segunda-feira, abril 30, 2007

O Líbano

– Vem do Líbano, esposa minha, vem do Líbano, vem...

Foi o pedido que fiz na última vez que lhe consegui falar pelo telefone. Não só sentia saudades dela – já ausente havia seis semanas devido aquela malfadada viagem –, a casa transformara-se num autêntico caos. Viajou com a intenção de rever parentes que deixara fazia décadas, mas pelo visto decidiu visitar todos os habitantes da cidade.

Lembro-me da manhã de um dos primeiros dias, após sua partida, havia sobre a mesa da cozinha um ovo partido. Eu sequer limpara a gema que escorrera quando tentara fazer um omelete para o jantar, na noite anterior. Mal conseguia me alimentar. Já não agüentava comer pão todos os dias. Logo que ela viajou, almocei e jantei algumas vezes na casa de algum parente. Mas não demoraram a me despachar, ainda que de modo delicado. Vivi pelas ruas, comendo em pensões, em botecos e restaurantes populares.

Num desses almoços, conheci um judeu, chamava-se Jacó. Foi a minha salvação. Cumprimentou-me educadamente e continuou comendo sua vitela, com todo o cuidado do mundo. Não desperdiçava parte alguma. O conhecimento que travei com aquele sexagenário não deixou de me ser útil. Jacó andava por toda a cidade e convidou-me a acompanhá-lo. Ele conhecia grande número de pessoas. E quando não as conhecia, tornava-se imediatamente amigo delas. Nada lhe escapava. Um almoço beneficente, uma rodada de chope (ele bebia pouco), um jogo de canastra, um chá em homenagem a algum amigo, até mesmo velório, onde sempre se servia alguma coisa. Conhecia os donos de bares e restaurantes. Cumprimentavam-no com júbilo e não lhe negavam coisa alguma. Jacó nem precisava pedir, era servido assim que chegava. Queria perguntar-lhe a razão de tantos conhecimentos, de tantos favores que lhe deviam. Mas temia magoá-lo. Era bom estar a seu lado. Ele não precisava falar muito. Sempre era beneficiado com um dos agrados que lhe faziam. Certa vez lhe perguntei se era casado. Olhou-me com reprovação. Nada respondeu e seguiu em frente. Pela sua fisionomia, ficou constatado que não faria aquela besteira. Não podia ser casado, quando vivia pela cidade a contatar toda aquela gente. Andar com ele aonde quer que fosse não exigia quase dinheiro. Até mesmo o transporte tomávamos de graça. Num dos primeiros dias em que caminhávamos juntos pela cidade, quando ainda me via cabisbaixo e saudoso de minha esposa, perguntou:

– Sua esposa está no Líbano?

– Sim – respondi –, no Líbano.

– Você conhece o Líbano? – continuou.

– Não – eu disse um tanto óbvio.

– Meu pai era de lá – sorriu (embora vivesse de bem com a vida, sorria pouco) –, somos judeus libaneses. A seguir, acrescentou de modo muito natural: – diga a sua esposa para ficar mais tempo por lá. É um bom lugar e você só tem a ganhar com isso.

Foi uma das poucas vezes em que me falou de sua vida particular e, ao mesmo tempo, deu opinião sobre a minha. Jacó permanecia silencioso durante a maior parte do tempo. Mas quando falava dizia coisas acertadas. Não conheci quem ousasse rebatê-lo, ou contestar suas opiniões. O que falava era lei.

Enfim chegou o dia de não poder mais acompanhá-lo com tanta freqüência. Minha esposa regressaria. Convidei-o para ir ao aeroporto. Pela primeira vez vi Jacó fazer uma negativa. Deu como desculpa desgostar de aviões. Disse-me que já viajara muito, estava cansado de jatos e aeroportos. Despediu-se com um breve gesto.

Desde então o vejo pouco. Ainda o encontrei uma vez, quando eu ia pela rua com ela, minha esposa. Quis apresentá-la, mas ele pareceu-me apressado, apenas me acenou, de longe.

Estava bem vestido. É provável que ia como convidado especial a mais um almoço beneficente.

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