sábado, dezembro 01, 2012

Raduan Nassar, um clássico da literatura

Escrever sobre escritores clássicos contemporâneos não é tarefa fácil, pois nada melhor do que o passar do tempo como método eficaz para avaliar as obras. O crítico deve comportar-se como um juiz experiente, não pode julgar sob o clamor das ruas, ou sob o reflexo desse clamor, que sempre transparece nas listas dos livros mais vendidos. Terry Eagleton, intelectual e escritor inglês, ex-professor da Universidade de Oxford, afirma que ao assumir a cátedra de literatura inglesa em 1992 na mesma universidade, a literatura estudada até então chegava apenas ao início de 1900. Os professores, que ocuparam a mesma cátedra antes dele, consideravam que a distância ideal para a aventura crítica seria em torno de um século.

Faço essas conjecturas no momento em que pretendo alinhavar um artigo sobre Raduan Nassar, autor brasileiro que se consagrou com a novela Um copo de cólera e, sobretudo, com o romance Lavoura Arcaica. Raduan nasceu em 1935, em Pindorama, São Paulo, publicou seus dois principais livros em meados da década de 1970 e, em 1984, abandonou a literatura para viver recluso num sítio, no interior do mesmo estado.

É consenso entre a crítica afirmar que o autor de origem libanesa, apesar de vivo e de obra pequena e recente, já se tornou clássico. Seus livros estão traduzidos em muitos idiomas. Nas faculdades de letras do Brasil e mesmo em muitas do exterior, já se tornou obrigatório estudá-los.

Não precisamos, portanto, ter a mesma precaução dos circunspectos professores de Oxford, que achavam suspeita a literatura recente. Sobre a obra de Nassar, esse argumento é frágil e fácil de ser refutado.

Mas, para isso, perguntamos: o que torna clássico um autor? Mais precisamente: o que tornou Raduan Nassar um clássico da literatura brasileira?

Em primeiro lugar, um clássico é avaliado como tal pela profundidade que sua obra alcança ao abordar temas que se relacionam com a vida, isto é, com o âmago do humano. Uma obra também torna-se clássica quando o autor consegue trabalhar a linguagem e elevá-la ao nível do “sublime”. Nesses dois pontos, o autor de Lavoura arcaica é mestre.

Na abordagem da família de características patriarcais, Raduan consegue dissecar o sistema nervoso de um grupo de imigrantes que procura sobreviver através do próprio ethos. Um pai tenta impor sua moral, sua fé, enfim, sua lei, à mulher, aos filhos e a todos que o cercam. Mas ele tem a visão turva, não conta com o dissenso. Talvez aqui se apresente uma das principais características do ser humano: o direito à liberdade. Quando ela não é respeitada, surge o conflito. Portanto, a princípio, teríamos um clássico porque o autor expõe com maestria a questão da liberdade. Isso, no entanto, não seria suficiente para elevá-lo ao panteão dos melhores escritores. Ainda faltariam o trabalho com a linguagem e a elaboração da estrutura narrativa. Mas Nassar sabe trabalhá-las com perfeição, conduzindo a língua portuguesa a meandros onde predomina o mais absoluto requinte. Poderíamos dizer que o seu poder narrativo invade a seara da poesia, e a sua prosa convive de modo harmonioso com o gênero lírico.

Há ainda um elemento a mais, e talvez fundamental em sua obra. Raduan Nassar explora o mito e o trabalha de modo bastante eficaz ao tocar em concepções conceituais formadoras da civilização.

Um parêntese. Todo autor que se tornou clássico navegou nessas águas, sobreviveu a tempestades e muitas vezes a naufrágios. Foi assim com Homero, Eurípedes, Dante, Shakespeare, Dostoievsky, Joyce e, para citar mais um brasileiro, com Nelson Rodrigues. Claro que há muitos outros, a nível nacional e universal, mas interrompo a lista nesse último para não me tornar enfadonho.

O autor de Um copo de cólera mergulha em alguns dos principais mitos de formação e manutenção da sociedade civilizada. Um deles é o da negação ao incesto. Numa sociedade que precisa voltar-se para fora, que necessita de relações extrafamiliares, o incesto isolaria os indivíduos não permitindo o intercâmbio, a negação e/ou a aceitação das diferenças. Outro ponto que os seus livros mostram é o predomínio da pulsão, melhor dizendo, da pulsação dos desejos, enfim, da violenta manifestação da emoção sobre a razão.

Um assunto que pode ser bastante explorado na obra de Raduan Nassar é o da tentativa de formação da razão e de sua superação através do transbordamento dos desejos, até mesmo dos mais recônditos. Na história da humanidade a razão sempre se mostrou frágil, sempre se apresentou como uma construção. Na verdade, a razão realiza-se para poucos, e acaba por sobreviver apenas como teoria. Talvez o racionalismo nunca tenha existido, e isso serviria de munição suficiente para dinamitar as teorias ditas pós-humanas, que pretendem atestar a morte do "Racionalismo Clássico".

Na Oréstia, de Ésquilo, em determinando momento, um dos personagens grita: “queira a ira de todos os homens contra si, mas não a ira de um dos deuses”. Se até mesmo os deuses gregos se mostraram irados, desequilibrados e tomados pela emoção, como poderia o humano viver a razão pacificamente?

Logo, quando desejamos verificar se um autor tem a dignidade de um clássico, precisamos observar se suas obras trabalham o fracasso da razão; se soube mostrar que a razão é apenas uma construção sustentada por alicerces extremamente frágeis. Assim é a vida humana, assim é a humanidade. E Raduan Nassar, através da ira do patriarca, mostra que o ser humano sempre esteve mais próximo de colocar tudo a perder do que de erigir um mundo sólido. Ou melhor, nos dias conturbados de hoje, é lícito afirmar que a solidez do mundo, ou seja, o predomínio da razão, é apenas uma questão de crença. Isso não quer dizer que devemos abandoná-la (a razão). Essa é a tensão que sustenta o humano, a mesma tensão que mostra a necessidade de cada obra de arte.

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