segunda-feira, outubro 03, 2011

Resenha de Ao anoitecer, de Michael Cunningham

“Mistake, o Erro, vem para ficar algum tempo”, assim começa o mais recente romance de Michael Cunningham, Ao anoitecer. Mistake nada mais é do que o apelido de um jovem cujo primeiro nome é Ethan, irmão de Rebecca, que por sua vez é esposa de Peter, o protagonista da história. O jovem e belo rapaz, muito mais novo do que a irmã, é assim chamado porque representa tudo o que deu errado numa família de classe média americana. Com o correr da leitura, no entanto, não é difícil perceber que este erro tem muito de sedutor.

Seria bom neste momento fazermos uma reflexão das muitas que o livro nos incita. Talvez, num departamento de antropologia de alguma universidade perdida pelo mundo, alguém esteja desenvolvendo uma pesquisa (digamos, uma tese de doutorado) sobre a ética em vários tipos de sociedade, desde a mais antiga sobre a qual se têm notícias até à contemporânea, mundializada, representada por este microcosmo nova-iorquino onde vivem e transitam os personagens de Cunnigham, com suas deformações e tentativas de adequação.

É bom levar em conta que ética – palavra muito usada nos dias de hoje – origina-se de “ethos”, termo que denominaria remotamente um lar e, por extensão, as leis e os costumes que norteariam toda a ramificação familiar, seus habitantes, parentes e contra-parentes, num período da Grécia antiga conhecido como pré-socrático.

Como, porém, escrever um romance que estabeleça questões prementes e ressalte o artista não como um mero repetidor de narrativas esgotadas, mas como alguém que nos aponte o difícil limite entre o que muitos filósofos conceituaram como sentido, ou mesmo falta de sentido? Em O mundo como vontade e como representação, Schopenhauer salva apenas a arte como a única possibilidade de espelhamento e crítica da existência. Isso é o que consegue nos mostrar o autor norte-americano Michael Cunningham.

Assim como em seus romances anteriores, mesmo no mais conhecido As horas (1996), verifica-se uma ficção em que há a perda total desse “ethos”, gerando, consequentemente, personagens perdidos, deformados, fazendo que estas mesmas deformações não ameacem estabelecer uma ética às avessas, mas gerem seres e relacionamentos altamente destrutivos.

Nova York, plena de contradições, sobretudo seu universo e mercado das artes plásticas, serve como pano de fundo para a narrativa. Peter Harris já passa dos quarenta anos e, até certo ponto, é um marchand bem sucedido, embora do segundo time. Organiza exposições de artistas que se mostram promissores, e representa outros que se tornaram conhecidos mas não mais conseguem avançar em suas propostas. Ao mesmo tempo, vende arte para alguns ricaços da cidade, estes sempre imersos na falta de cultura e de senso estético. Mas o casamento de Harris mergulha numa profunda crise com a chegada de seu cunhado, Mistake.

Único homem em uma família cujo predomínio é das mulheres, Ethan recebe ajuda da irmã, que acredita poder mantê-lo longe das drogas. Certo dia, entretanto, ele confessa a Harris, que seus anos mais férteis e de maior produção foram aqueles em que usava drogas e estudava em Yale. Ao mesmo tempo, Mistake é jovem e belo, o que fascina Peter, já que ele procura a plena realização estética. Ethan acaba por se tornar, para o marchand, uma espécie de arte pura.

A questão das drogas é aprofundada a partir do momento em que o irmão de Rebecca, acreditando estar sozinho em casa, encomenda cristal (uma nova febre nos EUA) de um narcotraficante que entrega em domicílio. Descobre depois que seu cunhado voltara do trabalho por motivo de doença, entrara em casa em silêncio, refugiando-se num dos quartos, e percebera tudo. Peter, em contrapartida, ingere em quase todas madrugadas, quando costumeiramente tem insônia, dois comprimidos de Rivotril com um copo de vodca, enquanto sua mulher mergulha em garrafas de vinho e martínis. Ela é editora de uma revista de arte que está sendo vendida para um milionário de um estado distante e precisa relaxar quando chega em casa.

O leitor também poderá experimentar as perplexidades do circuito artístico de Nova York, um mundo em que tudo pode ser arte, até mesmo uma bola de piche com crinas de cavalo, passando por bronzes de estilo grego clássico com pegadores pós-modernos. Há citações de galerias locais, museus, exposições famosas, a surpresa que experimentam seus frequentadores, o universo dos colecionadores e outros mercadores, também ricos, mas que, na maioria das vezes, naufragam na doença e na futilidade.

Um livro que, para o bem da literatura, não tem a pretensão de virar filme, pois o autor usa e abusa de um narrador que inclui as constantes reflexões e desespero de todos os personagens, proporcionando ao texto alta tensão psicológica. Após o término da leitura, constata-se que “Mistake, o Erro” – o personagem ou qualquer julgamento sobre as artes e/ou sobre a ética contemporâneas – é apenas uma questão de ponto de vista.

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