sábado, novembro 07, 2009

Livro sobre Heidegger reflete o estudo da ética na obra do pensador

Haron Gamal, Jornal do Brasil

RIO - Alexandre Marques Cabral propõe em Heidegger e a destruição da ética o estabelecimento de uma volta ao ethos, isto é, morada, no sentido original, a partir da filosofia de Martin Heidegger (1889-1976). Constatando que a crise do pensamento contemporâneo, sobretudo no Ocidente, é uma consequência da crise da própria racionalidade, a ética não estaria imune a ela.

O início dessa crise já aconteceria a partir de Aristóteles, com o estabelecimento do raciocentrismo, expandir-se ia com a escolástica, na Idade Média, e atingiria seu auge na modernidade. Retornando ao pensamento arcaico-originário, mais precisamente aos filósofos pré-socráticos, que por meio do discurso mítico-poético teriam condições de abordar ser e ente sem a fissura que passa a existir já no século 5 a.C. a partir do estabelecimento do logos e a realização da metafísica, seria possível pensar o dasein (“estar-aí”, existência, segundo Heidegger) numa perspectiva em que o espírito da letra predominaria com todo seu aparato de possibilidades de significação. O ser, segundo Heidegger, constituir-se-ia mais como verbo do que como substantivo, mostrando-se em constante realização, permitindo seu desvelamento /velamento cuja abordagem o aproximaria do universo da poesia, com todas as possibilidades da metáfora. A cristalização do pensamento racional criou conceitos e estabeleceu sob sua tutela certa tradição em que passaram a existir doutrinas filosóficas e leis morais que não acompanham o “estar-aí” – experiência permanente e essencial do ser – produzindo uma espécie de engessamento da reflexão.

O livro é dividido em três partes. Na primeira, o autor estuda O problema do ser e o dasein em ser e tempo, de Heidegger – pressupostos da ontologia fundamental necessários para a compreensão do conceito de ética originária presente na Carta sobre o humanismo, também de Heidegger. É interessante observar como Alexandre Cabral desenvolve os fundamentos e conceitos da filosofia arcaico-originária expostos pelo filósofo alemão. O autor brasileiro aborda a questão sobre o dasein de modo bastante explicativo, já que Heidegger é um grande desafio até mesmo para os pensadores profissionais: “A locanda onde o ser é achado, porque ali vigora, é o homem originariamente concebido. Dissemos 'originariamente concebido' porque, de forma alguma, como sempre o fez o pensamento ôntico, o homem é por Heidegger analisado objetivamente. Ele não é nem sujeito, no sentido moderno do termo, nem uma substância racional capaz de inteligir as essências objetivamente dadas dos entes, como pensou a tradição medieval, por exemplo”. Fundamental, da mesma forma, é o capítulo 3, em que é analisado o conceito de “ser-com”, porque é a partir dele que, na parte final, chegar-se-á à noção de solicitude.

Na segunda parte, o brasileiro apresenta “A ética originária e seus elementos”, delineia o percurso do pensamento arcaico-originário até o estabelecimento da metafísica, e distingue a concepção tradicional dos conceitos de Heidegger. Ao mesmo tempo, é muito importante o tópico “Linguagem e poesia”, em que a ética é apresentada como po-ética, isto é, uma concepção de ética baseada na linguagem. Se o dasein é o ente realizando-se na plenitude do ser, no ato constante de ek-sistir, nada melhor do que a linguagem poética, em seu espírito original de criação e revelação, como espaço de desvelamento do ethos.

Na terceira parte, Alexandre Cabral propõe a destruição da ética tradicional, isto é, uma espécie de abandono dos princípios morais cristalizados pela tradição, os quais já não mais seriam capazes de acompanhar o ato de realização do ser na contemporaneidade.

A questão sempre presente, o estabelecimento de uma nova ética, é que ela não se prenderia às ideias morais, mas levaria a existência a uma espécie de não-esquecimento do ser, coroando-o com a perspectiva de solicitude, um comportamento que, ao mesmo tempo, o tornaria aberto para os outros e colocaria o existir numa perspectiva de não-esquecimento desse mesmo dasein.

Pensar a ética a partir de Heidegger nos leva a duas questões fundamentais: a primeira é que sua concepção de ser, ao tentar escapar do raciocentrismo aristotélico, leva a filosofia de volta aos pensadores pré-socráticos e acaba por permitir uma forma do pensar fora da razão tradicional numa modernidade em que a própria ratio se acentuou realizando-se como tecnocentrismo (segundo o filósofo alemão uma das causas do esquecimento do ser); a outra perspectiva envolve o próprio Heidegger, como cita Alexandre Cabral ao tentar argumentar que a pessoa do autor não deve predominar sobre a obra. O filósofo da Floresta Negra envolveu-se com o nazismo, defendeu-o e formulou questões teóricas que o justificavam. O fato de dizer que Heidegger permaneceu pouco tempo filiado ao Partido Nacional-Socialista, afastando-se logo a seguir, e que foi perseguido por ter renunciado ao cargo de reitor da Universidade de Freiburg não o isenta de participação em um dos regimes mais cruéis do século 20. Aqui se estabelece o paradoxo da utilização da filosofia como teleologia (doutrina que identifica a presença de fins guiando a humanidade). O pensar como reflexão é uma coisa, mas o estabelecimento de um arcabouço teórico com a intenção de gerar algum tipo de ação, ou mesmo de discutir comportamentos, de antemão já é problemático, tanto mais quando inspirado no autor de Ser e tempo. A filosofia heideggeriana não se restringe apenas à ética, sabe-se disso, a questão principal é a existência como discurso. O estabelecimento de uma ética a partir de um filósofo controvertido como Heidegger, no entanto, caso um dia venha a vigorar, será uma grande ironia da história.

O que deve ser bastante elogiado no livro de Alexandre Marques Cabral é a apresentação pormenorizada e didática do pensamento de Heidegger, tornando o filósofo assimilável até mesmo para o público externo ao universo acadêmico.

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