sábado, junho 23, 2012

Bloomsday

Na semana passada, mais precisamente no dia 16 de junho, foi o Bloomsday. A data é comemorada em Dublin, na Irlanda, onde é feriado nacional, e em quase todo o mundo onde se lê Ulisses, de James Joyce. Convencionou-se escolher esse dia porque é justamente nele em que se desenrola a ação do famoso romance que veio mudar a história da literatura. Bloom é o sobrenome de Leopold, o protagonista da narrativa, daí ter sido escolhido seu nome como o dia de exaltação ao livro. Em consequência, também se dignifica o herói moderno, aquele que vive a pequenez do dia a dia e, por suportá-la e nela encontrar sentido, descobre seu aspecto grandioso e heroico.

No Rio, este ano, a data foi comemorada duas vezes. A primeira aconteceu na Escola Letra Freudiana, uma escola de psicanálise que não despreza a literatura como objeto de discussão da subjetividade. Ali esteve presente a tradutora de uma das versões do romance (no Brasil acaba sair a terceira tradução de Ulisses), professora Bernardina Pinheiro. Ela apresentou, no evento, um tema interessante para a contemporaneidade: Joyce e a política, onde ressaltou através de passagens de os Dublinenses e de Retrato de uma artista quando jovem, trechos em que o autor irlandês discute o assunto. É bom saber que o pai de Joyce pertencia ao partido nacionalista irlandês e queria os ingleses longe da Irlanda. Os segmentos escolhidos foram dramatizados por um casal de atores, que soube personificar um Joyce preocupado não só com a literatura, mas também com a política na Irlanda de seu tempo.

No domingo, dia 17, houve outra comemoração, desta vez na Livraria da Travessa, no Shopping Leblon. Ali esteve presente, para o lançamento da terceira e mais recente tradução de Ulisses, o professor e tradutor curitibano Caetano W. Galindo. No mezanino da livraria, houve uma exposição de Galindo sobre a obra de Joyce e sobre as dificuldades de traduzi-lo para o português.

O que chama a atenção nesse volumoso romance de mais de mil páginas é o enredo, que praticamente não existe. Joyce retrata as vinte quatro horas na vida de um homem, o já citado Leopold Bloom. Como um livro dessa extensão pode ter “apenas” isso como trama? É simples, estão incorporados à obra quase todos os aspectos da natureza humana, como memória, ruminações interiores e sentimentos mais diversos de muitos personagens que aparecem no decorrer desse dia. Há também referência a outros livros e a clássicos da literatura, como Willian Shakespeare.

A completude e a totalidade, tanto na vida como na literatura, sempre foram objetos de discussão entre diversos autores, e o romance como gênero literário tentou inúmeras vezes dar conta da questão. Ao narrar uma história e, sobretudo, ao colocar o ponto final, todo autor, ainda que disfarçadamente, faz de conta que conseguiu tal façanha. Mas sabemos que o romance é um gênero aberto, que mais revela o caráter partido do ser humano do que sua totalidade. Temos exemplos de autores que criaram suas obras tentando dar continuidade a personagens de outros autores. Pensemos em qualquer livro de ficção que tenhamos acabado de ler. Por melhor ou pior que o classifiquemos, a vida dos personagens, pelo menos na nossa imaginação, continua. Portanto, mesmo quando mais extenso possível, conclui-se que esse gênero não pode dar conta da totalidade nem da completude, pois sempre há algo mais a dizer. É ponto pacífico que o ser humano deseja a totalidade. Talvez a própria necessidade da existência de Deus seja uma forma de atestar essa afirmação. Mas fiquemos apenas no universo da literatura.

Aí é que entra o Ulisses, de James Joyce. Por mais que recupere o mito grego presente na Odisseia atribuída a Homero, apresenta “apenas” as 24 horas na vida de Bloom. Para isso, contudo, precisou de mais de mil páginas, uma narrativa onde aparecem a grandiosidade e, ao mesmo tempo, a pequenez do ser humano. O Ulisses grego, cantado na antiguidade, viaja todo o mundo possível de seu tempo, passa por todas as experiências, chega a ir ao Hades e lá descobre seu pai morto, fato ocorrido enquanto ele, Ulisses, esteve na guerra de Troia e ainda não conseguiu volta para casa. A Leopoldo Bloom não é possível tal envergadura. Mas ao circular durante o dia 16 de junho pela Dublin de 1904, faz o percurso do herói moderno. E ainda que não seja tão grandioso como o de Homero, acaba acompanhando-lhe o vulto. Alguns críticos quiseram atribuir a Joice a especulação de que a heroicização do humano na contemporaneidade seria impossível. Mas pode-se dizer exatamente o contrário. O encontro do sentido de vida em um mundo industrial, longe dos alicerces humanistas, é o verdadeiro ato de heroísmo. Junto a essa questão, percebe-se outra, a incomunicabilidade entre os seres humanos. Por mais idiomas e por mais palavras que dominamos, nossa possibilidade de comunicação e cumplicidade de sentimentos quase não existe. Isso é comprovado pela intensa presença do corpo em todo o romance.

A monumentalidade que o romance atingiu, apesar da trama tão simples, não foi por acaso. Assim como um homem simples se torna o grande herói dos dias da modernidade, o escritor que consegue retratá-lo e contar-lhe os feitos torna-se também o maior clássico.

Por isso o Bloomsday, uma exaltação ao Ulisses moderno corporificado na pele de Leopoldo Bloom, talvez seja, no fundo no fundo, a celebração de todos nós. Vivemos nossas ânsias não realizadas, traímos, sofremos traições que mal disfarçamos e ainda assim insistimos cultuando a esperança. Somos homens e mulheres que avançamos estilhaçados, incapazes das certezas e dos grandes feitos homéricos, ou se ao menos atingimos as bordas, é através da celebração do nosso desejo.

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