domingo, novembro 13, 2011

Resenha de: O duplo, de Fiódor Dostoiévski

Publicada no Jornal do Brasil em 26/10/2011

O duplo, segundo livro de Dostoiévski, publicado agora pela Editora 34, traz a questão que permeia toda grande literatura, a metáfora. Embora o gênero romance tenha características referenciais, nas mãos de escritores como o consagrado autor de Irmãos Karamázov, torna-se verdadeiro poema. Não é à toa que tenha como subtítulo: “Poema petersburguense”.

O romance se inicia com o despertar do protagonista: “Faltava pouco para as oito da manhã quando o conselheiro titular Yákov Pietróvitch Golyádkin despertou de um longo sono, bocejou, espreguiçou-se e por fim abriu inteiramente os olhos.” Na verdade, Golyádkin desperta para uma inesperada realidade: não demorará a encontrar o seu duplo, alguém que possui exatamente o seu nome e que, pouco a pouco, lhe vai roubar o lugar.

Dostoiévski, neste romance, introduz outro forte componente: o fluxo da consciência. Seu personagem principal estará a todo momento, desde que se descobre ludibriado e substituído, remoendo-se num diálogo interior que ocupará grande parte da narrativa. Há páginas e páginas que se mantém no mesmo parágrafo. E estamos ainda em 1846, ano em que o romance é publicado. James Joyce nem sonhava em vir ao mundo.

O universo dostoievskiano, onde impera uma terrível solidão, já está presente neste romance, classificado pelos críticos como romance de sua “primeira fase”. Considero, no entanto, errônea essa posição. Muitos críticos brasileiros fizeram semelhante afirmação sobre Machado de Assis a respeito dos seus quatro primeiros romances: Ressurreição, A mão e a luva, Helena e Iaiá Garcia. O Dosotiévski de O duplo já possui todos os componentes do escritor das obras consideradas da “maturidade”, como Crime e castigo, O idiota, Os demônios e Irmãos Karamázov.

O universo humano de São Petersburgo se apresenta como opressor. O ar é sufocante. Tanto entre os ricos, como entre os funcionários subalternos e criados, reina a desconfiança. Os subalternos colocam-se num espantoso servilismo, cada ser humano busca obter, a qualquer preço, as benesses da alta sociedade.

A perspectiva de um amor impossível por uma mulher, já que ela pertence à nobreza, também é mais uma das frustrações do senhor Golyádikin.

O livro, dividido em treze capítulos, relata em ordem cronológica, desde o despertar do personagem, sua saída numa carruagem alugada para ir a uma festa a que supostamente fora convidado, uma visita a seu médico, o dia a dia de trabalho, os personagens que tramam contra ele, a chegada de seu duplo até, como é prenunciado desde o começo, sua total derrocada.

Uma questão, no entanto, que não pode ser descartada na narrativa é a loucura. Tudo que Yákov Pietróvitch Golyádkin pensa e vivencia na verdade não deixa de ser um desdobramento de sua mente. O autor russo se interessou, como muitos de seus contemporâneos, pelos transtornos psíquicos. No caso deste romance, porém, o louco não é apenas o martirizado protagonista, mas todos os outros personagens. Esta ressalva é feita não propriamente ao autor, mas à grande parte da crítica, que atribui a presença desse duplo apenas como decorrência do embate interno do personagem. O seu aparecimento, entretanto, não se dá somente a Golyádkin, mas a todos aqueles que o circundam. Estes nem mesmo se surpreendem que o duplo tenha o mesmo nome e provenha da mesma região do protagonista. Mais uma vez é fácil perceber a questão principal que Dostoiévski nos coloca: o adoecimento de todo um contingente humano sufocado sem piedade alguma pelo “século industrial” (palavras do narrador), e pelas consequências advindas desse novo tipo de vida em sociedade, marcado pela falta de sentido, pelas disputas e pleno de traições.

Várias vezes Golyádikin pede ao cocheiro que o leve até a ponte Izmáilovski. Quando é escorraçado da festa para a qual não fora convidado, corre “para o cais da Fontanka, ao lado da ponte Izmáilovski”, ali se depara pela primeira vez com o seu duplo. Talvez na obra do autor russo, a presença constante de pontes seja a tentativa de junção entre dois mundos absolutamente impossíveis. Como conciliar a razão, ou mesmo a verdade, com o lado mais sombrio de cada ser humano? Como compatibilizar os valores cristãos, tão caros a Dostoiévski, com os interesses cada vez mais mesquinhos da nova ordem econômica e social? A obra do autor russo já sinaliza o caos que está por vir: a vida contemporânea com sua perspectiva de deslumbramento e inviabilidade.

Há de se louvar o projeto da Editora 34 em traduzir e publicar praticamente toda a obra de Dostoiévski diretamente do russo, com bastante empenho e meticulosidade. É digno de nota o posfácio, escrito pelo próprio tradutor, Paulo Bezerra. As ilustrações de Alfred Kubin acentuam o caráter expressionista dos personagens dostoievskianos. 

Haron Gamal – doutor em literatura brasileira pela UFRJ

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