segunda-feira, abril 30, 2012

Escritores não tocam violino

Quinta à noite fui com minha esposa à Livraria da Travessa, no Shopping Leblon. Participamos do lançamento do livro Paris: a festa continuou, de Alan Riding, e aproveitamos para assistir ao debate entre o autor e o intelectual Fernando Gabeira.

Chegamos cedo, olhamos os livros, especialmente os de ficção, que é a minha praia. Até selecionei um ou dois títulos para pedir a O Globo, com o objetivo de fazer resenha.

Às sete e meia, no andar superior, próximo ao bonito café da livraria, sentamos e aguardamos o início do debate. O autor, um senhor de mais de 60 anos, chegou e cumprimentou os presentes. Passaram-se alguns minutos e entrou, no pequeno salão, Gabeira, sempre com seu inconfundível ar juvenil. Ao contrário da fisionomia marcada do antigo repórter do New York Times (o autor do livro, para quem não sabe), Gabeira, apesar dos anos que lhe pesam, esbanja uma jovialidade que parece nunca o abandonar.

O livro de Riding fala da cultura francesa durante a ocupação alemã. Como o próprio título ressalta, a festa continuou, apesar da ocupação. Isto é, a efervescência cultural em Paris não esmoreceu com a presença nazista.

O debate desenvolveu-se de modo didático, com o autor referindo-se ao período e relatando como fez sua pesquisa. Gabeira interferiu algumas vezes, numa delas para falar sobre o momento em que os próprios alemães eram admiradores da cultura francesa e desejavam preservá-la.

Discutiu-se também o papel dos intelectuais no momento da ocupação. Houve referência a pessoas que não eram propriamente intelectuais mas trabalhavam no meio cultural, como músicos, atores, encenadores e profissionais afins que tentaram continuar praticando sua arte, apesar do país nas mãos dos nazistas.

Não deixou de haver referência ao antissemitismo. Este, como disse Riding, não era um fenômeno francês, mas europeu. Os intelectuais franceses não se uniram nem se manifestaram quando o país foi obrigado a mudar suas leis raciais, o que implicou na perseguição e prisão de quase toda a população judaica. A impressão que ficou em quem presenciava o debate foi que escritores, artistas e produtores de cultura da época preocuparam-se apenas em preservar suas atividades sob o regime nazista.

Alguém chegou a fazer um paralelo entre a atual Comissão da Verdade, que dá os primeiros passos para tentar revelar os bastidores do regime militar no Brasil, e uma possível comissão da verdade no pós-guerra, na França, para apurar quem realmente colaborou.

No final descemos, eu e mais as vinte e poucas pessoas que presenciaram o evento, e permanecemos para a noite de autógrafos. Houve também um coquetel. Comprei o livro, Paris: a festa continuou.

E continuamos a participar de debates e de coquetéis, mesmo que não tenhamos respostas para a maior parte de nossas perguntas.

No sábado fui ao teatro com minha esposa, no Maison de France. Não por coincidência uma casa pertencente à mesma França. O espetáculo em cartaz chama-se “Em nome do jogo”, do inglês Anthony Shaffer. Trata-se de uma trama policial muito boa. Para quem gosta de admirar bons atores no palco, é possível se deleitar com a atuação de Marcus Caruso e Emílio de Mello.

O que me remete a esse espetáculo não é elogiar a sua qualidade. Isso renderia matéria à parte. Mas destacar uma fala que tem a ver com o assunto que me fez iniciar a crônica: o papel dos intelectuais em meio aos problemas do seu tempo.

Num determinado momento da peça, um dos personagens afirma: “quem diz que gosta de romance policial são os intelectuais”. Certamente o autor escreveu esta fala porque o romance policial sempre foi discriminado no meio literário. O mesmo personagem, no entanto, no momento seguinte indaga: “e os burros, do que gostam?”

Voltando à França ocupada, surpreende-me o fato de que, num país com intelectuais de porte de Albert Camus, Jean Paul Sartre e Michel Foucault, ninguém tenha conseguido perceber o genocídio que se anunciava; ou se percebeu, nada pôde fazer.

O próprio Gabeira mencionou ainda no debate: "houve aqueles que publicaram livros sob o nazismo mas, ao mesmo tempo, escreveram clandestinamente na imprensa da resistência." Apesar disso, todos nós sabemos que não se ganham guerras com ideias e palavras.

Talvez, em meio a uma guerra, o que intelectuais e artistas devam fazer em primeiro lugar é fugir; em segundo, para aqueles que puderam ficar, o que lhes resta é dar continuidade à festa. Então, já não se pode separar "burros" de intelectuais, como Shaffer faz no seu teatro. Aqui já não se trata de saber apreciar um bom romance policial, mas de ter de viver sob um estado policial.

Um violinista quer continuar tocando mesmo que na plateia estejam alguns oficiais do Reich, o importante para ele é praticar sua arte. Mas os escritores, para que público costumam escrever?

Escritores, com raras exceções, não tocam violino.

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