sábado, maio 12, 2012

Saber e adoecer

Um dia desses, conversando através do Skype com uma amiga que mora no exterior, veio à tona qual deveria ser o papel dos intelectuais brasileiros no atual momento político. Como resultado, tocamos no tema do adoecimento da sociedade. A partir do momento em que se perde o poder de criação e predomina a repetição, adoeceríamos. O exemplo característico seria o operário encarnado por Chaplin, em “Tempos Modernos”, homem que, em sua máquina, repete continuamente o mesmo movimento até o enlouquecimento. Minha amiga, que esteve no Brasil para defender sua dissertação de mestrado, acusava a classe intelectual brasileira de acomodada, de agir apenas de acordo com os próprios interesses no sentido de preservar seus cargos nas universidades públicas. Ao contrário de países onde intelectual, segundo ela, é sinônimo de pesquisador responsável pela apresentação de soluções para os desafios emergentes, em nosso país isso não ocorreria. Nossos intelectuais estariam compactuando com a corrupção política e, enfim, com as mazelas do poder.

Dias depois participei, como espectador, de um debate entre Francisco Bosco, colunista do jornal O Globo, Alberto Pucheu, professor da UFRJ e Roberto Corrêa dos Santos, escritor poeta-crítico-literário sobre quem Pucheu estava lançando um livro. Na assistência havia muitos alunos e outros tantos professores de várias universidades. O debate foi realizado no centro cultural Midrash, no Leblon.

Confesso que compareci ainda marcado pela conversa que tivera com minha amiga e, nesse sentido, desejava fazer perguntas sobre o papel da intelectualidade em momentos críticos da História. Mas não foi nessa direção que se desenvolveu o debate.

O colunista do jornal o Globo fez as apresentações, esclarecendo sobre a linha de pesquisa do professor e da obra do crítico-poeta. Sei que algumas pessoas devem achar estranha a expressão “crítico-poeta”, mas é isso mesmo, pois segundo a tese de Pucheu, o poema contemporâneo e, precisamente o do poeta presente, existiria enquanto “o ensaio teórico crítico-experimental”.  Um dos pontos centrais da discussão foi sobre a existência ou não do contemporâneo, sobretudo na literatura.

Ainda segundo o debate, a literatura modernista apresentou uma proposta de rasura à tradição clássica, introduziu algo novo, algo jamais experimentado. O Modernismo tinha ideologia, deixava esperança no coração e na mente das pessoas. Mas e o contemporâneo, como estaria manifestando-se? Estabeleceram-se, então, pontos de vistas divergentes. Houve quem o negasse. O contemporâneo já não seria possível porque não se apresentaria da mesma forma como, por exemplo, se apresentou a grande narrativa dos oitocentos. Com o Modernismo, consequentemente, essa narrativa já se teria perdido.

Discutiu-se também o conceito de tempo, já que esse vocábulo situa-se dentro do vocábulo maior, “contemporâneo”.

Bosco deu o exemplo do telefone. Segundo  ele, o telefone de discar não é um aparelho contemporâneo (um dia foi), enquanto o Iphone seria. A seguir, pediu ao poeta que respondesse como nas artes isso poderia ser exemplificado.

Terrível exemplo trazer a tecnologização da precária e ao mesmo tempo complexa sociedade em que vivemos e querer a partir daí fazer um paralelo com as artes. O poeta delicadamente não navegou nas mesmas águas do colunista. Para ele o tempo, em termos de artes, não existe e, por conseguinte, não existiria o contemporâneo. O que existe são efeitos de vários tempos que convergem num determinado momento, e essa manifestação é sempre incompleta. Poder-se-ia exemplificar como algo que se oculta, que se constrói e se descontrói constantemente. Caso exista, é num processo de “fazimento” e “desfazimento” constante.

Roberto Corrêa dos Santos ainda ressaltou que não via nada de novo (nem de contemporâneo) na tecnologia nem na web nem no facebook. O importante não é o que se está fazendo, mas como se faz e de que modo isso pode servir de rasura, de borrão. Especulou que a felicidade seria a constante do ser humano, enquanto os atritos contra ela nada mais seriam do que a tentativa de quebrar essa mesma felicidade. Assim, não seria preciso viver em função do porvir, não precisaríamos ter esperança quanto ao futuro, porque se viveria um presente constante e de plena potência. A consequência disso seria a abolição da ansiedade e, em consequência, de sua dobra, a angústia. Concluiu: não pensamos numa fraternidade do futuro, mas numa que já vivemos agora, com as pessoas que conhecemos e com os amigos com os quais convivemos.

Voltei para casa pensando nessas questões e achando que elas traziam algo novo. Além disso, a obra de Roberto não tem preocupações com o mercado. É composta por livros quase artesanais, que prescindem de grandes editoras e de livrarias conhecidas. Apesar da sua grande importância, está toda esgotada. Quando lança um novo livro, o próprio poeta o distribui entre os muitos amigos que possui. E não se trata de um jovem idealista, ele já está na estrada desde meados do século passado.

Voltando à amiga lá do início da conversa, minha conclusão é que a função atribuída por ela aos intelectuais deveria ser a de todas as pessoas que compõem a sociedade. Pois os intelectuais jamais poderão assumir a posição de um pai zeloso ou de uma elite iluminada que poderia ditar “saídas” para a sociedade em momentos de crise.

Se há alguma iluminação nisso tudo, esse brilho seria apenas o fugaz lampejo de um borrão do real, manifestação atemporal e simultaneamente tempo-convergente, atuando como efeito do ter sido e do que se é, algo impossível de ser nomeado e de ser medido. Talvez essa constatação seja uma das poucas certezas do intelectual, por ser ele o mais capaz de atestar a fragilidade que o conhecimento comporta.  Assim, saber já não seria adoecer.

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