domingo, abril 22, 2012

Automóveis, futebol e a promessa do poeta

Um dos grandes aborrecimentos para quem possui carro no Rio é levá-lo à vistoria anual no Detran. Essa obrigação imposta pelo Governo Estadual não faz parte do calendário dos Departamentos de Trânsito de muitos outros estados brasileiros. Além disso, ela não contribui para evitar a poluição nem diminui o risco de acidentes. Todos sabemos dos jeitinhos existentes em nosso país para burlar a lei sem que o poder público incomode. Nas rodovias, principalmente, é possível encontrar caminhões e veículos de transportes, como ônibus e vans, sem a mínima condição de trafegar.

Apesar de contrariado, chegou o dia em que eu deveria ir à benfazeja vistoria. Um motivo a mais de sobressalto é que tenho um veículo antigo, sempre na mira de impetuosos e aborrecidos fiscais. Como de praxe, fui na expectativa de uma longa espera. Deixei livre toda a manhã de quinta-feira e levei comigo um livro, 200 crônicas escolhidas, de Rubem Braga. O posto designado foi o Machado de Assis, no Catete. Fiquei a matutar se não teria sido melhor levar a obra completa do fundador de nossa aclamada Academia Brasileira de Letras.

Ao dobrar à direita após a praça José de Alencar, deparei-me com o posto do Detran. Uma enorme fila vinha de lá de dentro até quase sobre a calçada. Parei ainda na rua, junto ao meio-fio, e esperei que a fila se movimentasse para eu avançar posto adentro sem obstruir a travessia dos pedestres. Mas o motorista de um enorme automóvel, acho que desses importados (ou meio importado, não sei, dizem que as peças são fabricadas em outros países e o carro montado aqui), pôs-se a buzinar para que eu me adiantasse. Ainda assim esperei, indo à frente apenas quando pude parar dentro do posto, no final da fila. Olhei o retrovisor e constatei o apressado motorista atrás de mim, obstruindo o passeio. Enquanto isso, um ágil motociclista veio pela contramão e entrou no posto, parando sua moto bem à minha frente, como se eu e os outros que estavam atrás não existíssemos.

A fila andou com certa lentidão, a princípio. Enfim, chegou a minha vez de apresentar os documentos na guarita de entrada. Depois fui autorizado a dar a partida e posicionar meu carro na fila que me levaria à aguardada vistoria.

Parti para essa segunda etapa e encontrei quatro ou cinco veículos posicionados à minha frente. Achei então que era o momento de abrir meu livro. Sempre acreditei que a leitura faz o tempo passar mais rápido. Além disso, eu não me angustiaria com o pensamento de o meu carro, velho de guerra, ser reprovado na inspeção. 

Li em primeiro lugar a crônica “Passeio à infância”, em que Rubem Braga mescla presente e passado. No episódio, ele convida uma amiga a voltar à meninice e se portar como criança. Assim, os dois poderiam ser mais felizes. Depois mergulhei na crônica seguinte, “A companhia dos amigos”. Aqui, o autor narra um jogo de futebol marcado para as areias da praia de Copacabana no longínquo dezembro de 1946. O jogo seria entre o time do próprio bairro contra o de um combinado de Ipanema e Leblon. No time de Copacabana, desfilavam nomes como o de Di Cavalcanti (no gol), o próprio autor (na zaga), Augusto Frederico Schmidt, Fernando Sabino, Orígenes Lessa, Newton Freitas, Moacir Werneck de Castro, o escultor Pedrosa e o crítico Paulo Mendes Campos. Ia eu pleno de interesse pela partida. Acompanhava pernas que ora acertavam a pelota, ora acertavam as pernas dos amigos, bolas chutadas por cima da baliza, mesmo que nem baliza houvesse, faltas que não eram marcadas porque, como diz o autor, não havia juiz, “o que facilitou muito a movimentação da peleja”, quando ouço alguém me chamar. Era um dos fiscais. Eu devia adiantar o veículo, estava na hora da minha vistoria. Nem pude satisfazer a minha curiosidade em saber o resultado final de tão honrosa pelada.

Veio aquela chateação toda. Primeiro acelerar a dois mil e trezentos giros e manter a aceleração para que se pudesse medir a emissão de gazes. Depois tive de testar lanterna, farol baixo, alto, esguicho de água no para-brisa, luzes de alerta, setas, luz de marcha-ré. O que mais? Ah, sim, extintor, triângulo e estepe. Surpreendi-me ante a presteza do fiscal, que era jovem e simpático. Ainda alertou-me que, caso eu tivesse comprado o dito extintor em tempo recente, que fosse à loja reclamar, porque o carregamento estava encima da marca mínima, o que não o invalidava, mas deixaria o tempo de sua funcionalidade reduzido.

Voltei a casa feliz por ter a aprovação na vistoria, mas preocupado. Queria saber o mais rápido possível o placar daquela peleja. Que não me acontecesse nada pelo caminho, nem um mínimo acidente (já pensaram, morrer sem saber quem ganhou?). Logo ao entrar em casa abri o livro e pude constatar que a valente equipe de Copacabana vencera os dois jogos, 1 x 0 e 2 x 1, e que foram jogados em três tempos. Consta ainda que, apesar de ausentes, Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda e Afonso Arinos de Melo Franco reforçariam o Copacabana num próximo encontro. Enquanto isso, o combinado Ipanema-Leblon aguardava por Fernando Tude e Édison Carneiro. Esses não faço a mínima ideia de quem foram, mas espero que não tenham decepcionado.


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