sábado, junho 16, 2012

O mundo sem transgressão

Nos dias de hoje, a transgressão quase já não é possível. Quando falo nesse ato não discuto apenas ataques às instituições, como atitudes fora da lei, vandalismos e destruição, geralmente perpetrados por pessoas sem senso de responsabilidade pela vida em sociedade; também não me refiro a atitudes antes cerceadas mas pouco a pouco absorvidas e incorporadas à ideologia pela perversão sistêmica do capital. Mas à transgressão no sentido da tentativa de não compactuação, de não cumplicidade, de desvio ao caminho único que se afigura na pós-modernidade, esse modelo sempre difundido até a exaustão pelos telejornais mundo afora, durante as 24 do dia.

Nas tevês, sobretudo, propaga-se a diversidade, mas sabe-se que é só máscara. Na verdade, a tal diversidade não existe. Todos estão enfronhados num mundo em que se precisa trabalhar, ganhar dinheiro para sobreviver e consumir para gerar novos empregos. Caso alguém queira criar outro modo de vida, digamos um modo de vida contemplativo, logo é criticado e taxado de louco ou vagabundo. O bom sujeito é aquele que trabalha e não reclama.

Caso remontemos à antiguidade clássica, perceberemos que muitos filósofos trafegaram no contrassenso do modo de pensar da maioria de seus concidadãos. Vejamos Sócrates, Platão e até mesmo Aristóteles. Suas teorias, que hoje soam tão sensatas, estabelecedoras da civilização ocidental, não foram logo aceitas. Sócrates acabou condenado à morte; Aristóteles exilou-se no fim da vida para que a filosofia não sofresse a segunda baixa; e Platão, cronologicamente entre ambos, safou-se ao criar um sistema invisível que, na aparência, afigurava-se muito inofensivo. O que podemos salientar entre esses pensadores, no entanto, é que conseguiram pensar alternativas ao seu tempo.

Voltando ao mundo contemporâneo, pode-se perceber que o século 20 foi pleno de tentativas de vida alternativa conhecidas como utopias, e muito anterior à época do movimento hippie a vida em pequenas comunidades já tinha sido experimentada em vários cantos do mundo, inclusive no universo judaico. Mesmo antes de um capitalismo tão avassalador, já se percebia, porém, que tais comunidades estavam fadadas à dissolução. As fábricas, nos subúrbios das grandes cidades, necessitavam de mão de obra. O socialismo veio como consequência a esse chamamento, surgia com a intenção de humanizar o setor produtivo. Com a impressão de que os meios de produção eram propriedade coletiva, a vida talvez parecesse mais fácil de ser suportada, embora desde o começo ficasse claro que poucos seriam aqueles que realmente teriam o poder de mando, e que os bens do estado estariam sempre distantes do povo.

Finda as utopias, sobretudo as de caráter universalista, a esperança de vida alternativa ainda tentou sobrevier em pequenas comunidades espalhadas pelo mundo, mas a informação massificada, cuja expansão foi alavancada em meados do século 20 pelo surgimento de novas tecnologias, não deixou que essas comunidades sobrevivessem. Sempre seria melhor criar um imaginário em que todos pudessem se tornar felizes usufruindo os benefícios da civilização, e a reboque disso consumissem produtos que multiplicassem o capital de quem os produzia, potencializados estes ainda com a hipotética possibilidade de participação dos cidadãos no capital das empresas cujas ações são negociadas em bolsas de valores. O instrumento útil à propagação dessa ideologia foi inicialmente a imprensa escrita, depois o cinema, a seguir o rádio e, enfim, a TV. Hoje temos o computador, com a internet a propagar o que, no entender do mundo do Capital, está mais à mão de todas as pessoas, os produtos que supostamente tornam a vida mais confortável. E tudo está à distância de apenas um clique. A conta? Bem, isso a gente depois resolve.

Mas apesar do avassalador progressismo, ainda existe a vida contemplativa. Ela está presente em algumas sociedades que divulgam uma espécie de gozo interior com o estar no mundo, com a apreciação da natureza e de obras de arte “puras”. Como o nirvana do budismo, a união em um só ser entre o humano e a natureza. O budismo e as práticas que levam em conta a meditação vão por esse caminho, criando para o ser humano certo distanciamento dos apelos comerciais, que parecem não levar em conta outros modos de vida.

A vida cuja razão de existência seja a arte (mas não arte de especulação financeira), ainda que para pequeno público, como a leitura, a escrita de poemas e de romances, a criação de espetáculos teatrais e pictóricos, também se apresenta como alternativa. O ser humano se sentiria satisfeito pelo prazer proporcionado pelo processo de criação. Mais uma vez fugiríamos da reprodutibilidade, cujo motor inicial foi o processo de industrialização.

Refletindo sobre a questão da recusa a um modelo, ou modo único de vida, já estamos lucrando, porque aqui existe pelo menos a reflexão, fato que a engrenagem de produção e consumo tenta solapar.

Outra possibilidade de recusa e ruptura à via de mão única da contemporaneidade seria a loucura. Mas essa se tornaria problemática, porque o mundo dos loucos carece de sintaxe, ou se ela se apresenta é aleatória, em constante mutação, o que afastaria a possibilidade de qualquer tipo de organização social. Talvez o ponto positivo dessa hipótese seria especular sobre a série de surtos coletivos (uma espécie de sintoma) observados nas sociedades que vêm apresentando assoberbamento da neurose consumista.

O gigantismo e a complexidade de um mundo em que predominou a repetição através da industrialização em massa provocaram o modo de vida onde o mais importante é ocupar o imaginário das pessoas, não o território. Quanto mais imaginário conquistado, mas fãs e adeptos a determinados mecanismos de repetição guiados pela cultura de massa. Esta, enfim, chegou a um ponto de total expansão com a internet, mas por maior a ironia, seu gigantismo passou a autodevorar todo o sistema, todos os mecanismos criados anteriormente.

Ainda talvez não seja a hora, porque temos na rede mundial de computadores a repetição das audiências do chamado “mundo real”, como a dos jornais impressos, a das emissoras de tevê e até mesmo a das estações de rádio. Mas quando já tivermos distantes de tudo isso, e com a possibilidade de todos também serem “agentes”, as audiências tenderão a se pulverizar. Então, a saída será voltarmos às pequenas comunidades de interesses, e só sairemos delas nos poucos momentos em que precisemos procurar uma padaria para comprar o pão de cada dia.

Para que não sejamos tão céticos e catastróficos, um dia desses descobri um grupo de poetas que publica seus poemas em pequenas tiragens e os divulga apenas entre os amigos. Um deles falou que poesia não é para dar lucro. E ainda foi mais longe: a única transgressão possível é a da poesia, porque transforma a linguagem, o referencial com que o ser humano se entende, num terreno não tão seguro. Uma vez por mês reúnem-se para ler seus versos em voz alta. Talvez esse pequeno exemplo de comunidade possa servir de alternativa a quem almeja um mundo mais humano, sem preocupação com a audiência e, em consequência, sem o instinto exacerbado de competição.

Comecei discutindo a possibilidade de algumas atitudes de recusa ao mundo intensamente comercial em que vivemos, esse universo reprodutivo que devora todos os sonhos. E chego à conclusão de que, salvo essas pequenas e talvez importantes tentativas de insistir em opções alternativas, há a atitude mais drástica, talvez a chamada recusa total, às vezes utilizada por poetas e filósofos entre outros e outras, a maior de todas as transgressões: o suicídio, ainda que através do álcool e das drogas.

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