sexta-feira, maio 11, 2007

Psicanálise
Na verdade, eu preciso reconhecer que gostava dele. Ele vinha para as sessões com antecedência, lia as revistas que se amontoavam na sala de espera, sempre tinha algo a comentar. Depois deitava no divã e falava livremente. Era dentre os freqüentadores de meu consultório o mais culto. Elaborava questões sobre as quais eu jamais pensara. Às vezes, eu me envolvia em suas histórias e em suas construções sobre arte ou literatura. Confesso que se ele abandonou a análise fui eu que não tive capacidade de mantê-lo. E ele veio durante muitos anos. Conseguia não se repetir, seus assuntos mudavam de perspectiva ou traziam sempre novidades. O que aconteceu e serviu de pretexto para que encerrasse o tratamento – aliás, não o encarava como tratamento – não foi de responsabilidade dele. Eu, como psicanalista, é que tenho de dar conta e asseguro a você que não estou sendo tão rigorosa comigo mesma. E ele ainda me "eu sou a parte mais frágil nessa relação". Relação, eis uma palavra interessante. Todo analisando tem relação com seu psicanalista, claro que essa não deixa de ser uma afirmação redundante. Não estou falando, é claro, de uma concepção vulgar de relação, mas se me vem à mente o vocábulo, não está isento de todo o tipo de significado, não está livre de todas as metáforas. Sou eu quem está pensando nisso, logo, faz parte também de meu universo. É lógico que ele também deve ter ido algumas vezes por esse caminho. Sempre, sobretudo no início da análise, há aquele afã de querer conquistar a psicanalista, por isso há tanta procura por profissionais do sexo oposto. Quando a relação é com um profissional do mesmo sexo, a análise não se estende por tempo tão longo. Nossa relação nunca foi conflituosa. Muitos acham que o conflito no processo de análise é saudável e quando é suportado pelo analisando é mais eficaz. Ele suportou bem alguns embates, mas nossa relação quase sempre foi tranqüila. Ele não afastava de primeira o que eu sugeria. Certa vez falou que eu manipulava os pacientes. Confesso que me senti mal com isso. Como pode a analista, que quer permitir a quem analisa a realização do desejo, utilizar-se de manipulação? Mas voltemos à palavra relação. Eu gostava dele, como disse. Beijava-o quando ia embora. Tocava-lhe as costas com suavidade. Não sei se ele reparava este meu gesto; creio que sim, era uma pessoa inteligente. O beijo e o toque eram o meu modo de ir além das palavras, de realizar o meu desejo (o psicanalista também tem desejo, você sabe), de tê-lo sob mim. Torcia para que chegasse o dia de ele voltar. Normalmente vinha de quinta-feira em diante; gostava de atendê-lo também aos sábados. Contava-me o que fazia com a namorada, ou namoradas. Não tinha vergonha. Mas também tinha alguns defeitos de que eu não gostava. Um deles era as roupas que usava; consegui, porém, que pouco a pouco mudasse de estilo; depois até brinquei: "adoro você com essa camisa de listrinhas". Tive sucesso nesse terreno. Ele passou a se vestir melhor e eu passei a gostar mais daquele homem. Fazia as marcações de seus desejos inconscientes, ele ouvia. Mostrava como se davam as repetições. Ele mantinha-se atento. Às vezes acho que ele pensava que a sessão de análise era uma aula onde se aprenderia algo ou se faria alguma descoberta. Então concordava que tudo estava no próprio inconsciente e que precisava analisá-lo melhor através do que eu apontava. "As palavras sempre tem muitos significados, você não é professor de literatura?" Descobriu que o inconsciente se expressa por metáforas. Fui eu que fiquei mal com o que aconteceu. Quando me dei conta da besteira que fizera, chorei muito. Mas não adiantavam lágrimas. Estava tendo comiseração por mim mesma e isso é tudo que se deve evitar. Sobretudo a uma psicanalista. Sei que me fixo no feminino, "uma psicanalista", talvez tenha sido esse um de meus erros, porque é certo que há muitos outros. Passei a pensar que depois do que aconteceu não mais conseguiria atender ninguém. Achei que daria para trás. Mas estou conseguindo superar. No entanto, sinto que as pessoas que atraio não são como ele. Vêm a mim pessoas fúteis, sem objetivos, sem cultura. Ele era diferente. Sei que o ato analítico não é voltado para quem tem cultura; todos possuem seus desejos, o inconsciente de quem é muito culto funciona como o de outra pessoa qualquer. Mas há construções interessantes e processos simbólicos mais requintados nas pessoas que estudam. E você sabe, a própria análise é um processo de estudo. Às vezes torço para que ele volte, às vezes me dou conta do meu próprio egoísmo e acho que vou gostar tanto mais dele o quanto estiver longe de mim. Vou imaginá-lo como alguém que conseguiu aprender por si próprio. Certa vez, num filme europeu, um psicanalista deixou a profissão devido a um acidente na família. Comunicou para seus pacientes, até mesmo recomendou-os a outro profissional. Mas me lembro de uma mulher altiva, de expressão firme, que disse: "não, acho que não mais preciso, vou tentar ir por minhas próprias pernas". Interessante a expressão "próprias pernas"; não sei se é exata para o ato analítico, mas creio que foi isso o que ele fez, ou o que anda fazendo. O real sempre irrompe de forma devastadora, como um terremoto, como um acidente da natureza. Por mais que sejam firmes as construções, esse real não deixa de fissurá-las, não é mesmo? A partida dele foi um tipo de irrupção desse real. E olha que ele sempre quis saber melhor sobre isso, parece que não entendia. Acredito que agora ele já entenda. Não é possível a uma pessoa querer dar conta de todos os aspectos de uma questão, não se pode pensar em todas as coisas que podem acontecer. Quando se sai de casa, sobretudo para uma estadia longa, procura-se verificar se não foi negligenciado tudo que possa causar problemas a casa ou à vizinhança; uma válvula de gás aberta, uma torneira mal fechada, algum alimento perecível sobre a mesa, ou mesmo uma janela esquecida sem a tranca. Quem sabe um vento mais forte a abrirá e soprará sobre o estofado a brasa ainda incandescente de um cigarro; e quando estivermos de volta, teremos então sob nossos olhos apenas as ruínas daquilo que um dia foi nossa casa. A partida dele foi uma espécie de descuido. Ele ainda não estava pronto. Mas não se pode prever o que há de causar as catástrofes. É possível não esquecer o guarda-chuva ao se sair de casa numa manhã nublada, mas não é possível prever um vendaval que partirá um galho maior e que este virá nos atingir a cabeça. Eu sempre falei para as pessoas em meu consultório que a vida é uma sucessão de perdas, que é preciso saber perder para ganhar; agora sofro com uma delas. Quando se está do outro lado do divã, a situação é outra; mas quando se permanece sobre ele, sentimo-nos tão frágeis quanto qualquer outro ser humano, por mais importante ou por maior conhecimento que tenhamos. Sabe, já se vão alguns meses, ou quase um ano e a partida dele até afastou outros pacientes. Não sei explicar isso, ou melhor, sei, cada analista tem o analisando que merece, não é assim que se fala entre os próprios psicanalistas, às vezes até mesmo com chacota? O inconsciente mostra-se mais à flor da pele do que nunca nessas horas. Mas não há de ser nada. Nessa vida, a tudo se acostuma. Mas lhe digo mais uma coisa. Não desejo revê-lo. Não, por favor, não me diga que é denegação. Não desejo revê-lo e ponto final. Não, essa recusa não é o oposto extremo do meu próprio desejo.

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