sexta-feira, dezembro 11, 2009

Chinua Achebe lança no Brasil livro mais de 50 anos depois de escrito

Haron Gamal, JB Online

RIO - No fim de outubro morreu Claude Lévis-Strauss, antropólogo que mudou o entendimento do homem ocidental a respeito de sociedades tidas como diferentes da matriz europeia. Através dele, passamos a compreender que não existem grupos humanos superiores ou inferiores. Todas as sociedades possuem capacidade de explicar o seu estar no mundo, ainda que de modo mítico, e de solucionar os próprios problemas, a menos que sejam externos as suas origens. Após a leitura de O mundo se despedaça, do nigeriano Chinua Achebe, livro publicado pela primeira vez em 1958 pelo escritor que viria a se tornar detentor em 2007 do prestigioso prêmio Man Booker International, é possível perceber claramente a impetuosa violência exercida pelo homem branco, ainda que sob a capa do cristianismo, no contato e na evangelização promovida em África, a partir de sua chegada nas sociedades locais.

Things fall apart – nome original do livro, já que Achebe é escritor africano de língua inglesa – inicia-se descrevendo a fama de Okonkwo, personagem que trouxera orgulho à sua aldeia ibo, em Umuófia, “onde tudo se tinha por perfeitamente regulado e imutável”, palavras de Alberto da Costa e Silva, no prefácio à narrativa. A comunidade ainda vivia seus dias de liberdade, não imaginando o que estaria por vir. Embora imperfeita, como qualquer outra sociedade, e até mesmo possuidora de idiossincrasias incompreensíveis àqueles fora de seu círculo, vemos um mundo em que vigoram os valores locais, o respeito aos deuses, e uma hierarquia não muito distinta daquela a que estamos acostumados a observar nas sociedades de origem europeia, baseada na acumulação de riqueza. A fratura que se apresenta entre Okonkwo e sua sociedade surge já no primeiro capítulo, na imagem do pai do personagem, uma vez que entre os ibos, como entre quase todos os povos semelhantes, valorizam-se os guerreiros, os lutadores e aqueles que enriquecem por esforço próprio. Seu pai, Unoka, desconversava quando o assunto eram as guerras e o trabalho na lavoura. Gostava de música, era exímio na flauta, mas devia muitos cauris (moeda local) a quase todos da aldeia. Como consequência, vivia com a família na mais profunda pobreza. Okonkwo, para fugir ao estigma paterno, preenche os requisitos. Desde cedo se destaca nas artes marciais, vencendo o lutador mais forte do povoado vizinho; é o mais bravo dos guerreiros; enriquece desde cedo com o trabalho e recebe ajuda de seu chi (o deus de cada pessoa, mais do que um anjo da guarda), conquistando posições e tornando-se um dos mais importantes membros do clã.

Chinua Achebe, ao escrever o romance, parte de uma situação que o põe em ligeira vantagem. O mundo que desfila nas páginas de sua narrativa já não existe há pelo menos 200 anos. O autor recria a vida em Umuófia, seus costumes, os títulos que os mais importantes obtinham, como os conseguiam, como eram as casas habitadas pela população, as negociações para os casamentos, as festas, uma sociedade em que deuses e homens estão quase que irmanados; até os mortos encontram um meio de permanecer entre os vivos, no cotidiano da aldeia, através dos egwugwu, mascarados que encarnam os antepassados dos integrantes dos clãs. O narrador tenta não tomar partido, pois há cerimônias de sacrifícios, como o assassinato de um jovem chamado Ikemefuna, entregue à aldeia ibo como pagamento por danos que alguns dos integrantes da aldeia vizinha causaram a Umuófia. Há também costumes totalmente estranhos a quem não pertence a essa sociedade africana, como o abandono de crianças na Floresta Maldita, quando nascem gêmeos. Enfim, as fissuras da narrativa e os titubeios daquele que nos conta a história nada mais são do que elementos premonitórios.

A menção ao homem branco acontece diretamente apenas após a primeira metade da narrativa. O fato, no entanto, está presente durante todo o tempo no subtexto. O narrador, apesar de ainda não descrever o futuro invasor, não consegue esconder que este está à espreita. Advirá a decadência e a destruição.

O herói, Okonkwo, cai em desgraça ao agredir uma de suas mulheres na Semana da Paz, período em que todos deveriam manter-se em vigília. Acaba também por matar acidentalmente um jovem durante a cerimônia fúnebre do membro mais idoso de Umuófia. É condenado a sete anos de exílio.

Retira-se com a família para a terra de sua mãe. Após ser acolhido pelos parentes dela, permanece todo o período de exílio trabalhando para enriquecer novamente e planejando sua volta. Deseja retomar o prestígio e as honras que possuía. Mas os deuses já não estão a seu favor. Ou melhor, talvez já estivessem em retirada. É época de um novo deus, fora das tradições ibo.

Ao voltar, o herói se depara com outra realidade. O local já fora tomado pela religião e, sobretudo, pelo tribunal do homem branco. O que resta ao habitante original e a sua família? Resta outra espécie de exílio: vive na aldeia em que nasceu, permanece entre os seus, mas o mundo tornara-se outro. A Ibolândia nunca será a mesma.

“O regresso de Okonkwo à terra natal não fora tão memorável quando desejara. Verdade que as suas belas filhas despertaram grande interesse entre os pretendentes e que, pouco depois, desatavam-se as negociações para os casamentos. Mas, à parte disso, Umuófia não parecia ter dado nenhuma atenção especial ao retorno do guerreiro. O clã sofrera tão profundas mudanças durante seu exílio, que estava quase irreconhecível. O povo só tinha olhos para a nova religião, o novo governo e os novos entrepostos. Ainda havia muita gente que considerava as novas instituições malignas, mas mesmo essa gente não pensava nem falava outro assunto e, sem dúvida alguma, não estava interessada no retorno de Okonkwo.”

Hoje, após a destruição de praticamente todas as sociedades que não seguiam o pensamento europeu, tanto através da força militar, como da econômica e ideológica, tenta-se preservar o que delas restou. Entre outras ações, criam-se leis para que as pessoas estudem suas origens africanas e as valorizem. Mas, como se pode observar, a história é contada pelos vencedores. Pior ainda (ou será melhor?), um livro lançado há 51 anos só agora chega-nos traduzido ao português, num tempo em que cresce o número de pessoas que agem como os primeiros missionários que chegaram a Unuófia, impondo governo e religião.

Que a arte e, sobretudo, a literatura consigam cumprir sua "missão". Cito, mais uma vez, o prefaciador da obra: “Este livro só existe porque Umuófia ingressou num império. Porque seus valores puderam ser descritos e traduzidos na língua do conquistador e, assim, tirar uma impressentida desforra.”

14:28 - 04/12/2009

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