quinta-feira, outubro 01, 2009

Sebald revela a dor e a melancolia dos refugiados em Os emigrantes

Haron Gamal*, Jornal do Brasil

RIO - O século 20, no seu início, apresentava-se como um período pleno de possibilidades. A ideologia do progresso e a perspectiva de um futuro que trariam soluções para a maior parte dos problemas humanos pareciam dignas de credibilidade.

A arte soube captar bem o espírito da época, tanto a favor como contra. A vanguarda europeia mostrou-se sensível ao expressar suas inquietações sobre um passado que insistia em se fazer presente tanto nas concepções artísticas tradicionais como no modo de vida, ainda carregado de tinta dos oitocentos. A obra de Proust é rica em fazer desfilar uma sociedade em que homens e mulheres relutam em abandonar valores nobiliárquicos e um tom em que predomina o apreço pelo antigo. Não se quer dizer que a leitura de Proust não seja adorável. Talvez seu sucesso aconteça devido a isso: retrata um mundo que já desapareceu ou está em vias de desaparecer, um modo de vida que grande parte das pessoas gostaria de ter vivido em todo esplendor.

No início do século 20, concepções futuristas vão tentar dinamitar o passado e apostar o futuro da humanidade na máquina. Tal modo de ver o mundo não é novo. Muitos séculos antes, o homem do renascimento já expressava a opção pela vida secular e começara, ali, a apostar suas fichas em algum tipo de engenho.

Marinetti, porta voz do futurismo italiano, na primeira década dos novecentos, chega a propor a destruição dos museus e das obras de arte do passado, colocando em primazia o engenho mecânico.

Depois temos Joyce, que já nos apresenta um tipo de herói que é fruto da modernidade; o homem fragmentado, um Ulisses que precisa juntar os cacos de suas 24 horas para que a existência tenha sentido. É interessante observar que o escritor dublinense publica sua obra máxima no ano da morte de Proust – 1922. É como se o século 19 tivesse terminado definitivamente para dar lugar ao século 20.

A literatura de W. G. Sebald (1944-2001) apresenta o resultado de um período em que o humano foi deixado de lado, quando a ênfase da vida se voltou para o negócio, para a indústria, para a economia. Foi no começo do século passado que a educação e a cultura começaram a voltar-se para a produtividade.

Os emigrantes focaliza essa questão. Quem são os personagens que ali desfilam, plenos de saudade e de melancolia? Tudo leva a crer que, impelidos pela necessidade da partida, esses seres deixaram seus lugares de origem para tentar a vida em países distantes, longe da família e envoltos em total solidão. Não importa qual o motivo, se econômico ou político – aqui entram os refugiados, como os judeus e os foragidos dos regimes totalitários.

Na literatura desse autor alemão, que trocou cedo seu país pela Inglaterra, onde trabalhou como professor de literatura e morou até morrer, percebe-se o lugar provisório em que ele e seus personagens se situam. É como se sentissem desconfortáveis na condição de emigrantes. Mas será que teriam para onde voltar?

O livro é constituído de quatro relatos. Em todos eles, Sebald faz um inventário dos escombros do passado através da vida pregressa de cada personagem. Um trecho da primeira história é emblemático. O narrador, que nunca tem um pouso definitivo, informa: “Tivemos, dr. Selwyn e eu, uma longa conversa cujo ponto de partida foi sua pergunta se eu nunca sentia saudades de casa. Eu não soube direito o que responder, mas dr. Selwyn, após uma pausa para reflexão, confessou-me – outra palavra que não faz jus à situação – que no curso dos últimos anos fora tomado cada vez mais pela nostalgia”. A conversa ocorre no início dos anos de 70, na Inglaterra, e o personagem que dialoga com o narrador é um cirurgião aposentado, cujo objetivo de vida é apenas cuidar do jardim e de alguns animais; ele mesmo é um emigrante, mas deixara a distante Lituânia aos 7 anos de idade, precisamente em 1899.

A segunda narrativa começa com a seguinte informação: “Em janeiro de 1984, chegou-me de S. a notícia de que na noite de 30 de dezembro, uma semana após completar 74 anos, Paul Bereyter, que fora meu professor no primário, dera fim a sua vida ao deitar-se na frente de um trem a pequena distância de S., onde os trilhos desviam em curva do pequeno bosque de salgueiros e ganham campo aberto”.

Em cerca de 80 páginas, o narrador investigará as causas do suicídio do ex-professor, mas chegará apenas a conjecturas, o verdadeiro motivo ele não conseguirá descobrir. No final, sabemos que Bereyter viveu seus últimos dias na França e voltou à Alemanha para dar fim à própria vida.

Ambros Adelwarth dá nome à terceira história. Trata-se de um tio-avô do narrador que havia muito emigrara para os Estados Unidos (levando neste país uma vida extravagante) e volta para visitar a família uma única vez, no verão de 1951, quando o próprio narrador tinha apenas 7 anos. A impressão que causa em sua mente é tão forte, que ao tornar-se adulto, ele viaja à América em busca da história desse tio, que na ocasião já falecera. Recebe de uma tia a caderneta onde Ambros fazia anotações, descobrindo parte de sua vida e de suas viagens pelo mundo como pajem e companheiro de um milionário americano.

A quarta e última história inicia-se com o narrador chegando à Inglaterra como imigrante, num voo noturno: “Até meus 22 anos, nunca me afastei de casa mais do que cinco ou seis horas de trem, e por isso, quando no outono de 1966 decidi, por diversas razões, mudar-me para a Inglaterra, eu mal tinha uma idéia apropriada de como era o país e como eu, dependendo apenas de mim mesmo, me arranjaria no estrangeiro”. O narrador chega a uma Manchester fuliginosa, permeada por ruínas. Conhece então o pintor judeu-alemão Max Ferber e convive com ele. Anos mais tarde, quando Ferber, já famoso, encontra-se velho e doente, entrega ao narrador um pequeno diário com uma narrativa escrita pela própria mãe, na Alemanha, que contém a história dela e do modo de vida de uma geração que antecedeu à Segunda Grande Guerra.

Em todos os contos, suspeita-se que o narrador, de quem nunca sabemos o nome, seja o próprio Sebald. Ele sempre está às voltas com uma espécie de arqueologia, escavando o passado das pessoas e acabando por lhes dar vida própria. E, por mais simples que essas vidas tenham sido, sua narrativa consegue envolver todas elas num quê de importância, de algo único, cuja perda significaria a perda da própria poesia.

O que resta a esses personagens, que se perderam num constante exílio, é a representação de seu não-lugar através da arte, como ocorre a Ferber, que “trabalhava desde o final dos anos 40, 10 horas por dia, o sétimo dia inclusive. (...) Eu não cansava de me admirar de como Ferber, ao final de um dia de trabalho, produzia um retrato de grande vividez com as poucas linhas e sombras que haviam escapado à destruição”.

Assim também se apresenta a literatura de Sebald, quadros com grande vividez, que retratam, apesar do lugar sempre frágil que o ser humano ocupa, um momento máximo de lirismo, mesmo que depois sobrevenha a morte.

* Professor de literatura e doutorando em literatura brasileira pela UFRJ


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