amanhecer, ela aproximou-se e segurou-me pelo braço. Agradeceu. Ainda tentou me dar um beijo. Quase desviei o rosto, mas acabei por aceitá-lo. Lembrei que não lhe perguntara o nome. Um táxi subitamente parou. Ela entrou e partiu.
Alguns minutos depois, também decidi ir embora. Apressei-me, da mesma forma, por um táxi. E quando já ia longe, sentada no banco traseiro, reparei minha bolsa aberta. "Filha da puta, deve ter me roubado", foi o que pensei num primeiro impulso. Olhei apressada em meio à escuridão, tentava me dar conta do que perdera. Minha surpresa, porém, foi outra. Encontrei, bastante dobrado e amassado, talvez todo o dinheiro que ela ganhara nos dois programas. Era um valor maior do que eu teria conseguido com os mesmos homens.
Até hoje não entendi aquele fim de madrugada. Também nunca mais a encontrei.

XVI
O Espaço Unibanco de Cinema não estava muito freqüentado naquela tarde de quarta-feira. Silvia acabara de ver um filme. Tinha um encontro com Júlio, mas ainda era cedo. Tomou um expresso, entre senhoras que conversavam nas outras mesas, e depois entrou no pequeno sebo. Dirigiu-se à prateleiras onde se lia: ficção estrangeira. Tomou nas mãos alguns volumes e se surpreendeu com um romance de Durrel, que lera recentemente. Segurou-o, olhou-o com carinho, chegou a folheá-lo. Deparou-se com um nome de mulher na folha de rosto. Alguém que, no passado, possuíra o livro. Reparou a data: 76. O que ela, Silvia, fazia em 76? Não conseguiu lembrar. Fazia tanto tempo... Depois avistou Melville: Moby Dick. Lera-o aos treze anos. Num canto havia Henry Miller: Sexus. Livro antes difícil, proibido. Agora estava ali, a seu alcance e por preço razoável. Lembrou que havia nas livrarias uma tradução recente, por preço exorbitante. Mais alguns passos e pôde percorrer com os olhos as estantes de teatro. Eram duas apenas. Avistou um Teatro completo, de Gonçalves Dias, depois, um texto de Arthur Azevedo. Pensou em adquirir Qorpo Santo, caso o encontrasse. Não conseguiu. Qorpo Santo era difícil nas livrarias sebo. Ouviu som de modinhas antigas, carnaval de outros tempos. Também vendiam discos e CDs usados. Na banqueta próxima à entrada, diante de um grande cartaz de Marilyn Monroe, viam-se os livros mais recentes e consequentemente mais caros. Havia a biografia de Freud, de Gay. Lacan, com seus Escritos, se enfileirava junto a livros de filosofia e sociologia. A biografia de Hitler destoava naquela série de obras em que o pensamento resistia bravamente a qualquer tipo de intempérie. Virou-se, deu-se com uma foto antiga de James Dean. Ele sorria, sua expressão juvenil desafiava todo o porvir. E, quando voltou-se para sair, reparou Ecce homo, de Nietzche.
Retornou a uma das mesas do bistrô. Grandes cartazes de filmes que estavam em exibição e daqueles que, em breve, entrariam no circuito coloriam todo o Espaço. Fazia sucesso um filme francês, filmado na Geórgia, ex-soviética, falado em russo. Anunciava-se, entre outros, um filme alemão, falado em turco. Quando sentou-se junto a uma mesa vazia, reparou que Júlio vinha a seu encontro. Ele trazia uma pequena xícara de café. Cumprimentou-a. Perguntou se ela queria. Aceitou. Ele voltou ao balcão para pedir outra, desta vez para si.
- Você viu alguma filme? – perguntou voltando com a segunda xícara.
- Vi.
- Qual?
- O da Lilia.
- Ah, sei, parece que é bom o filme. É sueco.
- Vi, mas não gostei. O assunto é muito pesado. Só gostei das músicas.
- O filme está bem recebido pela crítica. – afirmou ele.
- Sei que algumas pessoas o acharam bom, mas, para mim, no atual momento, não me fez bem. Vim ao cinema para me distrair e acabei vendo algo que me deprimiu.
Júlio olhou para ela e reparou que suas pálpebras estavam escuras. Parecia ter olheiras.
- Você não tem dormido? – perguntou.
- Mais ou menos.
- Sabe, tenho pensado em você, podíamos ficar mais juntos, acho que conseguiríamos viver juntos.
- Não sei – respondeu -, tenho muitas dúvidas sobre isso, acho que não me acostumo.
Um casal de idosos se aproximava. O homem, carregando uma grande bandeja com sanduíche, tigela de salada, suco e café com leite tentava avistar uma mesa vaga. A mulher apontou a do lado de Silvia e Júlio. O senhor, quase equilibrando a bandeja, passou à direita deles, com muito cuidado. Não queria esbarrar em alguém nem entornar o que carregava. Júlio acompanhou todos os movimentos do homem, desde a expressão facial até os pequenos tremores dos braços. Quando pousou a bandeja sobre a mesa, Silvia também olhava naquela direção e, ao voltar a si, seus olhos encontraram os de Júlio.
- Os idosos não deixam de se divertir – reparou ele.
Silvia não respondeu, mas assentiu com um pequeno sorriso.
- O que vamos fazer hoje? – acabou por perguntar a ela.
- Não sei, você tem alguma idéia?
- Ao cinema você já foi, não vai querer ir de novo, não é mesmo?
- Claro que não.
- Então vamos jantar em algum lugar?
- Não estou com fome, e ainda é cedo.
Ia responder que o convite era para mais tarde, porém nada falou. Observou que ela pegava o pequeno óculos na bolsa. Colocou-o no rosto e começou a folhear o jornal que apanhara junto ao balcão de informações quando entrara.
- Interessantes esses jornais, sempre há algo sobre poesia.
Ele olhou de onde estava.
- É um jornal cultural, sai uma vez por mês, já li esse número.
Continuou a folheá-lo até que leu um poema em voz alta. Júlio pareceu aprová-lo.
- Estou cansada, ando deprimida, não tenho vontade de sair ultimamente, acho que estou ficando velha – disse, sorrindo no final da frase.
- Você não parece uma pessoa deprimida. Gosta tanto de música. Quando vejo você ouvindo algum CD, até desejo sentir a mesma alegria que você sente, mas não consigo.
- É, realmente, gosto muito de música. Talvez seja uma das poucas coisas que me colocam de pé. Quer dizer, às vezes também escuto meus CDs deitada - nesse ponto deixou transparecer um breve sorriso.
- Silvia, sei que estou batendo na mesma tecla, mas gostaria de morar com você, ou você morar comigo, sei lá...
- Não sei, Júlio, mas acho que não agüento. Você me conhece.
- Você não quer ir até lá em casa? Estou trabalhando numa tradução nova. Queria ler para você.
- Vamos, então.
- Mais tarde a gente sai para jantar.
Os dois se levantaram e foram andando de mãos dadas pela Voluntários. Atravessaram a pequena rua situada ao lado da estação do metrô. Júlio não viera de carro. Desceram as escadas e esperaram na plataforma a composição que vinha em direção a Copacabana.

XVII
São onze da noite, quarta-feira. Não acho Sílvia em casa. Não há como saber onde ela se encontra. Resolvo ir até o calçadão. Logo ao chegar, avisto algumas pessoas caminhando, apesar da hora. Nos quiosques alguns bebem, outros apenas conversam. Faz calor. Tomo a direção do Posto 6. Aprecio a noite, que está clara. Lembro as palavras de um amigo: "Copacabana é uma baleia branca, que durante o dia esguicha água e diverte as crianças; mas, à noite, nos consome a todos, sorrateira e sedutora". Quando alcanço o trecho que fica em torno do Othon, ouço alguém me chamar. Olho para uma das mesas ao lado esquerdo do segundo quiosque após o hotel. É Mirna. Paro e me dirijo a ela.
- Quanto tempo, Júlio! Você sumiu.
- Eu? Estou sempre por aqui. Você é que desapareceu.
- E como vão as coisas?
- Quer saber com sinceridade? - pergunto sem esperar resposta. - Por um lado vão bem, mas por outro há alguns problemas.
- Então você está melhor do que eu! - Mirna responde emendando um sorriso e, forçando a voz, tenta imitar-me: - Por um lado vão bem , mas por outro... e desata numa sonora gargalhada. -Você parece executivo de empresa estrangeira.
- Você continua alegre e sacana como sempre - atalho.
Olho em seus olhos. O cabelo dela é curto. Faz estilo. Suas invenções dão certo.
- Já que a coisa não vai tão mal assim, que tal fazermos um programa? - pergunta.
Sento ao lado dela. O empregado do quiosque me pergunta se desejo alguma coisa. Peço uma garrafa de água com gás.
- Você ainda com essa mania de água com gás...
Não respondo.
- E aí, vai ficar ao meu lado para fazermos o programa ou vai me empatar?
Outra vez explode em risos. Mirna é uma artista. Ou seria. Sempre senti prazer em estar com ela. Respondo:
- Você me chamou como amigo ou cliente?
Mirna é uma mulher que vive de encontros profissionais. Não tem ponto fixo. Não paga proteção, certa vez me segredou. Não pode ficar muito tempo no mesmo lugar devido às prostitutas da área e devido à presença da polícia. A polícia tolera a prostituição, mas não as putas independentes.
- Vou fazer um desconto pra você. Você é meu amigo.
- Não sei se quero um programa, mas, para não lhe prejudicar, eu pago.
- O que você quer, então? Conversar? Conversa não leva a nada. Tudo por uma boa trepada.
Sorrio de suas palavras e de sua expressão debochada.
- Você sabe viver, não é mesmo?
- Nem tanto, nem tanto, - responde.
- Onde você está morando?
- É segredo.
- E onde você faz os programas?
- Certamente não é lá em casa. O meu prédio é familiar.
Sorrio novamente, dessa vez junto com ela.
- Você está muito bonita.
- Obrigada. Se você quiser, fico ainda mais linda. Basta ir comigo ao Rio Sul e deixar sua carteira ou cartão de crédito durante alguns minutos na minha mão.
- Qualquer dia faço isso. Chamo você e vamos até lá. Enquanto tomo café, deixo minha carteira com você.
- Espero que ela não esteja vazia...
- Claro que não vai estar, sou um homem de palavra.
- Muitos são. São homens de muitas palavras...
- Não nesse sentido. Se fosse mais cedo iríamos hoje mesmo...
- Acredito. Só não vou marcar porque creio nas conjunções astrais. Qualquer dia desses nos encontramos e vamos até lá.
- O que você já bebeu até agora?
- Água de coco.
- Peça o que quiser, Mirna, é por minha conta.
- Não bebo em serviço, e também não estou com vontade. Você sabe que faço tudo que tenho vontade. Compro tudo que desejo. Sempre dou um jeito. Mas agora não quero nada. Estou contente por ter encontrado você. E digo mais, não precisa me pagar nada. Vale a nossa amizade. Vamos dar uma volta. Mesmo que você me leve pra cama, hoje não precisa pagar. Mas vamos andar um pouco.
Mirna se levanta, dirijo-me ao empregado do quiosque e pago a conta. Começamos a caminhar juntos, ainda em direção ao Posto 6. Ela me dá o braço e se aproxima mais um pouco.
- Sabe de uma coisa? Dinheiro resolve qualquer problema - continua -, basta você entrar em boas lojas, comprar coisas bonitas, que tudo se resolve. Não há nada melhor do que coisas bonitas. Se todos pudessem praticar isso, não precisariam de remédios, drogas ou terapia. Aliás, esta última está muito na moda ultimamente. Tenho um cliente que volta e meia está em depressão. Vai à terapia não sei quantas vezes por semana. Já contou a mesma história para o médico ou sei lá pra quem umas duzentas vezes. Gasta uma fortuna. Eu disse então a ele: "pega esse dinheiro todo que você gasta em terapia e comece a comprar tudo que você gosta. Garanto que em poucos dias você estará bom, estará curado." Mas o infeliz não acredita. Às vezes paga para sair comigo, mas acaba só conversando. Eu disse a ele na última vez que o vi: "vou tirar diploma de terapeuta, acho que vou me dar melhor do que na cama". Ele ri e continua contar suas pirações.
- E o que você faz?
- Nada. Absolutamente nada. A única coisa que falo é o que acabei de contar.
Mirna é mais velha do que eu. Dá para notar. Mas tem seu charme. Está de salto alto, caminha, porém, com muita naturalidade. Quando se expande em algum momento da conversa e ri, encosta o rosto ao meu. É uma pessoa feliz. Se pergunto algo sobre sua vida pessoal, ela desconversa.
- Por que você está me perguntando isso? Não está feliz por estarmos juntos neste momento? - diz sem esperar resposta.
Em certo momento, falo:
- Precisamos nos encontrar mais.
- Você já vai embora? - pergunta.
- Não, claro que não.
- Então por que está falando isso? Vamos aproveitar este momento. Nem sabemos se estaremos vivos amanhã.
Talvez seja isso que a faça mulher vibrante e feliz. Ela vive o momento. Vive no fio da navalha. Enquanto continua feliz a meu lado, penso que estarei só daqui a alguns instantes, penso que jamais terei a mesma alegria de Mirna, penso no abismo intransponível que há entre os seres humanos. É impossível imaginar esta mulher infeliz, mesmo sozinha. A alegria que possui parece envolvê-la durante todo o tempo. E ela não tem filosofia alguma, ou, quem sabe?, tem toda a filosofia do mundo.

XVIII
- Mirna, foi bom ter ficado esse tempo todo com você.
- O prazer foi meu.
- Você tem certeza de que não precisa de nada?
- Não, meu amor.
- Não mesmo?
- Sou uma mulher rica. Tenho tudo quanto quero, não tenho nada que não quero.
- Você quase recitou o Manuel.
- Que Manuel?
- O Bandeira.
- Júlio, esse negócio de poesia não é comigo.
- Você é poesia desde Baudelaire, Mirna. Mas deixemos isso de lado. Quer dizer então que nada falta a você?
- Nada, absolutamente nada.
- Mas você não acha que é a falta que move o ser humano?
- O quê?
- É mais ou menos o seguinte: se lhe falta amor, você vai em busca dele...
- Quem disse que me falta amor? Tenho todo o amor do mundo dentro de mim.
Mirna me abraça e permanece muito tempo assim. Depois me beija. Lembro-me de ter ouvido de alguém que as prostitutas não beijam. Ledo engano. Mirna me beija. Na boca. E um beijo longo.

XIX
- Alô, Silvia?
- Oi, quem é?
- Joana.
- Oi, Joana, tudo bem?
- Mais ou menos. Você soube do Júlio?
- O que houve com ele?
- Foi preso.
- Preso? O que foi que ele fez?
- Nada, ou melhor, foi por causa daquela briga com o Armando.
- Armando? Que Armando?
- O Armando, poeta. Você não soube? Foi há algumas semanas. Eu estava com o Júlio naquela noite, no Bar Luiz. O motivo foi a resenha do Júlio sobre o último livro do Armando. A matéria nem chegou a ser publicada, mas o Armando teve acesso ao conteúdo. Logo que entrou no bar fez uma provocação. O Júlio não quis saber de conversa. Partiu pra briga. O Armando registrou queixa, alega que está com seqüelas.
- Ai, meu deus, o Júlio com essas histórias. Eu sabia que isso não ia acabar bem. Briga por literatura. É um absurdo! E agora, o que vamos fazer?
- Eu estou indo pra delegacia. Há um pessoal amigo que já foi pra lá. Você não quer ir comigo?
- Vou.
***
- Vamos tomar este táxi. Por favor, o senhor nos leva a este endereço?
- Pois não.
- Silvia, os jornais vão estampar o escândalo amanhã. Tenho alguns amigos jornalistas que me avisaram logo que souberam da prisão.
- Ai, meu deus, prisão, veja se isso é possível?
- Isso vai ajudar a vender o livro do Armando. Era tudo que o Júlio não queria. Por outro lado, existe algo positivo. Vão publicar, ao mesmo tempo, a resenha do Júlio. O Paulo da editora R. telefonou de São Paulo. Estará de volta ao Rio, à noite. Quer falar com o Júlio. Colocou os advogados da editora à disposição dele. Quer que ele escreva um livro sobre todo esse episódio. Garante a publicação.
- O Júlio vai gostar disso, mas não vai escrever uma linha, eu o conheço.
- Vai sim, Sílvia, ele tem talento para isso, vamos convencê-lo. E você tem muita influência sobre ele.

XX
A avenida Rio Branco é movimentada às doze horas. Vários veículos entram na Araújo Porto Alegre, mas logo em seguida encontram pequena retenção. Tento atravessar naquele trecho. Consultei há pouco alguns arquivos na Biblioteca Nacional e me encaminho à biblioteca do CCBB, na Primeiro de Março. Sigo em direção ao sinal luminoso da Araújo com a Rua México. Ali é mais fácil e aconselhável atravessar. À luz vermelha, os carros param antes da faixa e cruzo a rua junto a mais de duas dezenas de pessoas. Percorro a calçada que margeia o Museu Nacional de Belas Artes. Não deixo de apreciá-lo, embora pelos fundos. Gosto do prédio e do lugar. Após alguns metros, já alcanço a Almirante Barroso.
Agora, o número de pessoas é maior. Homens de terno e mulheres em roupas clássicas desfilam apressadamente. No centro, é difícil encontrar um amigo. Todos estão embotados. Olham de cima, sem dar importância alguma a quem quer que seja. Marcham sobre você como se marchassem sobre o inimigo. Pode-se dizer que não há quem encare alguém, e quando isto ao acaso acontece, a fisionomia é de suspeição. Não há doçura nem poesia nos olhares que transitam pelo centro do Rio.
Decido atravessar aquela praça - não tenho melhor nome para o local - onde há o prédio que um dia foi sede do Banco do Estado. Entro na Rodrigo Silva. O balcão de café do Gaúcho está cheio de gente. Ali servem um dos melhores cafezinhos da cidade. E do tradicional. Atravesso a Assembléia. Entro na Sete de Setembro e depois dobro a primeira rua, à esquerda. Não é bem uma rua, é uma travessa e tem o nome de Travessa do Ouvidor.
A vitrine da Livraria da Travessa está linda. Predominam capas quase da mesma cor. Os livros abordam música e boêmia carioca. Não posso deixar de me lembrar de Júlio. Ele e seu embate constante: "o livro se tornou um produto como outro qualquer. E caro". Não resisto. Entro.
A primeira bancada comporta livros de literatura. Ou como diz Júlio: literatura de hoje, não se sabe se de amanhã. Mas como as capas são bonitas, observo. O design e as artes gráficas progrediram muito. Há capas de todos os tipos. Muitas ilustradas; outras, fruto de idéias geniais. Sentimos prazer em tocá-las, manusear os livros. A última coisa que desejamos é lê-los. Podem não ser tão bons como parecem. As pessoas que os arrumam também devem ser especializadas. Provavelmente estudaram em algum lugar a arte de arrumar livros em livrarias. Assim nós, que gostamos de livros e vez ou outra os compramos, podemos vê-los envolto em uma aura toda especial, que muitas vezes não mais existe quando saem dali.
Aproximo-me e tomo nas mãos Ulisses, de Joyce. Não se encontra na bancada principal, mas numa ao lado, acompanhado de Os dublinenses e Retrato do artista quando jovem. Joyce não precisa da bancada principal, tem um mundo só para ele.
Lembro-me de Júlio novamente. Certa vez disse: "a literatura brasileira não é original". Tal comentário surgiu porque projeto de pesquisa de um amigo dele, que tentava ingressar no doutorado de universidade pública, foi recusado por falta de originalidade, segundo a banca examinadora. Júlio gerou uma discussão absurda; disseram-lhe: "como você pode dizer tal coisa? Olhe quantos autores, você é analfabeto? E logo alguém que trabalha com traduções. Veja Guimarães Rosa, Clarice, Machado, Graciliano, Érico, e os poetas? Esqueceu de Bandeira, de Drummond, e de Cabral? Ferreira escreve até hoje, e há uma nova geração de prosadores e poetas a cada cinco anos". Respondeu: "a literatura brasileira não é original no sentido de dar origem, isto é, no sentido gerador. Ela não deixou sequer uma marcar na cultura universal. Esta pode existir tranqüila, sem a nossa presença. Mas se vocês querem um traço de nossa literatura - continuou -, apenas um traço dela, terão de recorrer a alguém desagradável a vocês... Terão de ir atrás do velho Nelson". E lá está ele, numa estante ao lado, com seu Teatro completo. Meu amigo adora uma polêmica. Mas aquela foi demais. Granjeou adversários em todas as frentes. "Júlio, como você pode ter dito uma coisa dessas? Há uma infinidade de escritores, academias, universidades, doutores, você está louco?". Ele me respondeu: "Joana, você eu sei que me compreende. Por acaso os escritores brasileiros influenciaram ou influenciam os de outras línguas? Veja apenas como exemplo Cortázar, Borges, Garcia Marques, Rulfo, Faulkner. É possível uma literatura ter deixado uma marca, ter influenciado autores de outras culturas, quando o maior escritor ainda é Machado de Assis, quase cem anos após sua morte?". "E Guimarães e Clarice?", indaguei. Ele me respondeu: "e Joyce?, e Virgínia?". "Joana, seu amigo é louco, é louco ou quer aparecer". Todos me disseram isso. Unanimidade. Júlio, então, teve de recorrer mais uma vez ao velho Nelson: "toda unanimidade...". Acho Júlio uma pessoa coerente. Ele gosta dos escritores brasileiros. Gosta muito. Mas conhece nossos limites. Certa vez falou que Guimarães Rosa era autor de um romance só. "E os contos?". "Contos?", indagou. "Contos, todos temos alguns, guardados no fundo de alguma gaveta". Júlio é divertido. Gosto dele. Sabe defender seus pontos de vista. Não desiste. Até briga pela literatura; literatura que ele diz que não existe, ou, sei lá, que não é original. "Temos uma literatura", acabou por concordar com seus opositores, um dia em que se encontrava em uma mesa de bar, em Copacabana. Começou a falar assim que viu entrar, no local, um autor. E o autor até era amigo dele. "Temos uma literatura", continuou dizendo, "uma ótima literatura secundária. E, antes que me critiquem, o que há de mal nisso?".
Num último olhar sobre a bancada de lançamentos, vejo O livro, de Júlio Cavallieri. Ele relutou em escrevê-lo, em publicá-lo, mas depois de receber em pessoa a visita do próprio editor da R., acabou cedendo. Ainda me disse com certo desânimo "Joana, eu também não vou acrescentar nada, vou ser apenas mais um 'a encher de vãs palavras muitas páginas e de mais confusões as prateleiras'". "Júlio, redargüi, se se pensar assim, ninguém há de escrever mais coisa alguma."
Quando chego ao CCBB, um jovem me aborda à entrada do prédio:
- Você gosta de poesia? - pergunta-me e estende em minha direção uma folha mimeografada.
Diz a seguir:
- Os poemas são de minha autoria, não quer dar uma olhada?
- Meu filho - falo de chofre; iria repreendê-lo, mas contenho-me.
A seguir, tomo nas mãos a folha. Leio alguns versos. Depois, desvio o olhar para o jovem poeta. Seus olhos brilham. Vejo que toda essa raça de bardos é indestrutível. Não importa se são bons ou não, se são principais ou secundários, se escrevem em verso ou em prosa. O que importa é que eles não desistem.

sábado, agosto 04, 2007

Talvez uma representação
Os degraus de madeira da escada antiga rangiam ruidosamente sob nossos passos. À meia luz, parecíamos entrar em um túnel misterioso e fantasmagórico. O odor de mofo misturado com excreções de sexo produzia uma volúpia lúgubre. Às vezes, uma das mulheres cruzava comigo, ainda ajeitando-se. Vinha seguida do último cliente. Quem subia tinha que se encostar e roçar as nádegas nas paredes úmidas, enquanto dava passagem a quem descia. Chegávamos a nos tocar frente a frente. Quando galgava o último degrau, tive de dividir a passagem com Isaura. Ela chegou-me ao ouvido e sussurrou raivosamente: - o filho da puta levou minha calcinha.
O que me intrigava naqueles quartos eram as manchas e riscos traçados pelo envelhecimento da pintura nas paredes. Enquanto me despia, olhava com desconfiança aquelas manchas. Pareciam possuir algum significado antigo, alguma marca codificada que tentava transmitir mensagem difícil de ser decifrada.
Ao voltar ao passeio, após a saída do cliente, reparei a paisagem escura. O vulto dos antigos sobrados acentuava o aspecto decadente daquele lugar. Um automóvel passou lentamente, tentei divisar a fisionomia que vinha ao volante, mas me deparei com o rosto de uma mulher. Pensei conhecê-la de outrora, mas logo a imagem dissipou-se, precisava fazer mais um programa para ganhar a noite e mulheres não me dariam lucro.
Em torno de três da madrugada, divisei com uma desconhecida. Meu destino naquela noite seria as mulheres? Ela não parecia ser uma prostituta. Era estranha no local. Eu estava sozinha, as outras ou se haviam dispersado ou ainda tinham clientes. Aproximou-se e me pediu um favor:
- Estou fugida de Copacabana, não posso aparecer por lá, querem me matar.
- Mas o que você aprontou?
- É uma história complicada.
- O que você quer aqui?
- Preciso de ajuda para um ponto. Sei que as meninas não gostam de gente nova, mas não sou nova. Preciso apenas ficar um tempo por aqui.
- Não sei se posso ajudar. Aqui já tem gente demais. As outras não vão gostar.
- É só por uns dias, depois me viro.
- Vou ver - ainda resisti.
Eu não acreditava em ninguém, e além de tudo, a mulher, se fugia, nos poderia trazer complicações.
- Eu te pago - ainda me falou - você não vai se arrepender.
Ela vestia uma saia preta muito curta. Desconfiei. Aquele tipo de roupa não era comum ali. As prostitutas já não se vestem assim. No passado, talvez, mas agora o costume não era pouca roupa. Ainda perguntei:
- Com essa roupa você está mais para travesti, olhe lá, hein?
- Quer que eu levante a saia?
- Acredito em você
Ela não trazia blusa, mas um top minúsculo. Nas pernas, as botas negras subiam até os joelhos. Quando virou, ainda observei a saia curta e semi transparente, arrisquei:
- Há homens que te batem se te descobrem sem calcinha...
- Quem está sem calcinha? - ainda perguntou.
Acreditei e acabei por ajudá-la, ao menos naquela noite. Ainda mencionei:
- Pelo andar da hora, acho que você vai ter que deixar pra outro dia.
Ao acabar de pronunciar aquelas palavras, um automóvel antigo parou junto a nós.
- Vai - acenei a ela.
Hesitou a princípio, mas acabou encostando-se à janela do carro.
Depois disso, enquanto o homem estacionava, ela perguntou-me:
- Como é o preço do hotel?
- Vou subir antes. Eles não conhecem você. O pagamento é adiantado, vinte cada vez. Eles vão lhe dar a chave, você entra direto. Mais uma coisa.
- Qual?
- Não deixe o homem perceber que é a primeira vez que você faz programa aqui.
Subi na frente e acertei a situação com o funcionário da recepção. Ele só me pediu que eu evitasse complicações, já tinha problemas demais. Quando a recém chegada passou seguida do cliente, uma chave já esperava por eles sobre o balcão. Ela a apanhou e prosseguiu. Ainda tive tempo de sussurrar:
- É o último quarto à esquerda.
Quando voltou, encontrou-me encostada à direita da entrada do hotel. O homem seguiu em frente sem virar-se, entrou mecanicamente no automóvel que deixara sobre a calçada e partiu anônimo. Eu fumava. Dei mais um trago, enquanto ela se chegou a mim. Também acendeu um cigarro, sorveu-o algumas vezes, tinha o olhar distante e estava voltada em direção à rua.
- Vamos ver se aparece mais alguém - ainda falou.
- Você não vai querer outra moleza dessa, não é? O próximo deixa comigo.
Ainda parou um fusca antigo. Vinha com dois sujeitos. Conversamos. Eles regateavam. Queriam sexo quase de graça. Acabaram partindo.
Deixei a ela ainda o último que apareceu. Nunca fui pelas aparências, mas a fisionomia dele me embrulhou o estômago.
Eles subiram. Demoraram. A demora me causou certa apreensão. Quando escutei passos na escada, me senti aliviada. Era ela. Vinha seguida do homem. Aproximou-se de mim, enquanto ele deixava o local sem olhar para trás. Reparei que ela chorara. Nada me falou.
Perto do amanhecer, ela aproximou-se e segurou-me pelo braço. Agradeceu. Ainda tentou me dar um beijo. Quase desviei o rosto, mas acabei por aceitá-lo. Lembrei que não lhe perguntara o nome. Um táxi subitamente parou. Ela entrou e partiu.
Alguns minutos depois, também decidi ir embora. Apressei-me, da mesma forma, por um táxi. E quando já ia longe, sentada no banco traseiro, reparei minha bolsa aberta. "Filha da puta, deve ter me roubado", foi o que pensei num primeiro impulso. Olhei apressada em meio à escuridão, tentava me dar conta do que perdera. Minha surpresa, porém, foi outra. Encontrei, bastante dobrado e amassado, talvez todo o dinheiro que ela ganhara nos dois programas. Era um valor maior do que eu teria conseguido com os mesmos homens.
Até hoje não entendi aquele fim de madrugada. Também nunca mais a encontrei.

sexta-feira, junho 22, 2007

Bailarina
Sofia parece que morreu, dizia de quando em quando. Enquanto aguardava, Mariana avistou um quadro numa das paredes, a que ficava ao lado da janela principal. Retratava uma mulher que parecia rodopiar. O pintor dera-lhe leveza aos movimentos. Na verdade, tratava-se de uma bailarina. Dançava. E nua. Vestia apenas as sapatilhas. Era como se a mulher do quadro fizesse parte de um balé alucinado. A cabeça parecia atrasada em relação ao movimento do corpo. Mas aquele pequeno detalhe era o tom encantatório da obra de arte. A bailarina tinha um ar lânguido. Parecia que a dança era um rito preparatório. Vinha num crescer que, aos poucos, atingiria o momento de êxtase total. Alguém que dançava nua em direção, talvez, ao espectador daquela cena. O pintor conseguira tal sugestão. Mariana continuou com os olhos na pintura, viu-se na pele da mulher, pensou como se sentiria na mesma posição, diante de um pintor experiente. Um pintor que a explorasse em todos os detalhes, mínimos que fossem, adivinhando-lhe cada centímetro de corpo. Pintar-lhe-ia nua, por inteiro, acrescentando-lhe alguma tinta, já que sua beleza original, a da fase juvenil, ficava, pouco a pouco, para trás. Queria-se bailarina nua e jovem.
De uma das vezes que foi à janela, viu passar um rapaz. Foi quando tentava quebrar o encantamento em relação à mulher do quadro. Assim conseguiu, mas à custa de outro. Do rapaz que passava na rua. Rapaz, por sinal, muito bem vestido. Como àquela hora o sol já era baixo, vestia um paletó de linho, que lhe realçava a beleza. A vibração de Mariana foi tamanha, que ele percebeu-lhe o olhar. Retribuiu. Parou à esquina, como se esperasse alguém, mas, na verdade, tendia aguardar os próximos movimentos da mulher. Ela continuaria ali, mirando-o? Ah, Mariana! Ela falou em voz baixa consigo mesma. Voltou-se para o interior da sala. A mulher do retrato invadiu-lhe novamente o espírito. Tentou imitar-lhe os movimentos, mas vestida. Não conseguiria pensar o dia de modo independente, num estado de total neutralidade? Ora seria invadida pela bailarina nua, ora pelo rapaz da calçada? Mariana era flor prestes a abrir-se, mesmo com apenas uma gota d'água.
Os saltos de Sofia desceram a escada, compassadamente. Pronta! A amiga deu com Mariana em crise. O que há? Ainda teve tempo de perguntar. Ou a mulher nua, ou o rapaz da calçada! Que mulher nua, que rapaz?, perguntou Sofia. Mariana mostrou. A do quadro, o da rua, aquele, apontou. Ah! O quadro foi presente de alguns anos, o rapaz, não o conheço, mas é belo. Vamos, já é hora, insistiu Sofia. Espere, um instante só, suplicou Mariana.
Mariana respirou, curvou os ombros. O vestido escorreu ao chão. Sofia surpreendeu-se diante do nu total, ao vivo. Mariana levou o dedo aos lábios. Pantomima de silêncio. Sofia respeitou. A mulher nua na sala pôs-se na posição da bailarina. Só que de saltos. Conseguiu o mesmo ar lânguido, a cabeça atrasada em relação ao corpo. No momento em que tentava o rodopio, surpresa: o rapaz da calçada viu-lhe um bico de seio.

sexta-feira, maio 25, 2007

Doutor

O empregado do bar se aproximou respeitoso da mesa onde se encontrava Arlindo.
– Doutor, tem uma moça aí querendo falar com o senhor.
– Que moça?
– Aquela – disse apontando para o fundo do bar –, que está perto do banheiro feminino.
O mercadão de Madureira começava o dia de terça-feira sem muito movimento. O local, que é visitado por todo tipo de gente e serve principalmente a quem procura mercadorias baratas, possui em seus pequenos boxes e lojas comércio bastante variado. Ali vendem-se diversas bugigangas: material para festas, material de papelaria, artigos de armarinho, artigos religiosos, de cabeleireiro, flores, balas e doces (estes procurados por ambulantes que trabalham nas ruas e nos transportes coletivos), ferragens, pequenos animais, rações entre outros; ultimamente, já há até mesmo a presença de lan houses. Nas horas de movimento, lanchonetes e bares servem de refúgio àqueles que precisam de alguns minutos de descanso, desejam matar a fome ou saciar a sede através de um copo de refrigerante ou mesmo de uma cerveja.
Num desses bares, a presença de Arlindo, ou Doutor, como é mais conhecido, é diária. Sua mesa é forrada com uma toalha especial, toda quadriculada, e vez ou outra ele seca o suor da testa por meio de um guardanapo de pano, que, no local, é também exclusividade dele. Este senhor, um tanto gordo e vestido de terno de linho branco, controla o jogo no local. Dizem que a toalha quadriculada é para debochar dos policiais, já que estivera preso inúmeras vezes mas sempre se saíra bem, tornando-se cada vez mais próspero.
– Diga a ela que é pra vir aqui.
O empregado fez um leve movimento com a cabeça e se retirou. Instantes depois, a moça se aproximou.
– Bom dia – disse entre tímida e enigmática.
– Bom dia, sente-se, tenha a bondade.
– Obrigada.
– Está servida? – perguntou enquanto enchia meio copo, com água mineral.
– Não, não, obrigada – agradeceu mais uma vez.
– Em que posso lhe ser útil?
– Gostaria de pedir um favor ao senhor.
Arlindo assentiu num gesto largo e bonachão; repousou o copo sobre o mesmo lugar onde estivera e a mirou por cima dos óculos de leitura, que ele raramente retirava.
– Qual a sua graça?
– Lindimar.
– Lindimar, bonito nome. Lembra-me das vezes em que trabalhei em Niterói.
– Uma amiga indicou-me o senhor.
– A mim? – pareceu surpreso.
– Sim. Diz que o senhor é muito afetuoso e, cá entre nós, não resiste às mulheres bonitas.
Arlindo desfez a posse e se pôs a rir, alisou de modo automático um pequeno trecho do forro da mesa e a olhou de novo, voltando à seriedade anterior.
– Está calor, peça alguma coisa – dirigiu-se a ela como que para quebrar o constrangimento.
– Não, não desejo nada, obrigada.
– Então me fale, vai, qual é o favor que desejas de mim?
– Uma pulseira de ouro.
Doutor, que já passara por quase tudo na vida, não achou surpreendente o pedido. Ainda repetiu a última palavra da moça, só que em forma de pergunta:
– De ouro?
Ela meneou a cabeça afirmativamente e se fez de encabulada.
– Já que seu pedido é irrecusável, fechamos o negócio.
Sinalizou ao garçom e pediu mais uma garrafa de água.
***
A Estrada do Portela é avenida de tráfego intenso a qualquer hora do dia. O viaduto, que atravessa a linha férrea, tem como cenário quase permanente ônibus e automóveis, o que intensifica a paisagem urbana de modo irremediável. Imagine-se o local às duas horas da tarde, num dia de verão.
O dia era o seguinte ao encontro no bar do mercadão. Arlindo e Lindimar atravessaram pela passarela. De cima, puderam observar o fluxo de pessoas nas ruas principais e na própria estação de trens. Ao desceram no lado oposto, caminharam durante alguns minutos pela calçada estreita. Fazia muito calor. Doutor não abandonava o lenço branco, que trazia em uma das mãos; vez ou outro o usava para secar o suor. Seguiram por uma rua secundária, acompanharam o casario antigo e depois entraram num velho sobrado. No segundo andar, havia uma tabuleta: Jóias – ouro e prata – Irmãos Xavier.
O homem de terno de linho branco cumprimentou um rapaz, o único funcionário do local. Ao reparar o ilustre visitante, pediu que aguardasse e desabou numa assustada correria em busca de um dos sócios da loja. Alguns minutos depois, entrava Seu Moysés, um senhor de mais ou menos sessenta anos, corpo magro, cabelos brancos, óculos estreitos. Procurava sempre demonstrar muito interesse sobre tudo que vendia; agia como se cada objeto fosse verdadeira relíquia.
– Doutor, que grande prazer tê-lo aqui, quanto tempo! O senhor não vai ficar de pé, aí, entre, sente-se, aqui atrás do biombo há uma poltrona confortável, tenha a bondade.
– Não, obrigado. Agradeço a gentileza. Estou com pressa. Peço que atenda a moça. É gente minha. Ela quer uma pulseira. De ouro, seu Moysés, de ouro.
– Oh, claro, pode deixar, será um grande prazer tê-la como cliente.
Arlindo cumprimentou-o apenas com um breve gesto, depois sorriu para Lindimar e disse:
– Procure-me guando tiver tempo.
Ela agradeceu com ligeiro sorriso.
Depois, Arlindo desceu a escada, seus passos eram firmes e compassados; esfregava o rosto com o pequeno lenço.
***
Alguns dias depois, recebeu de novo a visita de Lindimar.
– E, então, gostou da pulseira? – perguntou como que surpreso.
– É linda! Adorei. Vim pra mostrar a você.
– Oh, que beleza! – exclamou enquanto tomava nas mãos o braço da moça –, é realmente maravilhosa.
– Também vim até aqui para agradecer.
– Não há de quê. Sempre que desejar alguma coisa e isto estiver a meu alcance, pode contar comigo.
Lindimar parecia querer dizer algo mais, mas não se sentia à vontade. Depois ensaiou algumas palavras.
– Sabe o que é? Vim lhe fazer outro pedido.
– Outro? Tenha a bondade...
– Quero que compareça a uma festa que vou dar lá em casa.
– Oh, queira me desculpar, mas não sou homem de festas.
– Será algo bastante simples e reservado.
– Olha, sabe o que acontece?, as pessoas me aborrecem, todos me conhecem, sempre querem algum favor.
– Ninguém lhe pedirá coisa alguma, garanto. E a festa será bastante íntima.
– Íntima?
– Isso, íntima!
– Então, é de se pensar, é de se pensar...

sexta-feira, maio 11, 2007

Psicanálise
Na verdade, eu preciso reconhecer que gostava dele. Ele vinha para as sessões com antecedência, lia as revistas que se amontoavam na sala de espera, sempre tinha algo a comentar. Depois deitava no divã e falava livremente. Era dentre os freqüentadores de meu consultório o mais culto. Elaborava questões sobre as quais eu jamais pensara. Às vezes, eu me envolvia em suas histórias e em suas construções sobre arte ou literatura. Confesso que se ele abandonou a análise fui eu que não tive capacidade de mantê-lo. E ele veio durante muitos anos. Conseguia não se repetir, seus assuntos mudavam de perspectiva ou traziam sempre novidades. O que aconteceu e serviu de pretexto para que encerrasse o tratamento – aliás, não o encarava como tratamento – não foi de responsabilidade dele. Eu, como psicanalista, é que tenho de dar conta e asseguro a você que não estou sendo tão rigorosa comigo mesma. E ele ainda me "eu sou a parte mais frágil nessa relação". Relação, eis uma palavra interessante. Todo analisando tem relação com seu psicanalista, claro que essa não deixa de ser uma afirmação redundante. Não estou falando, é claro, de uma concepção vulgar de relação, mas se me vem à mente o vocábulo, não está isento de todo o tipo de significado, não está livre de todas as metáforas. Sou eu quem está pensando nisso, logo, faz parte também de meu universo. É lógico que ele também deve ter ido algumas vezes por esse caminho. Sempre, sobretudo no início da análise, há aquele afã de querer conquistar a psicanalista, por isso há tanta procura por profissionais do sexo oposto. Quando a relação é com um profissional do mesmo sexo, a análise não se estende por tempo tão longo. Nossa relação nunca foi conflituosa. Muitos acham que o conflito no processo de análise é saudável e quando é suportado pelo analisando é mais eficaz. Ele suportou bem alguns embates, mas nossa relação quase sempre foi tranqüila. Ele não afastava de primeira o que eu sugeria. Certa vez falou que eu manipulava os pacientes. Confesso que me senti mal com isso. Como pode a analista, que quer permitir a quem analisa a realização do desejo, utilizar-se de manipulação? Mas voltemos à palavra relação. Eu gostava dele, como disse. Beijava-o quando ia embora. Tocava-lhe as costas com suavidade. Não sei se ele reparava este meu gesto; creio que sim, era uma pessoa inteligente. O beijo e o toque eram o meu modo de ir além das palavras, de realizar o meu desejo (o psicanalista também tem desejo, você sabe), de tê-lo sob mim. Torcia para que chegasse o dia de ele voltar. Normalmente vinha de quinta-feira em diante; gostava de atendê-lo também aos sábados. Contava-me o que fazia com a namorada, ou namoradas. Não tinha vergonha. Mas também tinha alguns defeitos de que eu não gostava. Um deles era as roupas que usava; consegui, porém, que pouco a pouco mudasse de estilo; depois até brinquei: "adoro você com essa camisa de listrinhas". Tive sucesso nesse terreno. Ele passou a se vestir melhor e eu passei a gostar mais daquele homem. Fazia as marcações de seus desejos inconscientes, ele ouvia. Mostrava como se davam as repetições. Ele mantinha-se atento. Às vezes acho que ele pensava que a sessão de análise era uma aula onde se aprenderia algo ou se faria alguma descoberta. Então concordava que tudo estava no próprio inconsciente e que precisava analisá-lo melhor através do que eu apontava. "As palavras sempre tem muitos significados, você não é professor de literatura?" Descobriu que o inconsciente se expressa por metáforas. Fui eu que fiquei mal com o que aconteceu. Quando me dei conta da besteira que fizera, chorei muito. Mas não adiantavam lágrimas. Estava tendo comiseração por mim mesma e isso é tudo que se deve evitar. Sobretudo a uma psicanalista. Sei que me fixo no feminino, "uma psicanalista", talvez tenha sido esse um de meus erros, porque é certo que há muitos outros. Passei a pensar que depois do que aconteceu não mais conseguiria atender ninguém. Achei que daria para trás. Mas estou conseguindo superar. No entanto, sinto que as pessoas que atraio não são como ele. Vêm a mim pessoas fúteis, sem objetivos, sem cultura. Ele era diferente. Sei que o ato analítico não é voltado para quem tem cultura; todos possuem seus desejos, o inconsciente de quem é muito culto funciona como o de outra pessoa qualquer. Mas há construções interessantes e processos simbólicos mais requintados nas pessoas que estudam. E você sabe, a própria análise é um processo de estudo. Às vezes torço para que ele volte, às vezes me dou conta do meu próprio egoísmo e acho que vou gostar tanto mais dele o quanto estiver longe de mim. Vou imaginá-lo como alguém que conseguiu aprender por si próprio. Certa vez, num filme europeu, um psicanalista deixou a profissão devido a um acidente na família. Comunicou para seus pacientes, até mesmo recomendou-os a outro profissional. Mas me lembro de uma mulher altiva, de expressão firme, que disse: "não, acho que não mais preciso, vou tentar ir por minhas próprias pernas". Interessante a expressão "próprias pernas"; não sei se é exata para o ato analítico, mas creio que foi isso o que ele fez, ou o que anda fazendo. O real sempre irrompe de forma devastadora, como um terremoto, como um acidente da natureza. Por mais que sejam firmes as construções, esse real não deixa de fissurá-las, não é mesmo? A partida dele foi um tipo de irrupção desse real. E olha que ele sempre quis saber melhor sobre isso, parece que não entendia. Acredito que agora ele já entenda. Não é possível a uma pessoa querer dar conta de todos os aspectos de uma questão, não se pode pensar em todas as coisas que podem acontecer. Quando se sai de casa, sobretudo para uma estadia longa, procura-se verificar se não foi negligenciado tudo que possa causar problemas a casa ou à vizinhança; uma válvula de gás aberta, uma torneira mal fechada, algum alimento perecível sobre a mesa, ou mesmo uma janela esquecida sem a tranca. Quem sabe um vento mais forte a abrirá e soprará sobre o estofado a brasa ainda incandescente de um cigarro; e quando estivermos de volta, teremos então sob nossos olhos apenas as ruínas daquilo que um dia foi nossa casa. A partida dele foi uma espécie de descuido. Ele ainda não estava pronto. Mas não se pode prever o que há de causar as catástrofes. É possível não esquecer o guarda-chuva ao se sair de casa numa manhã nublada, mas não é possível prever um vendaval que partirá um galho maior e que este virá nos atingir a cabeça. Eu sempre falei para as pessoas em meu consultório que a vida é uma sucessão de perdas, que é preciso saber perder para ganhar; agora sofro com uma delas. Quando se está do outro lado do divã, a situação é outra; mas quando se permanece sobre ele, sentimo-nos tão frágeis quanto qualquer outro ser humano, por mais importante ou por maior conhecimento que tenhamos. Sabe, já se vão alguns meses, ou quase um ano e a partida dele até afastou outros pacientes. Não sei explicar isso, ou melhor, sei, cada analista tem o analisando que merece, não é assim que se fala entre os próprios psicanalistas, às vezes até mesmo com chacota? O inconsciente mostra-se mais à flor da pele do que nunca nessas horas. Mas não há de ser nada. Nessa vida, a tudo se acostuma. Mas lhe digo mais uma coisa. Não desejo revê-lo. Não, por favor, não me diga que é denegação. Não desejo revê-lo e ponto final. Não, essa recusa não é o oposto extremo do meu próprio desejo.

segunda-feira, abril 30, 2007

O Líbano

– Vem do Líbano, esposa minha, vem do Líbano, vem...

Foi o pedido que fiz na última vez que lhe consegui falar pelo telefone. Não só sentia saudades dela – já ausente havia seis semanas devido aquela malfadada viagem –, a casa transformara-se num autêntico caos. Viajou com a intenção de rever parentes que deixara fazia décadas, mas pelo visto decidiu visitar todos os habitantes da cidade.

Lembro-me da manhã de um dos primeiros dias, após sua partida, havia sobre a mesa da cozinha um ovo partido. Eu sequer limpara a gema que escorrera quando tentara fazer um omelete para o jantar, na noite anterior. Mal conseguia me alimentar. Já não agüentava comer pão todos os dias. Logo que ela viajou, almocei e jantei algumas vezes na casa de algum parente. Mas não demoraram a me despachar, ainda que de modo delicado. Vivi pelas ruas, comendo em pensões, em botecos e restaurantes populares.

Num desses almoços, conheci um judeu, chamava-se Jacó. Foi a minha salvação. Cumprimentou-me educadamente e continuou comendo sua vitela, com todo o cuidado do mundo. Não desperdiçava parte alguma. O conhecimento que travei com aquele sexagenário não deixou de me ser útil. Jacó andava por toda a cidade e convidou-me a acompanhá-lo. Ele conhecia grande número de pessoas. E quando não as conhecia, tornava-se imediatamente amigo delas. Nada lhe escapava. Um almoço beneficente, uma rodada de chope (ele bebia pouco), um jogo de canastra, um chá em homenagem a algum amigo, até mesmo velório, onde sempre se servia alguma coisa. Conhecia os donos de bares e restaurantes. Cumprimentavam-no com júbilo e não lhe negavam coisa alguma. Jacó nem precisava pedir, era servido assim que chegava. Queria perguntar-lhe a razão de tantos conhecimentos, de tantos favores que lhe deviam. Mas temia magoá-lo. Era bom estar a seu lado. Ele não precisava falar muito. Sempre era beneficiado com um dos agrados que lhe faziam. Certa vez lhe perguntei se era casado. Olhou-me com reprovação. Nada respondeu e seguiu em frente. Pela sua fisionomia, ficou constatado que não faria aquela besteira. Não podia ser casado, quando vivia pela cidade a contatar toda aquela gente. Andar com ele aonde quer que fosse não exigia quase dinheiro. Até mesmo o transporte tomávamos de graça. Num dos primeiros dias em que caminhávamos juntos pela cidade, quando ainda me via cabisbaixo e saudoso de minha esposa, perguntou:

– Sua esposa está no Líbano?

– Sim – respondi –, no Líbano.

– Você conhece o Líbano? – continuou.

– Não – eu disse um tanto óbvio.

– Meu pai era de lá – sorriu (embora vivesse de bem com a vida, sorria pouco) –, somos judeus libaneses. A seguir, acrescentou de modo muito natural: – diga a sua esposa para ficar mais tempo por lá. É um bom lugar e você só tem a ganhar com isso.

Foi uma das poucas vezes em que me falou de sua vida particular e, ao mesmo tempo, deu opinião sobre a minha. Jacó permanecia silencioso durante a maior parte do tempo. Mas quando falava dizia coisas acertadas. Não conheci quem ousasse rebatê-lo, ou contestar suas opiniões. O que falava era lei.

Enfim chegou o dia de não poder mais acompanhá-lo com tanta freqüência. Minha esposa regressaria. Convidei-o para ir ao aeroporto. Pela primeira vez vi Jacó fazer uma negativa. Deu como desculpa desgostar de aviões. Disse-me que já viajara muito, estava cansado de jatos e aeroportos. Despediu-se com um breve gesto.

Desde então o vejo pouco. Ainda o encontrei uma vez, quando eu ia pela rua com ela, minha esposa. Quis apresentá-la, mas ele pareceu-me apressado, apenas me acenou, de longe.

Estava bem vestido. É provável que ia como convidado especial a mais um almoço beneficente.

sexta-feira, abril 13, 2007

Anne
O Bar do Greend é um local propício àqueles que vagam durante toda a noite pela cidade e ao amanhecer ainda querem beber a última dose. Eu que me mantive acordado durante boa parte da noite e da madrugada – não sabia bem à procura de quê, mas sob o ar frio do início de primavera, quando ainda não se anuncia a capa transparente da estação –, decidi logo cedo tomar uma xícara de café, e eis que me vejo cruzar a porta rústica do bar. Alguns remanescentes, freqüentadores do cassino e dos bares do centro velho, ainda estavam ali. Pude observar então o principal problema do principado; o seguro-desemprego provocara uma horda de desajustados. Como não era possível trabalhar depois que as usinas de Kempt fecharam suas portas, (só uma parte da população conseguira alguma colocação), a câmara local votara e aprovara a ajuda financeira quase que permanente para os desempregados que, na verdade, acabaram se acomodando à nova condição. Não era difícil encontrar entre os antigos operários e ex-ocupantes de cargos de confiança figuras que um dia tiveram importância na vida política e social da cidade, mas nesse momento naufragavam de maneira sórdida e exagerada nas águas turvas da bebida destilada. Enquanto o próprio Greend me trazia uma xícara grande, fumegante, alguns homens permaneciam petrificados, sobre cadeiras ou banquetas. Havia mesmo um que abaixara a cabeça e dormia sobre a mesa, entre copos, garrafas e restos de pão.
Não fazia muito tempo que me sentara quando um homem de farda azul entrou no pequeno bar e, demonstrando nervosismo, começou a olhar um a um. Quando me viu, seu rosto se transformou; percebi que se tratava do mensageiro do Soleil, um hotel decente à margem esquerda do Knopt; só entenderia a mudança em sua fisionomia momentos mais tarde. Ele correu até onde eu estava e me entregou afoito um bilhete de urgência: que eu o acompanhasse até o hotel, ou precisariam recorrer às autoridades.
Durante o pequeno percurso, fiquei muito assustado. Como a importância que eu tinha para algumas pessoas na cidade não ia além da esfera intelectual, não conseguia entender por que me procuravam ou o que eu tinha a ver com algo que estava acontecendo, sobretudo num hotel. Temia algum engano. Mas não havia engano algum. Uma hóspede recém-chegada, que estivera no restaurante do hotel durante boa parte da madrugada, desmaiou e permaneceu desacordada por longo tempo sobre o piso de um dos corredores do segundo andar. Entre seus pertences estava meu nome e endereço. Não tendo me encontrado em casa, o empregado me procurou pelos bares próximos. Teve sorte de me encontrar no Geend. O gerente, que fora acordado em casa e se despencara de imediato para o hotel, temia complicações com a polícia. A mulher estava fria, mas havia pulsação. Tinham chamado um médico que morava nas proximidades, mas o fato de ela ter permanecido longo tempo sem cuidados, de apenas a terem descoberto ao amanhecer, piorara seu estado. Sob protestos do médico e do gerente, chamei a ambulância e a transferi para o hospital. A mulher era Anne.
Esperei boa parte da manhã junto ao balcão de informações do andar onde ela era atendida até que aparecesse alguém que me desse informações sobre seu estado. A agitação que me tomara desde cedo provocava dores em minha cabeça. Apesar do frio, eu suava devido à tensão. Quando enfim me chamaram pelo nome, reparei um homem pequeno, magro, de óculos de grau, que me aguardava.
– Sua amiga vai se recuperar, mas deverá passar por um processo de desintoxicação. Não temos condição de mantê-la neste hospital. O senhor deverá transferi-la para uma clínica, ou mesmo levá-la para casa, caso não seja possível a internação. Deverá cuidar para que ela não ingira bebida alcóolica, pelo menos durante uma semana.
Não me foi possível procurar por clínica alguma. Segui a orientação do médico e levei Anne para minha casa. Eu mesmo cuidei de lhe aplicar o soro e fiquei durante boa parte do tempo ao seu lado.
Recebi um telefonema do gerente do hotel onde ela se hospedara. Deveria ir até lá e pegar sua bagagem. Ele na verdade estava mais preocupado em não deixar rastro algum da presença daquela mulher em seu hotel.
O apartamento onde eu morava era pequeno; mantive-me na pequena sala, enquanto deixei a Anne o quarto espaçoso. Quando arrumava seus pertences, percebi uma grande mala que a princípio estava com as primeiras camadas cheias de folhas de jornais e revistas. Coloquei-me a escavar com o objetivo de encontrar algumas peças de roupas para trocá-la, quando me dei com os primeiros maços de cédulas de dinheiro alemão. Depois começaram a aparecer cédulas de outros lugares, até mesmo de moedas francesa e estadunidense. Era uma quantidade tamanha, que talvez um homem comum de posse de tudo aquilo não mais precisasse trabalhar. Assustado, fechei aquela mala e a escondi em um dos armários, cobrindo-a com um grande lençol e tendo pela frente minhas roupas. Temia que alguém soubesse daquela bagagem e viesse atrás dela. Nas outras valises, encontrei as roupas de que ela precisava. Anne acordou apenas no dia seguinte.
De início, mostrou-se num estado de extrema languidez, mas pouco a pouco se foi recuperando. Após a pequena refeição da manhã, conseguiu levantar-se, embora ainda estivesse muita fraca. Começou então a colocar as idéias em ordens. À certa altura, quis saber como viera parar em minha casa. Expliquei meu café da manhã no bar do Greend, o mensageiro do hotel e tudo que depois acontecera. Foi então que lembrou das malas:
– Minhas malas, onde estão? Preciso vê-las, por favor.
– Descanse, Anne, não se preocupe, já tomei todas as precauções.
Falou da grande quantidade de dinheiro que trazia.
– Tranqüilize-se, se é apenas uma mala grande, cheia de cédulas, está em segurança.
Sorriu e esticou um dos braços em buscas de minhas mãos.
– Não entendo por que essa chegada súbita – disse a ela.
– Súbita? Já estava planejada, faltava avisar a você, mas quis fazer surpresa – sorriu e me pediu que lhe desse um cigarro.
Quando soltou a fumaça e dobrou o braço direito, tendo apoiado o cotovelo sobre a cama, seus olhos faiscaram. Admirei naquele momento o rosto da Anne que eu conhecia.
– Você não estava feliz em Malbork? Tinha todos a seus pés...
– Cansei, não é sempre que se deseja um séquito de basbaques. E além de tudo, admiravam-me porque me tornei célebre no jogo, uma lenda, segundo eles. Parti; assim a lenda não se extinguirá.
Voltou-se para mim e pediu que eu chegasse mais perto.
– Vamos embora, vamos para os Estados Unidos. Vim para que você parta comigo,
Confesso que não estava preparado para aquele tipo de proposta.
– Lá você poderá editar seus livros, há as universidades, há pessoas que entendem o que você escreve.
– Não se iluda, Anne, nada é tão fácil. E há uma coisa a mais: não escrevo em inglês.
– Kafka também não escrevia.
– Não sou Kafka e mesmo que fosse, se meus livros venderem lá como os dele, morrerei de fome.
Anne sorriu mais uma vez, o cigarro terminava.
– Não venha com essa conversa, você nunca viveu da venda de seus livros. E pelo que escreve, não vejo essa intenção em seus textos – falou e umedeceu o lábio superior com a ponta da língua.
– Tenho um projeto, não escrevo baseado em intenções. Na verdade, nem mesmo sei por que escrevo. Mas, definitivamente, os Estados Unidos não fazem parte dos meus planos.
– Você vai me dar razão um dia, mesmo que se torne um grande escritor, um enigma, não é assim que você gosta de dizer? Os grandes escritores são enigmas indecifráveis.
– Esse pensamento me afligiu quando eu ainda era muito jovem, agora não mais me preocupo com isso.
– As palavras não são um terreno tão seguro – atirou-me de volta a frase que um dia eu lhe dissera, virou-se e acendeu outro cigarro.

À noite, contra a minha vontade e contra todos os preceitos médicos, decidiu sair. Acompanhei-a no passeio noturno. Fumou destemperadamente, mas consegui evitar que bebesse.
Falou diversas vezes sobre sua partida para os Estados Unidos e tornou a insistir que a acompanhasse.
Depois de percorrermos as estações de trens – Anne era fascinada por esses locais –, os cafés, e atravessarmos duas pontes do Knopt, terminamos a noite no restaurante da Anderson, aquele que fica diante do salão de bilhar.
O garçom nos trouxe dois pratos quentes. Ela pediu uma água Perrier e eu tomei a costumeira genebra.
Tornou-se então mais falante, enquanto de modo contínuo me apertava um dos braços.
– Não há futuro nesse local, veja, tudo aqui está envelhecido. É uma cidade que não tem futuro e dizer que foram tantas as guerras.
– Anne, por mais que corramos, sempre vamos estar no mesmo lugar. Se você quiser ficar por aqui, podemos tentar viver juntos. Você está sempre correndo de um local a outro, sempre espera encontrar a verdade na próxima estação. Escute: a verdade não existe. É isso, Anne, não existe, entendeu?
– Acho que você se tornou alguém que perdeu toda a esperança e isso é muito triste – falou sem me dirigir os olhos, levou o cigarro à boca e tamborilou sobre a mesa com a ponta dos dedos. Depois, um tanto descontrolada, tomou o copo nas mãos e bebeu de uma vez o que restava da água mineral.
Por mais que eu gostasse de Anne, não podia seguir seu destempero. Minha vida estava organizada, embora tivesse consciência de que eu não era nenhum gênio. Jamais seria um grande escritor, mas era considerado por muitas pessoas, tinha admiradores, havia quem comentava meus livros de modo positivo. Não queria colocar tudo a perder. Voar aos Estados Unidos, adotar uma nova cultura, uma nova língua, era uma temeridade. Sabia que escrevia numa língua menor, num idioma pouco conhecido, mas eu existia, tinha conquistado meu lugar à custa de muito trabalho. O desejo e a insistência de Anne eram ventos que eu sabia passageiros, logo mudariam de direção ou nos abandonariam em costas de difícil regresso.
Voltamos para minha casa depois de uma da madrugada. Durante seu desvario, ela me agarrou voraz, não me largou durante boa parte da noite. Só quando vencida pelo sono, senti suas mãos afrouxarem e escorregarem de meu corpo. Ela, porém, não dormiu tranqüila. Era passageira que sentia próxima a tempestade.
Acompanhei Anne até o aeroporto, na república vizinha. O vôo que a levou faria escala em Kopenhagen. Antes de partir, deu-me um longo beijo. Foi a última a embarcar. Disse que sempre estaria à minha espera. Assegurou-me que um dia eu me arrependeria de não ter partido com ela.

Voltei à minha realidade, nas adjacências do Knopt. Encontrei as pessoas costumeiras. Não queria acreditar que teria de deixar minha cidade, que teria de me tornar um exilado. Apreciava a biblioteca da Torre, os amigos, os bêbados de Kempt, as usinas desativadas, os meninos que corriam atrás de bolas de futebol, as mulheres boêmias e vulgares, os jogadores contumazes do cassino, os aproveitadores, os viajantes, os bares, os restaurantes, os salões de bilhar, os amores fugazes, os jornais franceses que chegavam com dois dias de atraso...
Nota do autor: Este é o último episódio da narrativa iniciada em 17 de novembro de 2006 com o capítulo denominado Kempt.


domingo, março 25, 2007

Ludfashion
Willheinn quis ir primeiro ao cassino.
– Quero jogar um pouco, vamos mostrar a essas garotas como devem fazer para se tornarem pessoas de sorte.
Elas olhavam um tanto surpresas. Acredito que não estavam acostumadas a esse tipo de programa. Enquanto o táxi trafegava vagaroso, vi que meu amigo ofertara uma nota de cinqüenta a cada uma.
– Se vocês se comportarem, mocinhas, ainda vou agraciá-las com muito mais dinheiro, vejam, não é mentira.
Mostrava algumas notas que tinha na carteira. Percebi que não entendiam suas palavras, mas compreenderam com facilidade o que ele quis dizer.
A minha preocupação era com o motorista. Já o conhecia de outras viagens e o percebia como uma pessoa soturna. Temia que ele nos denunciasse. Seríamos chamados à delegacia, pagaríamos enorme multa e as garotas seriam deportadas. Quando nos deixou à porta do cassino e Willheinn pagou o preço estipulado, deslizei uma nota de dez nas mãos daquele que temia ser nosso algoz. Ele sorriu e piscou um dos olhos. Sinal de que estava satisfeito.
Dentro do Ludfashion havia uma grande confusão. Em meio às luzes, fumaça de cigarros, homens e mulheres elegantes, garçons transitando com bandejas plenas de copos com diversas bebidas, um cidadão que morava na Deigth Lusckern – eu o conhecia – e que sempre vivia de dinheiro emprestado, possuía junto a si uma grande quantidade de fichas. À sua volta, se aglomeravam pessoas de todos os tipos. Gritavam e davam palpites. Várias vezes os seguranças se aproximaram e fizeram menção de intervir, temendo confusão maior. Ele acenava querendo dizer que estava tudo sob controle, que não o aborrecessem. Tanto mais jogava, mais ganhava; e a quantidade de curiosos aumentava.
Fomos para o bar, onde o ambiente era mais calmo; colocamos as idéias em ordem. As mulheres pediram bitter russo, quanto a nós, não abandonamos os escoceses. Nossos copos vieram cheios.
– Camarada, disse eu, esses rapazes querem nos embebedar na primeira dose.
Meu amigo riu e não protestou.
Descobri que uma das mulheres conhecia algumas palavras em francês. Tentamos entabular uma conversa; a comunicação, no entanto, não se deu. Escutei diversas vezes a mais baixa dizer: État Uni, État Uni. Deduzi que era para onde ela desejava ir. Como já esperava, a pequena me abraçou e com a outra mão levou aos lábios o copo com líquido rubro.
Willheinn não abraçou a sua companheira, mas se manteve sempre a seu lado e cuidou para que estivesse protegida de pessoas indesejadas. Um engraçadinho passou e parou durante alguns segundos, mirando-nos. Meu amigo se dirigiu a ele. Em pouco tempo o homem desapareceu e não mais nos incomodou. Jamais soube o que Willheinn lhe dissera.
Eu e as duas mulheres não jogamos. Observamos o amigo. Ele começou perdendo, mas em pouco tempo recuperou e se pôs em vantagem. A roleta girava, Willheinn demorava um pouco, mas apostava. Em determinado momento, começou a apostar grande quantidade de fichas apenas na cor. Por duas vezes seguidas conseguiu dobrar toda a quantidade que possuía, tendo como resultado a cor vermelha. Ficou uma vez sem jogar e na vez seguinte apostou tudo na cor preta. Ganhou de novo. Em apenas trinta minutos foi ele que passou a ser assediado por grande número de apostadores e curiosos. Pediu que eu tomasse conta de algumas fichas. Continuou apostando. Reparei que não mais perdia. Cuidei também de proteger nossas mulheres e pude reparar que elas estavam excitadíssimas com as seguidas vitórias de Willheinn.
Já estávamos havia duas horas no cassino quando um dos funcionários se dirigiu ao meu amigo e sussurrou algumas palavras no seu ouvido. Este recolheu todas as fichas, pediu que nós o aguardássemos e seguiu o homem. Voltou depois de um quarto de hora.
– Eles estão pedindo para que nos retiremos.
– É por causa das garotas? – quis saber.
– Não, creio que pensam que eu estou utilizando algum tipo de truque. Mas não se preocupe, me pagaram todas as fichas.
Se antes já estávamos animados, a grande soma obtida no cassino derramou sobre nós vontade de gozar a noite de forma mais intensa.
Aproveitamos para jantar no melhor restaurante da cidade. Creio que não preciso descrever os pormenores do Café de Paris, pois as virtudes do local são do conhecimento de todos. A casa recebe visitantes de toda parte do mundo, sobretudo depois que completou três séculos de existência.
Pedimos duas entradas e três pratos principais. Para beber as escolhas variaram: uma garrafa de vinho branco alemão, outra de tinto francês (Bourbon), um dry-Martini, uma dose de vodca e o inconfundível doze anos escocês. As mulheres, pelo modo como se portaram à mesa, aparentavam pessoas finas.
Tentei me comunicar com Nasha, a minha pequena, queria falar sobre qualquer assunto, ou mesmo apenas ouvir sua voz. Dei a entender que queria saber dela. Tudo que consegui foi que fizesse um único gesto: deslizou uma das mãos sobre meus ombros e segurou-me um dos braços – sua temperatura era quente –, depois sorriu. Seus dentes se mostraram bastante claros. Investiguei-a de modo meticuloso, pois a bebida aguçara meus sentidos.
Acredito que ambas eram boas pessoas e que até tinham formação escolar; estavam ali em troca de algum dinheiro, é claro, mas seus objetivos eram outros: a emigração. Tentei estabelecer a todo custo algum diálogo.
– Elas só compreendem a linguagem do corpo –, disse meu amigo, enquanto saboreava uma fatia de presunto que viera em uma das entradas – não entendem outra coisa.
– Devem ter alguma inteligência – rebati.
– Claro que tem, caso contrário não estariam aqui – ele riu e as duas o acompanharam, embora suas faces não demonstrassem qualquer entendimento. Katya, como entendi ser o nome da musculosa, percorria com a ponta dos dedos o tórax de Willheinn; eu não quis acreditar que ela achasse aquele o local apropriado para colocar sua arte em prática.
O ruído de pratos e talheres nos levou a outra direção. Era o garçom que chegava com os pratos principais.
O jantar se deu no mais pesado silêncio. A luz era baixa, e das outras mesas vinham apenas pequenos ruídos entremeados de vozes que se esforçavam para não serem ouvidas. Quando terminou sua porção, Willheinn pediu ao garçom que deixasse a garrafa de uísque, não gostava de ser servido dose a dose. O empregado pediu que aguardasse. O próprio maitre trouxe a garrafa, encheu o copo dele e a pousou sobre a mesa, fazendo-nos uma breve reverência. As mulheres puseram-se também a beber. Nasha sorriu para mim após tomar longo gole e virou-se para o copo que segurava à altura dos olhos, como se quisesse fazê-lo de espelho. Depois me olhou de novo; percebi que desejava comunicar alguma coisa. Pegou o guardanapo e fez um desenho. Tentou me explicar a cena. Riscara com poucos traços uma mulher deitada; vinham-lhe ao encontro lábios que voavam sozinhos até se encaixarem na sua boca. Depois apontou para o desenho, para ela, e em seguida para mim. Fiz movimento de que iria beijá-la, mas descobri que não era isso que ela queria dizer. Começou então a explicar de novo. Virei-me para Willheinn com a intenção de que me socorresse; ele, porém, parecia entender com perfeição as mensagens das mãos de Katya. Ela usava aqueles tentáculos com muita habilidade. Ele, por sua vez, apertava com força as coxas da mulher que, sentada, dava pequenos saltos, como que assustada, mas demonstrava gosto pela brincadeira. Nasha num gesto súbito beijou-me o pescoço e depois os lábios; temi que os movimentos exacerbados tanto dela como da outra nos trouxessem complicações.
Embora já tivéssemos acabado o jantar, não queria despertar Willheinn do embevecimento em que se encontrava.
Custou-nos algum quarto de hora para que o maitre reaparecesse; perguntou se desejávamos mais alguma coisa; sua intenção, porém, estava estampada na fisionomia. Éramos presença indesejada no local. Agradecemos, Willheinn pediu o total da despesa. O homem voltou em instantes, recebeu o dinheiro e deu passagem para que nos retirássemos.
Convenci meu amigo de que o melhor era voltar ao hotel. Já nos tínhamos metido em confusões suficientes, melhor não mais arriscar a estragar a noite. Ele concordou a contragosto. Entramos em outro táxi e voltamos para o hotel. O motorista, desta vez, era estrangeiro e manteve-se indiferente à presença feminina.
As mulheres haviam tirado o casaco quando chegamos ao cassino; depois, mais uma vez, no restaurante. Em ambos os lugares incendiaram a curiosidade alheia e causaram furor entre os homens; usavam vestidos muito curtos. Katya, a musculosa, estava sem meias, o que também provocou certo alvoroço; suas pernas subiam nuas e penetravam sob o vestido. No táxi ela, ainda, tirou o casaco; demonstrava intenso calor; era a bebida que já provocava efeito. Sinalizei que não fizesse isso, que esperasse chegar ao nosso destino. Ela fez de conta que não entendeu. Sentada ao lado esquerdo de Willheinn, a roupa subira-lhe, deixando grande parte das coxas à mostra.
Ao entrarmos no Bourg sentamo-nos na sala de estar, ao passo que nosso patrocinador foi mais uma vez ao bar. Voltou com outra garrafa de uísque.
– Willheinn, basta, não posso mais – falei em voz baixa.
Nasha procurou um copo e estendeu a ele, seu gesto foi seguido pela amiga. Três copos quase pleno da bebida foram rapidamente esvaziados. Comecei a temer como tudo aquilo acabaria.
Quarenta minutos depois, enfim, nos recolhemos aos apartamentos reservados. Ficavam no terceiro andar. A pequena Nasha me acompanhou, enquanto a musculosa seguiu Willheinn. Ele se mostrava muito contente por estar prestes a possuir aquela mulher grande e forte. Aqui é preciso fazer um comentário. Meu amigo bebeu o dia inteiro e, em momento algum, demonstrou qualquer vestígio de embriaguez; apenas de incomum, o rosto avermelhado.
Nasha tirou toda a roupa sem pejo algum. Sinalizou que eu esperasse, deitou de ventre para cima na cama, mantinha as pernas abertas e os braços afastados do corpo. Parecia que iria entrar em transe. Só me faltava essa. Fechou os olhos e permaneceu longo tempo naquela posição. Esperei creio que vinte minutos. De repente ela começou a tremer, as pernas principalmente saltavam alguns centímetros da posição horizontal, os quadris se agitavam. Eu não queria acreditar no que via. Ela parecia estar transando com alguém invisível, alguém que a levava a estado de extrema excitação. A seguir começou a falar em seu idioma, não demorou e gritava alucinada. Apontou-me uma das mãos. Entendi que me desejava próximo. Ao tocá-la, enlaçou-se a mim com extrema violência, continuando com seus gritos estrangeiros. Giramos por toda extensão da cama, fomos lançados ao chão e ela bateu forte a cabeça no assoalho. Não se incomodou, nem demonstrou dor. Intempestiva, atirava-se em violento transe de corpo e alma.
Foi uma relação pontuada de gozo e dor para nós dois. Quando acabamos, tomou dois grandes comprimidos, caiu desmaiada e só acordou três horas depois. Pôs-se então a chorar. Nunca pude entender o que se passara com ela.

Willheinn partiu pela manhã. Katya e Nasha já haviam saído. Ele despediu-se demonstrando que sentiria minha falta. Acompanhei-o à estação. Antes de embarcar, disse-me em voz baixa:
– Dei às mulheres a senha, elas merecem; tenho alguns amigos na imigração, creio que elas conseguirão chegar aos Estados Unidos – sorriu ao seu jeito e me abraçou mais uma vez.
Partiu sem olhar para trás.

sexta-feira, março 16, 2007

Willheinn
Willheinn chegara à cidade havia dois dias. No terceiro, apareceu à minha procura. Saímos a esmo pelas ruas do Centro. A temperatura era amena e contribuía para alegre e descontraída conversa. Em determinado momento, resolvemos ir ao Sürgarden, pequeno bar à margem esquerda do Knopt. Ao entrarmos, sentamos e passamos a observar através do vidro a paisagem ainda branca de fim de inverno. Meu amigo viera do exterior e não hesitava em me contar suas experiências, sobretudo, como dizia, seu sucesso com mulheres de beleza exuberante. Ainda era cedo, mas o garçom não se surpreendeu quando ouviu dele o pedido: uma dose reforçada de vodca. Willheinn disse que não me reconhecia quando descobriu que eu queria apenas um café bem quente. Manteve-se em silêncio durante algum tempo e depois voltou à conversa anterior. Ao reparar que eu saboreava devagar o café, perguntou-me se parara de beber:
– Estou bebendo, não?
– Não é sobre café que estou perguntando.
– Ainda é cedo para outro tipo de bebida que não seja café.
Riu da minha resposta.
– Outro tipo de bebida... – repetiu minhas palavras em tom de pilhéria e mergulhou numa gargalhada que permitiu que se visse seus dentes muito brancos.
– Você fala com requinte, – disse – parece que também absorveu os dons de escritor para as conversas vulgares.
– Não foi essa minha intenção, – apressei-me em desfazer o mal-entendido – talvez seja devido à solidão em que ando ultimamente, trabalhando em excesso e conversando pouco.
– Solidão? É o que jamais me acontece, – falou – ah, as mulheres!, elas são tudo e não conseguem me deixar sozinho.
Eu e Willheinn havíamos sido muito próximos, aos vinte anos. Tivéramos planos. Ele também escrevera, fizera versos, e até que eram bons. Então toquei no assunto:
– Ainda escreve?
– Bilhetes românticos com indicações de encontros para as horas tardias – riu ao término das próprias palavras.
Nada falei; terminei meu café e reparei o ar mais frio que veio do exterior após a porta ser aberta para a entrada de uma mulher de meia-idade.
Meu amigo olhou para ela, mas não demonstrou interesse. Depois continuou:
– Você deve imaginar a vida intensa que levo desde que fui trabalhar com esses papéis que todos chamam de ações. Não há nada que torne um homem mais nervoso. Por isso é preciso muita bebida e divertimentos nas poucas horas vagas que restam.
– Você então se tornou um homem de negócios – afirmei.
– Isso, um homem de negócios – repetiu.
– E a nossa cultura humanista?
– E por que você acha que não há cultura humanista nos negócios?
Nada respondi. Meneei a cabeça em sinal de dúvida e não voltei ao assunto.
– Sabe quantos picassos a bolsa de Londres pôde proporcionar a alguns de seus grandes investidores?
– Não fazia idéia que distribuir picassos a grandes investidores significasse apreço do mundo dos negócios pela cultura humanista – respondi.
– O mundo dos negócios tem muito apreço pelas artes.
– Você não pensa em voltar a escrever, publicar alguma coisa?
– Vivo minhas histórias na pele.
Riu e levou o copo aos lábios, esvaziando o que restava da vodca.
– Apenas eu as experimento, não preciso compartilhá-las com pessoa alguma – falou.
– Você, porém, está me contando, de certa forma outras pessoas as experimentam.
– Isso, algum privilegiado que escute as histórias de Willheinn, de sua própria voz.
Dois senhores entraram no pequeno bar. Sentaram-se sobre dois bancos próximos ao balcão. Um deles reconheceu o meu amigo, acenou-lhe em silêncio. O outro pediu uma dose de vodca polonesa. Seu companheiro protestou:
– Uma, não; duas.
– Pelo visto os velhinhos andam em forma – sorriu Willheinn, acenando para o empregado que lhe enchesse o copo mais uma vez.
– Escute, amigo, – continuou – essa cidade ainda me parece animada como antes, quero aproveitar o pouco tempo de minha estada aqui, quero ir ao cassino, e preciso também de mulheres...
– Há muito divertimento, mas para isso é preciso dinheiro...
– Dinheiro não é problema; aproveitemos, você é meu convidado – disse Willheinn.
– Pelo visto, o mercado de ações lhe proporciona uma boa vida.
– Aqui entre nós, – sussurrou – boa, não, ótima. E olha, acho que você também possui enorme talento para ter uma boa vida e ganhar o que ganho.
– Não estou interessado em ofertas de trabalho, – rebati de imediato – já tenho muito o que fazer.
– Bem, não entremos em pormenores, você é meu convidado enquanto eu estiver na cidade.
Almoçamos juntos, fomos depois ao bilhar. O homem de negócios encontrou os velhos amigos, conversou com todos, sempre muito alegre e cordial, acompanhado de um copo ora contendo vodca ora uísque. E quando o alertei que já bebera demais, falou:
– É para descontrair, a vida de um homem de negócios é muito tensa.
Jogou algumas partidas. Ganhou a maior parte delas. Quando ele experimentava o taco movimentando-o para frente e para trás, medindo de modo meticuloso como daria a tacada, acertando uma bola à outra, lançando-a em seguida na caçapa, era possível perceber o porquê de seu sucesso no mundo dos negócios.
Quando deixamos o salão, falou:
– Agora vamos às mulheres.
– Calma, camarada, nada é mais reprimido nos dias de hoje nesta cidade do que a prostituição.
– Não falo em prostituição, falo em mulheres.
– E qual o meio de arranjarmos mulheres agora, sobretudo com tanta rapidez? – perguntei.
– Sobretudo? Acreditava que você tivesse algumas conhecidas...
– Oh, meu caro, minha cotação não anda tão alta como suas ações.
Entramos no Bourg, um hotel razoável que eu gostava de freqüentar quando saía com alguma garota. Perguntei ao funcionário da recepção se tinha o telefone da Sra. Polovsky. Ele me olhou com desconfiança; após alguns segundos, no entanto, voltou com o número dela. A sra. Polovsky era uma cinqüentona que agenciava mulheres jovens.
Terminei a ligação e voltei ao meu amigo. Ele se sentara na sala de estar, olhava o imponente lustre de pingentes de cristal e já percebera que havia um bar no fundo da sala.
– Escute, Willheinn, dentro de uma hora chegarão duas mulheres. Você não sabe o quanto isso vai nos custar. E tem mais uma coisa: não falam a nossa língua.
– De onde são, afinal?
– Da Ucrânia.
– Não poderiam ser prostitutas locais?
– Não temos prostituas locais, – afirmei – nossas moças não gostam de correr riscos; as poucas que tínhamos emigraram, vivem hoje algumas na França, outras nos Estados Unidos e creio que são mais felizes.
Enquanto meu amigo recebia das mãos do empregado do bar uma nova dose de uísque, num copo bem mais requintado do que o do bar da sinuca, eu refletia sobre a situação em que me metera. Na verdade, jamais me animara a fazer amor com prostitutas, não conseguia sentir atração por mulheres que faziam sexo em troca de dinheiro.
Quando ele sentou na poltrona em frente e me perguntou mostrando-me seu longo copo se eu também não beberia, tudo que fiz foi sinalizar ao garçom pedindo também uma dose.
– Você não acha que é muito cedo para esse tipo de encontro? – perguntei a Willheinn.
– Por isso mesmo; vamos sair com essas garotas, dar-lhes muita bebida, dançar com elas e, no final, vamos trazê-las para cá e nos fartarmos!
– Não basta apenas treparmos com elas?
– Não, a trepada será o ponto alto da noite, precisamos antes aproveitar bastante ao lado de duas mulheres.
Admirava aquela disposição. Apesar de estar bebendo desde cedo, ainda demonstrava muita energia.
– Foram os ingleses que lhe preparam para gozar a vida com tanta intensidade? Não me parece que lá eles se divirtam tanto.
– Não, claro que não, – afirmou fazendo pose de ator – depois de minha presença naquele pequeno reino, eles evoluíram um pouco e aprenderam a arte de aproveitar a vida, mas creio que ainda lhes falta talento.
As mulheres não demoraram. Comecei a pensar como faríamos para circular pela cidade com as duas prostitutas, como desejava Willheinn. Não eram extravagantes, mas muito altas e demasiadamente estrangeiras. Chamariam a atenção. Uma delas tinha o corpo que chegava a delinear músculos vigorosos. Teria sido uma atleta? A outra era menor e tinha o cabelo curto. Senti uma ponta de atração por esta, que também me olhou fingindo timidez e encanto. Não era possível saber o que vestiam por baixo dos longos casacos. Sobressaía apenas que a de maior estatura usava botas de cano longo, moda há muito ultrapassada entre as mulheres de nossa cidade. Vieram acompanhadas de uma outra, que tinha ar masculino e sotaque italiano. Sussurrou-me que deveríamos pagá-la antecipado e, caso acontecesse algum problema, não deveríamos denunciar pessoa alguma. Diríamos que encontramos as mulheres em alguma rua do Centro. Como minha reação foi demorada, meu amigo quis saber o que conversávamos. Estendi-lhe uma das mãos.
– Trezentos e cinqüenta coroas antecipadas; sem ter o direito de saber se elas sabem dar uma boa trepada.
Deixamos os quartos reservados e tomamos um táxi. Willheinn foi no banco de trás entre as duas, enquanto a mim restou o banco ao lado do motorista.

quinta-feira, março 01, 2007

Tair Anderson

Na Tair Anderson há um restaurante que se situa no mesmo andar de um salão de bilhar. Quem quiser chegar a ele, precisará ir por um corredor que à primeira vista parece sombrio, mas logo em seguida descobrirá algumas lâmpadas que dão um pouco de brilho ao local. À direita encontrará a escada; é por ali que deve ir. Após o primeiro lance, o visitante vai reparar que a porta à esquerda é a do salão de bilhar e, ao voltar-se, verá outra porta, esta de vidro, cuja cor azulada não permite distinguir o interior; é o restaurante.
Esse percurso já era familiar a mim. Não pelo bilhar, mas propriamente pelo imenso e requintado salão que se descortina quando se cruza sua soleira, pois sempre há um maitre atento a quem chega e pronto a lhe abrir a porta. Jamais descobri como pode perceber a aproximação de algum cliente. Ao entrar, recebo os cumprimentos do dono da casa e a seguir sou conduzido à mesa onde permaneço às vezes em que apareço ali.
Naquele dia, recém chegado de Malbork, ainda remoendo minhas incertezas, encontrei Maurice. Na verdade, ele me esperava. À sua frente como de costume, vi um copo de leite. Interessante esse homem, levava o leite à boca e se podia perceber que a bebida lhe proporcionava supremo prazer. Ao contrário de nós, mais jovens, não consumia álcool, bebia seu leite e se mantinha mais alegre e entusiasmado do que qualquer outra pessoa, seu estado de espírito surpreenderia quem não o conhecesse. Maurice, como era de se esperar, mantinha atenção especial pelas artes, que sabia comentar com os pormenores de um crítico, embora não fosse essa sua profissão.
– Caro autor – levantou-se e me abraçou. – Oh, tenha a bondade, sente-se comigo – convidou-me.
Ele me prezava muito, mas naquele dia não me sentia bem para conversarmos sobre literatura. E, além disso, eu passava por um período de angústia, o que me fazia pensar se valia a pena gastar tanta tinta e papel.
– Estive em Berlim e vi na vitrine de uma livraria o seu primeiro livro.
– Os alemães têm muito mau gosto – afirmei.
Deu um largo sorriso, levou o copo de leite à boca e saboreou a bebida mais uma vez, pousou-o depois e continuou estampar a fisionomia alegre. Seu rosto brilhava e lembrava um pouco os dias ensolarados de verão.
– Não fale isso, os alemães sempre cometem alguns erros, mas sobre o seu livro eles acertaram.
O garçom se aproximou e me perguntou em voz baixa o que eu beberia. Respondi que me trouxesse a bebida de sempre.
Maurice voltou ao assunto mais uma vez.
– Sei pelo que passam os jovens autores. Freqüentemente questionam se a escrita vale a pena. Isso é comum a todos os artistas, independente de qual seja a arte que praticam. Há quem diga que só vale a pena qualquer tentativa de criação se houver algo a acrescentar, caso contrário é melhor nada fazer. Não penso assim. Se tal raciocínio fosse verdadeiro, teríamos de nos desfazer de mais da metade do que foi produzido pela humanidade.
O garçom se aproximou de novo, agora trazia uma bandeja prateada que continha a garrafa de genebra e pequeno cálice. Colocou-o sobre a mesa e o completou com o líquido branco. Após fazer ligeira reverência, retirou-se.
– Acho que já falei sobre isso, mas escute mais uma vez. Sempre achei os críticos contemporâneos por muito racionais. Esquadrinham a obra sob perspectivas teóricas que não levam em consideração a sensibilidade. Traçam a arquitetura da criação como uma planta de edifício. E olha que é arriscado falar assim, pois há vários edifícios extremamente poéticos.
Maurice sorriu depois das duas últimas palavras, voltou o rosto a uma das janelas – estavam todas fechadas – e fez como se procurasse algum pássaro que cruzasse o céu portando segredo indecifrável.
Nessa altura, já esvaziara meu cálice. O garçom retornou e perguntou se eu desejava mais alguma coisa. Acenei que me repetisse a dose.
– Veja só; é lógico que toda a obra tem uma estrutura, uma forma; não se poderia se constituir sem isso, mas as pessoas têm a sensibilidade. O crítico também deve tê-la. O leitor não quer saber quantos pilares sustentam a construção, mas quer perceber os olhos dos personagens, reparar suas marcas faciais. Sim, marcas faciais, você nunca pensou nisso?
Eu olhava para ele e queria poder sentir aquela alegria toda e ver tudo o que ele via. Caso eu conseguisse, talvez não fosse mais necessário escrever. Ele sempre estava preste a descobrir alguma coisa.
– É claro, caro amigo, que o crítico também é um leitor, mas é alguém especializado, alguém mais equipado para tal fim. É preciso, no entanto, dizer que falta a muitos sensibilidade. Não estou falando que se deve ceder ao gosto do público, mas quando você diz: "aquela mulher mergulhou num mar de álcool e ali encontrou o atalho de uma nova e provisória vida" você está dizendo algo a mais, não? – assegurava ele –, o que você escreve tem esse estopim.
Diante dessa sua palavra, me veio à mente que tudo poderia ir pelos ares. Depois sorri e ele acabou por me perguntar de que eu ria.
Dei de ombros.
– Falta naqueles que analisam livros hoje em dia um pouco de sensibilidade. Não falo de pieguice, é claro. Não se pode tratar uma obra como uma equação matemática.
– O dono do nosso vespertino chora pelas lágrimas dos velhos românticos.
Ele deu uma sonora gargalhada.
– O dono do nosso vespertino chora pelos leitores que ele não consegue manter a cada dia que passa. O jornal envelheceu junto com ele – completou.
Entraram três homens, passaram por nós e nos cumprimentaram de modo formal. Sentaram-se em uma mesa próxima a uma das janelas. Percebi que pediram a um dos garçons que deixasse sobre a mesa uma garrafa de vodka. Um deles era o inspetor de tráfego do setor sul, controlava o acesso à segunda ponte sobre o rio Knopt; creio que não estava de serviço.
Aproveitei a chegada deles para dizer ao meu interlocutor:
– Veja, a vida é feita de homens práticos. Preocupam-se com profissões, divertimentos em bares, garrafas de vodkas e ocasionalmente mulheres, não estão interessados em arte, menos ainda em literatura.
– Não diga isso, jovem autor, não fale dessa forma. As pessoas precisam de fantasia. E isso é tudo.
– Fantasia? - repeti.
– Isso, fantasia; nunca pensou nisso?
– Já – falei –, mas de uma outra forma.
– As obras de arte precisam suprir esse ponto: fantasia. Há autores que se envergonham, que querem transmitir algo nobre, discussões teóricas, ensinamentos, revelações, etc. Mas o homem busca a arte apenas por isso: fantasia. As pessoas querem se divertir. Isso não quer dizer que o artista deva realizar sua obra de modo vulgar.
Não concordei em parte com o que falava, mas continuei ouvindo.
Ele pediu ao garçom mais um copo de leite e continuou:
– Na maioria das vezes, os estudiosos também não admitem isso, tratam a arte como uma ciência, querem encontrar os princípios que norteiam a criação, esquecem o primado da sensibilidade, da fantasia, esquecem que há uma centelha em cada grande obra que não pode ser captada por instrumentos cirúrgicos. Essa centelha está na realidade abstrata, muitas vezes é alguma coisa que não se consegue dizer, mas a sensibilidade consegue captar. Imagine o teatro grego, as epopéias, os grandes poetas, suas viagens e seu espanto, sem a fantasia.
Reparei meu cálice vazio mais uma vez. Ante nova investida do garçom, fiz sinal que por hora não mais beberia. Meu interlocutor acabava seu copo de leite.
Um casal de jovens entrou no restaurante e se dirigiu a uma das mesas junto ao balcão do bar. O rapaz puxava a moça por um dos braços. Ela resistia e fazia crer que ele a estava machucando. Olhei na direção deles. Quando reparou que eu os observava, o jovem soltou a moça. Ela esfregou uma das mãos sobre o local dolorido, após relutar acabou por se sentar na cadeira que ele lhe oferecia. A seguir, pareceu acalmar-se. Um dos funcionários trouxe dois longos cardápios. Eles, compenetrados, se puseram a lê-los.
Maurice distraiu-se enquanto eu acompanhava o casal. Pareceu não se impressionar com a chegada dos jovens. Olhou novamente em direção à rua, embora não pudesse vê-la, depois pareceu investigar os três homens que tomavam vodka. A seguir voltou-se para o bar, copos e taças dependurados, garrafas de todo o tipo de bebida, e creio que lamentou por sua bebida predileta não figurar entre elas.
– Bem, o que você está escrevendo agora? – lançou-me a pergunta inesperada.
– Nada – retorqui de imediato.
Riu alto de novo. E depois disse que não acreditava, que minha expressão sempre denunciava que eu estava a criar algo explosivo. Não era possível me ver sem imaginar que eu tocava nos subterrâneos da alma. Uso aqui suas próprias palavras.
– Não quero aborrecê-lo com minha conversa – continuou –, mas quis encontrar você para lhe parabenizar e dizer que não desista. Suas histórias são importantes e interessantes. Há quem deseja ver nas obras de arte algum tipo de revelação. Cada um pode procurar o que bem entender. Mas não é função do artista ser uma espécie de deus que leva às pessoas idéias sobre o que elas jamais pensaram. É mais importante a fantasia, a criação de novos mundos. Aqui, talvez o artista se iguale a deus. Os artistas criam novos mundos que passam a existir na mente daqueles que admiram suas obras. E são mundos tão importantes quanto os que nossos próprios olhos são capazes de distinguir.
Maurice disse que tinha pressa. Levantou-se e se foi. Passou pelo balcão e deixou algum dinheiro. Mais tarde descobri que pagara o pouco que consumira, deixara paga a minha parte e mais uma reserva para caso eu pedisse algo para comer. Fez isso por cortesia, sabia que minha situação financeira não ia mal.
Tirei do bolso pequeno caderno e comecei a escrever uma nova história. Nela, uma moça vinha de trem do estrangeiro para encontrar o namorado. Era tímida e arredia. Para tomar alguma decisão precisava ser pega pelo braço. O rapaz gostava dela, tentaria a vida a seu lado. Mas ambos ainda eram muito jovens e imaturos. Talvez vivessem algum tempo juntos, mas depois ela partiria. Ele em algum momento poderia ir à sua procura. Mais aí a história já estava avançando a passos rápidos. Era preciso esperar, escrever sobre o que faziam hoje, seus sonhos, ideais, planos para o futuro. Que futuro? Talvez um futuro sob a capa do jogo e do álcool, como ocorrera a Anne.
Quando descansei o lápis e levantei a cabeça, vi que a jovem me olhava. Será que tivera a sensibilidade de perceber que eu tentava escrever a sua história? E ela até que lembrava Anne.

domingo, fevereiro 11, 2007

Alpengarden

Eu olhava as montanhas através de uma janela lateral quando o garçom nos trouxe a garrafa de champanhe. Anne acompanhava os gestos dele, desviando o olhar apenas para encontrar meu rosto. Tudo levava a crer que se sentia extremamente feliz por eu estar a seu lado; queria minha cumplicidade naquele ato que representava a continuação de uma longa amizade. E eu que não pensava ser recebido com tanta facilidade. A rolha explodiu. Anne sorriu, depois se aproximou e me beijou os lábios, enquanto o garçom se preocupava em encher nossas taças, sem deixar que a bebida transbordasse. A seguir nos cumprimentou e se retirou. Ela pegou uma das taças e a elevou dizendo em voz um pouco alta para o local:
– À nossa eterna amizade.
Correspondi em voz e gestos. Então tocamos uma taça à outra e bebemos alguns goles.
– Você é a última pessoa que eu esperaria aqui em Malbork – falou.
– Sério?
– Sim.
– Por quê?
– Não sei.
– Você não acreditava que, ao partir, me faria falta?
– Não, quando o conheci, não notei interesse de sua parte. Você naqueles breves dias me tratou friamente.
– E depois, quando nos encontramos no centro e também naquele restaurante à margem esquerda do Knopt?
– Não sei, senti que seus interesses eram outros, mas, o que há de se fazer? São ventos de outros tempos, não? – ela falava sem demonstrar ressentimento.
O pequeno restaurante onde nos encontrávamos era decorado de modo rústico, o estilo tentava acompanhar o aspecto da região montanhosa. Naquele momento, éramos os únicos freqüentadores. Havia apenas um garçom e um outro empregado, que permanecia atrás do balcão. De todas as janelas seria possível apreciar diversos ângulos da paisagem, caso a diferença de temperatura interior não deixasse os vidros tão embaçados. Mas era possível imaginar que se destacavam, sobretudo, as escarpas cobertas pela neve.
–Você está surpreso com o local? – perguntou ao ver que eu movimentava a cabeça em algumas direções.
– De certo modo, sim.
– Aqui é bastante acolhedor.
Anne escorregou as mãos sobre as minhas, lançou-me os olhos e perguntou:
– Você foge de alguma coisa?
– Não, lógico que não, por que me pergunta isso?
– Acho sua presença estranha.
– Vim aqui por você, acredite.
Apertou-me uma das mãos com força, depois pegou a garrafa e colocou mais um pouco de champanhe na própria taça. Tomou um longo gole ainda com os olhos voltados para mim e, quando pousou a taça novamente, sorriu de maneira provocante. Depois, talvez para desfazer qualquer mal-entendido, disse:
– Não me leve a mal, quero apenas a sua amizade.
Ficamos em silêncio durante algum tempo. O vento sibilava em torno da construção; percebi que o homem atrás do balcão colocava pedaços de madeira na lareira e tentava concentrar o fogo. A súbita fumaça interior provocou sensação agradável. Anne aproveitou para acender um cigarro, depois esfregou as mãos. Seu rosto brilhava, pensei em uma mulher revestida por pedras preciosas. De repente, não sei porque razão, a imagem de um arco-íris invadiu-me a mente. O silêncio foi quebrado por sua voz macia, que acentuou as cores que lhe serviam de auréola:
– Não se preocupe com o que conversamos naqueles tempos; já não penso em me matar – ao fim dessas palavras, riu com algum espalhafato.
– Ao que parece, nesta cidade todos admiram você. E o jogo é outro forte motivo...
– Talvez – interrompeu-me, soltou um pouco da fumaça ao mesmo tempo em que falava: – a vida tem suas surpresas.
– A vida também trapaceia – quis insinuar, sorrindo ao pronunciar a última palavra.
– Talvez trapaça não seja a palavra adequada, a vida é a vida e não um jogo.
– Entendi – afirmei –, se fosse um jogo certamente você venceria!
– Concordo – enquanto falava, virou-se para o garçom que chegava com uma grande travessa. Depois me disse: – Acompanhe-me, por favor, não como coisa alguma desde a madrugada.
O almoço transcorreu entre silêncios e sorrisos de Anne, que procurava minha cumplicidade até mesmo em seus movimentos mínimos. Por vezes cheguei a pensar que se tratava de alguém muito carente e que, embora não reconhecesse, desejava minha permanência dali em diante, sempre a seu lado. Mas, a cada frase que sua voz emoldurava, também pude sentir a presença de uma mulher misteriosa, alguém que me deixava confuso; e não adiantava pedir esclarecimento a mais, corria-se o risco de tudo se tornar ainda mais nebuloso.
Depois da refeição foi nos servido o café, que era forte e de cheiro muito agradável. Experimentamos a bebida com um tipo de tranqüilidade que apenas naquele lugar se poderia usufruir. Reparei que Anne descobrira novo gosto pela vida. Na verdade, ela saboreava as palavras que dizia, talvez as que ouvia, saboreava a bebida, o gosto doce do cigarro, a comida delicada e agora, ao pousar a xícara sobre a mesa, demonstrava o prazer que lhe proporcionaram os últimos goles do café. É provável que o modo como vivia em Malbork fosse a grande razão de amar tanto a vida, como era possível perceber naquele instante. Comecei a achar que minha estada a seu lado teria de ser breve. Eu não queria atrapalhar a felicidade daquela mulher. Ao mesmo tempo, também concluí que viajara motivado por algo extremamente etéreo, procurava um passado que não mais existia. Não se deve sair em busca do passado; tais palavras tão fáceis e de senso comum só então passaram a fazer sentido para mim.
Descemos as montanhas olhando a paisagem branca. Ela chegou a baixar o vidro da janela à sua esquerda. Frio intenso invadiu o automóvel fazendo o próprio motorista olhar assustado para trás. Depois percebemos que era uma brincadeira de Anne. Às vezes, agia como criança. Riu exagerada do susto que pregou, principalmente a mim. Depois subiu o vidro novamente; permanecemos então no mais incômodo silêncio. Segurou as minhas mãos, aproximou-se e tocou com os seus os meus lábios. Quando voltou à posição anterior, ainda permaneceu com uma das mãos junto às minhas.
– Não me leve a mal, fui tomada por um impulso incontrolável – riu alto.
Pediu ao chofer que nos deixasse no Malgrandtown, como era chamado o pequeno centro.
Caminhamos lado a lado, cobertos pelos pesados casacos de inverno. Alguém acenou para Anne. Ela retribuiu o aceno e fez outro gesto, incompreensível para mim. Entramos por uma pequena rua, reservada apenas a pedestres, onde pude apreciar o comércio local. Observei uma fileira de lojas que aparentavam uniformidade apenas nas portas fechadas e nas vitrines que exibiam suas mercadorias. Tudo estava arranjado de forma artística. As pessoas daquele lugar pareciam se preocupar muito com os detalhes. Arrumavam tudo como se os objetos fossem obras de arte de extremo valor. Entramos por uma passagem que parecia levar a uma das estações de trens. O caminho no início era subterrâneo, com a entrada coberta por enorme proteção de vidro. Servia de teto panorâmico para que se apreciasse a neve caindo do céu. Percorremos o local, que era bem aquecido. Observei várias lojas requintadas, principalmente de roupas, com produtos de vários lugares. As vidraças reluziam, manequins bens vestidos exibiam a moda mais recente, também ostentavam jóias. Aqui e ali viam-se livrarias e cafés. Máquinas de expresso italianas espumavam a bebida quente e de odor forte. Anne me falou em meio às pessoas que circulavam pelo local que o produto vinha da América do Sul. Quando terminamos de percorrer a primeira passagem, encontramos escadas rolantes que nos levaram de novo ao patamar da rua, mas, logo a seguir, ingressamos em outra escada que nos deixou um andar acima. Ali o trem passava embutido em um túnel todo de vidro que permitia apreciá-lo por inteiro. Não se escutava barulho de máquina alguma; o silêncio era rompido apenas perlo ir e vir das pessoas, todas elas por sinal muito bonitas e bem vestidas.
– Onde estamos? – perguntei a Anne.
– Num dos lugares mais interessantes do planeta...
Ela exagerava, porém sentia-se ali clima futurista em harmonia com estilo acolhedor.
Entramos numa loja que vendia chocolates. A vendedora sorriu ao vê-la, se aproximou surpresa.
– É uma honra termos a senhorita em nosso pequeno bistrô – falou baixo e, após a últimas palavras, dirigiu o olhar para mim.
– Oh, ia me esquecendo – dizia Anne –, meu amigo está surpreso, não sabia que Malbork era tão agradável nos tempos atuais.
Apresentou-me à mulher, que vestia um conjunto vermelho de gravatinha preta.
– Estou realmente encantado – afirmei e me sentei diante de Anne.
Ela pediu um tipo de bebida que não compreendi o nome: era um composto de chocolate, licor e uísque. Eu aceitei apenas um expresso italiano.
– Você pretende ficar durante quanto tempo na cidade? – perguntou enquanto tirava um cigarro do maço e o levava aos lábios.
– Ainda não sei, mas não pretendo permanecer por muito tempo, sinto que posso atrapalhar suas atividades.
– Que atividades? Você vai querer jogar contra mim?
– Não, é lógico que não. Eu não seria capaz. E, além do mais, não teria tanto dinheiro para perder.
– Você é um homem de sorte, creio que não perderia.
– E Schrobel? Você crê que ele me deixaria ganhar. Aparentou-me impiedoso.
Ela virou-se tentando demonstrar seriedade.
– Oh, não me fale em Schrobel.
– Como, não? Vocês arrasaram os adversários.
– Aquilo foi mero acaso; não via o poeta há um ano...
– Mais pelo visto, vocês dois continuam em forma.
– Não brinque com essas coisas, nada tenho a ver com Schrobel.
Anne desviou os olhos para o longo corredor e apreciou pelo vidro duas adolescentes que passavam vistosas, trajando roupas coloridas; ambas cobriam a cabeça com gorros de cor verde. Evitei voltar ao assunto do jogo. Quando a garçonete surgiu com a bandeja que comportava taças e xícaras, Anne pronunciou em minha direção algumas palavras carinhosas:
– Não fique bravo comigo. Estou até precisando de alguém e você é uma boa pessoa. E é inteligente. Fique mais um pouco, ou até mesmo se estabeleça por aqui; poderíamos nos ver mais e então quem sabe? O futuro... o futuro não podemos prever, mas há indícios de que combinamos.
– Anne, essa sua proposta é muito séria. Você disse o tempo todo que queria apenas a minha amizade, agora fala de modo como se poderíamos tentar alguma coisa juntos, uma vida lado a lado. É isso mesmo?
– É e não é – falou enquanto levava a taça a boca.
– Gosto muito de você, estou aqui porque senti sua falta, mas não posso aceitar essa resposta. É o mesmo que você me dissesse que não está interessada em fazer tentativa alguma.
Ela sorriu mais uma vez. As adolescentes tinham parado diante de uma vitrina de roupas, encontraram mais duas amigas, entre elas havia agora também um rapaz. Todos sorriam e pareciam estar combinando alguma coisa, talvez uma festa, pensei. Senti inveja deles. Viviam a idade em que se têm muitas certezas.
– Anne, vou ver você jogar durante alguns dias, vou fingir que não a conheço. Aliás, os garçons daquele hotel são muito gentis. Antes mesmo de eu perceber de quem se tratava, um deles já me informava sobre você. Ficarei, manterei distância, mas talvez não suporte por muito tempo esse seu jeito de ver as coisas.
– Veja – falou de novo –, não exijo coisa alguma de você. Também gosto de você, mas não posso me comprometer, entende?
– Entendo.

Aquela noite não fui ao salão de jogos. Permaneci no meu quarto com o aparelho de TV ligado; tentava estar a par do que acontecia pelo mundo.
Nos dias seguintes, acompanhei Anne durante a tarde e dormi com ela algumas noites. Deixava aviso à recepcionista para que permitisse a minha entrada. Não consegui, porém, conviver durante muito tempo com aquele cotidiano de jogo. Ela vivia daquilo, quase sempre ganhava. E também bebia muito. Tudo era, para mim, desgastante ao extremo. Eu também já jogara e ainda bebia, mas havia algo mais importante que eu precisava fazer.
Seis semanas após ter chegado a Malbork, eu partia. Despedi-me de Anne. Ela não disfarçou as lágrimas. Falei que poderia viver com ela, mas não naquelas circunstâncias.
Quando o trem, resfolegando, deixou a estação, pressenti que não mais nos veríamos.