quinta-feira, março 01, 2007

Tair Anderson

Na Tair Anderson há um restaurante que se situa no mesmo andar de um salão de bilhar. Quem quiser chegar a ele, precisará ir por um corredor que à primeira vista parece sombrio, mas logo em seguida descobrirá algumas lâmpadas que dão um pouco de brilho ao local. À direita encontrará a escada; é por ali que deve ir. Após o primeiro lance, o visitante vai reparar que a porta à esquerda é a do salão de bilhar e, ao voltar-se, verá outra porta, esta de vidro, cuja cor azulada não permite distinguir o interior; é o restaurante.
Esse percurso já era familiar a mim. Não pelo bilhar, mas propriamente pelo imenso e requintado salão que se descortina quando se cruza sua soleira, pois sempre há um maitre atento a quem chega e pronto a lhe abrir a porta. Jamais descobri como pode perceber a aproximação de algum cliente. Ao entrar, recebo os cumprimentos do dono da casa e a seguir sou conduzido à mesa onde permaneço às vezes em que apareço ali.
Naquele dia, recém chegado de Malbork, ainda remoendo minhas incertezas, encontrei Maurice. Na verdade, ele me esperava. À sua frente como de costume, vi um copo de leite. Interessante esse homem, levava o leite à boca e se podia perceber que a bebida lhe proporcionava supremo prazer. Ao contrário de nós, mais jovens, não consumia álcool, bebia seu leite e se mantinha mais alegre e entusiasmado do que qualquer outra pessoa, seu estado de espírito surpreenderia quem não o conhecesse. Maurice, como era de se esperar, mantinha atenção especial pelas artes, que sabia comentar com os pormenores de um crítico, embora não fosse essa sua profissão.
– Caro autor – levantou-se e me abraçou. – Oh, tenha a bondade, sente-se comigo – convidou-me.
Ele me prezava muito, mas naquele dia não me sentia bem para conversarmos sobre literatura. E, além disso, eu passava por um período de angústia, o que me fazia pensar se valia a pena gastar tanta tinta e papel.
– Estive em Berlim e vi na vitrine de uma livraria o seu primeiro livro.
– Os alemães têm muito mau gosto – afirmei.
Deu um largo sorriso, levou o copo de leite à boca e saboreou a bebida mais uma vez, pousou-o depois e continuou estampar a fisionomia alegre. Seu rosto brilhava e lembrava um pouco os dias ensolarados de verão.
– Não fale isso, os alemães sempre cometem alguns erros, mas sobre o seu livro eles acertaram.
O garçom se aproximou e me perguntou em voz baixa o que eu beberia. Respondi que me trouxesse a bebida de sempre.
Maurice voltou ao assunto mais uma vez.
– Sei pelo que passam os jovens autores. Freqüentemente questionam se a escrita vale a pena. Isso é comum a todos os artistas, independente de qual seja a arte que praticam. Há quem diga que só vale a pena qualquer tentativa de criação se houver algo a acrescentar, caso contrário é melhor nada fazer. Não penso assim. Se tal raciocínio fosse verdadeiro, teríamos de nos desfazer de mais da metade do que foi produzido pela humanidade.
O garçom se aproximou de novo, agora trazia uma bandeja prateada que continha a garrafa de genebra e pequeno cálice. Colocou-o sobre a mesa e o completou com o líquido branco. Após fazer ligeira reverência, retirou-se.
– Acho que já falei sobre isso, mas escute mais uma vez. Sempre achei os críticos contemporâneos por muito racionais. Esquadrinham a obra sob perspectivas teóricas que não levam em consideração a sensibilidade. Traçam a arquitetura da criação como uma planta de edifício. E olha que é arriscado falar assim, pois há vários edifícios extremamente poéticos.
Maurice sorriu depois das duas últimas palavras, voltou o rosto a uma das janelas – estavam todas fechadas – e fez como se procurasse algum pássaro que cruzasse o céu portando segredo indecifrável.
Nessa altura, já esvaziara meu cálice. O garçom retornou e perguntou se eu desejava mais alguma coisa. Acenei que me repetisse a dose.
– Veja só; é lógico que toda a obra tem uma estrutura, uma forma; não se poderia se constituir sem isso, mas as pessoas têm a sensibilidade. O crítico também deve tê-la. O leitor não quer saber quantos pilares sustentam a construção, mas quer perceber os olhos dos personagens, reparar suas marcas faciais. Sim, marcas faciais, você nunca pensou nisso?
Eu olhava para ele e queria poder sentir aquela alegria toda e ver tudo o que ele via. Caso eu conseguisse, talvez não fosse mais necessário escrever. Ele sempre estava preste a descobrir alguma coisa.
– É claro, caro amigo, que o crítico também é um leitor, mas é alguém especializado, alguém mais equipado para tal fim. É preciso, no entanto, dizer que falta a muitos sensibilidade. Não estou falando que se deve ceder ao gosto do público, mas quando você diz: "aquela mulher mergulhou num mar de álcool e ali encontrou o atalho de uma nova e provisória vida" você está dizendo algo a mais, não? – assegurava ele –, o que você escreve tem esse estopim.
Diante dessa sua palavra, me veio à mente que tudo poderia ir pelos ares. Depois sorri e ele acabou por me perguntar de que eu ria.
Dei de ombros.
– Falta naqueles que analisam livros hoje em dia um pouco de sensibilidade. Não falo de pieguice, é claro. Não se pode tratar uma obra como uma equação matemática.
– O dono do nosso vespertino chora pelas lágrimas dos velhos românticos.
Ele deu uma sonora gargalhada.
– O dono do nosso vespertino chora pelos leitores que ele não consegue manter a cada dia que passa. O jornal envelheceu junto com ele – completou.
Entraram três homens, passaram por nós e nos cumprimentaram de modo formal. Sentaram-se em uma mesa próxima a uma das janelas. Percebi que pediram a um dos garçons que deixasse sobre a mesa uma garrafa de vodka. Um deles era o inspetor de tráfego do setor sul, controlava o acesso à segunda ponte sobre o rio Knopt; creio que não estava de serviço.
Aproveitei a chegada deles para dizer ao meu interlocutor:
– Veja, a vida é feita de homens práticos. Preocupam-se com profissões, divertimentos em bares, garrafas de vodkas e ocasionalmente mulheres, não estão interessados em arte, menos ainda em literatura.
– Não diga isso, jovem autor, não fale dessa forma. As pessoas precisam de fantasia. E isso é tudo.
– Fantasia? - repeti.
– Isso, fantasia; nunca pensou nisso?
– Já – falei –, mas de uma outra forma.
– As obras de arte precisam suprir esse ponto: fantasia. Há autores que se envergonham, que querem transmitir algo nobre, discussões teóricas, ensinamentos, revelações, etc. Mas o homem busca a arte apenas por isso: fantasia. As pessoas querem se divertir. Isso não quer dizer que o artista deva realizar sua obra de modo vulgar.
Não concordei em parte com o que falava, mas continuei ouvindo.
Ele pediu ao garçom mais um copo de leite e continuou:
– Na maioria das vezes, os estudiosos também não admitem isso, tratam a arte como uma ciência, querem encontrar os princípios que norteiam a criação, esquecem o primado da sensibilidade, da fantasia, esquecem que há uma centelha em cada grande obra que não pode ser captada por instrumentos cirúrgicos. Essa centelha está na realidade abstrata, muitas vezes é alguma coisa que não se consegue dizer, mas a sensibilidade consegue captar. Imagine o teatro grego, as epopéias, os grandes poetas, suas viagens e seu espanto, sem a fantasia.
Reparei meu cálice vazio mais uma vez. Ante nova investida do garçom, fiz sinal que por hora não mais beberia. Meu interlocutor acabava seu copo de leite.
Um casal de jovens entrou no restaurante e se dirigiu a uma das mesas junto ao balcão do bar. O rapaz puxava a moça por um dos braços. Ela resistia e fazia crer que ele a estava machucando. Olhei na direção deles. Quando reparou que eu os observava, o jovem soltou a moça. Ela esfregou uma das mãos sobre o local dolorido, após relutar acabou por se sentar na cadeira que ele lhe oferecia. A seguir, pareceu acalmar-se. Um dos funcionários trouxe dois longos cardápios. Eles, compenetrados, se puseram a lê-los.
Maurice distraiu-se enquanto eu acompanhava o casal. Pareceu não se impressionar com a chegada dos jovens. Olhou novamente em direção à rua, embora não pudesse vê-la, depois pareceu investigar os três homens que tomavam vodka. A seguir voltou-se para o bar, copos e taças dependurados, garrafas de todo o tipo de bebida, e creio que lamentou por sua bebida predileta não figurar entre elas.
– Bem, o que você está escrevendo agora? – lançou-me a pergunta inesperada.
– Nada – retorqui de imediato.
Riu alto de novo. E depois disse que não acreditava, que minha expressão sempre denunciava que eu estava a criar algo explosivo. Não era possível me ver sem imaginar que eu tocava nos subterrâneos da alma. Uso aqui suas próprias palavras.
– Não quero aborrecê-lo com minha conversa – continuou –, mas quis encontrar você para lhe parabenizar e dizer que não desista. Suas histórias são importantes e interessantes. Há quem deseja ver nas obras de arte algum tipo de revelação. Cada um pode procurar o que bem entender. Mas não é função do artista ser uma espécie de deus que leva às pessoas idéias sobre o que elas jamais pensaram. É mais importante a fantasia, a criação de novos mundos. Aqui, talvez o artista se iguale a deus. Os artistas criam novos mundos que passam a existir na mente daqueles que admiram suas obras. E são mundos tão importantes quanto os que nossos próprios olhos são capazes de distinguir.
Maurice disse que tinha pressa. Levantou-se e se foi. Passou pelo balcão e deixou algum dinheiro. Mais tarde descobri que pagara o pouco que consumira, deixara paga a minha parte e mais uma reserva para caso eu pedisse algo para comer. Fez isso por cortesia, sabia que minha situação financeira não ia mal.
Tirei do bolso pequeno caderno e comecei a escrever uma nova história. Nela, uma moça vinha de trem do estrangeiro para encontrar o namorado. Era tímida e arredia. Para tomar alguma decisão precisava ser pega pelo braço. O rapaz gostava dela, tentaria a vida a seu lado. Mas ambos ainda eram muito jovens e imaturos. Talvez vivessem algum tempo juntos, mas depois ela partiria. Ele em algum momento poderia ir à sua procura. Mais aí a história já estava avançando a passos rápidos. Era preciso esperar, escrever sobre o que faziam hoje, seus sonhos, ideais, planos para o futuro. Que futuro? Talvez um futuro sob a capa do jogo e do álcool, como ocorrera a Anne.
Quando descansei o lápis e levantei a cabeça, vi que a jovem me olhava. Será que tivera a sensibilidade de perceber que eu tentava escrever a sua história? E ela até que lembrava Anne.

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