sábado, fevereiro 19, 2011

O pai da psicanálise e de muitos segredos

Entre fofocas e verdades, o destaque são os últimos anos de vida de Freud

Em A fuga de Freud há um capítulo em que o autor, David Cohen, comenta de modo muito eficaz o último livro escrito pelo criador da psicanálise. Apesar de dizer que Esboço de psicanálise não é um livro fácil, e que o pequeno volume não se destina a principiantes, Cohen acaba por tecer saborosos comentários sobre a obra, permitindo até mesmo ao leitor comum, que só conhece Freud ou a psicanálise de nome, a compreensão de certos princípios que regem o inconsciente. Então, A fuga de Freud não é apenas o retrato de uma fuga física de Freud e de sua família da Viena ocupada pelos nazistas, mas uma fuga – ou quem sabe uma escapulida inconsciente do próprio Cohen – em que o melhor da narrativa está nos assuntos adjacentes, e não propriamente no que o autor realmente desejava abordar. Assuntos como complexo de Édipo, sexualidade infantil, transferência, espaço da análise como lugar em que os pacientes não precisam ser civilizados soam com muita clareza.

O livro começa com menção a Anton Sauerwald, um Kommissar, funcionário designado pelos nazistas na década de 1930 para administrar e controlar empresas e bens de proprietário judeu. Ele passou a controlar não só os bens de Freud, mas também o seu destino. O psicanalista também era proprietário da editora Internationaler Psychoanalytischer. Apesar de a editora ser um desastre financeiro, o funcionário nazista foi acusado, depois da guerra, de se aproveitar de sua posição para apoderar-se não apenas dos livros, mas também do dinheiro da família Freud e de outros bens, como manuscritos, obras de arte e muitas outras coisas de valor.

Cohen também afirma que seu livro explicará “por que um nazista como Sauerwald tinha todos os motivos para esperar que a filha (Anna) e os amigos de Sigmund Freud fossem em seu socorro” depois da guerra, quando foi julgado pelos americanos no tribunal popular de Viena. Essa questão, no entanto, torna-se menor no livro. O que o autor faz é escrever mais uma biografia de Sigmund Freud, detendo-se nos últimos anos da vida do psicanalista. O kommissar da SS é mencionado apenas em quatro dos quinze capítulos que compõe o livro.

A principal queixa de David Cohen, logo no segundo capítulo, é sobre as restrições em vigor para consultas ao arquivo Freud, depositado na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos. Segundo ele, lá estão abrigadas 153 caixas de correspondência entre Freud e membros da família, amigos e pacientes. Há também anotações e outros documentos, mas nem todo o material pode ser lido. Alguns arquivos, diz o autor, só poderão ser abertos em 2020, 2050 ou 2057. Existem também arquivos fechados em caráter perpétuo.

Das biografias sobre Freud, Cohen se detém sobre o principal biógrafo do autor, Ernest Jones. Há indícios de que áHH o próprio Freud o nomeou como seu biógrafo porque sabia das dificuldades que ele teria para ser objetivo. A principal crítica do autor de A fuga de Freud a Jones é de que este tendia à idolatria, tendo evitado assuntos polêmicos sobre a vida do pai da psicanálise. Consta que o austríaco incentivou seu biógrafo a se tornar psicanalista porque ele vinha das hostes cristãs, e a terapia freudiana era acusada de ser uma ciência judaica. Cohen também afirma que praticamente nenhum dos biógrafos de Freud, nem mesmo Peter Gay, se detiveram nos últimos anos de sua vida, período que deve ser investigado com maior atenção.

Como não poderia deixar de acontecer, o livro também focaliza a ascensão do Nazismo e sua influência, sobretudo na Áustria, e tenta explicar por que muitos austríacos teriam aderido ao partido hitlerista a ponto de apoiarem a anexação da Áustria pela Alemanha. Podemos ler trechos da correspondência de Freud com intelectuais amigos seus, que partiram para o exílio, entre eles Arnold e Stefan Zweig.

Cohen além de comentar a produção intelectual do autor de A interpretação dos sonhos também esmiúça sua vida financeira, mostrando que Sigmund Freud não a negligenciou, e que, contra as leis em vigor na Áustria de então, possuía dinheiro no estrangeiro para caso de uma emergência.

Há insinuações sobre o relacionamento de Freud com várias mulheres. A primeira é com Anna, sua própria filha; depois vem Minna Bernays, irmã de sua mulher. Também é mencionada a constante atuação da princesa Marie Bonaparte (sobrinha-bisneta de Napoleão I, da França) para ajudar os Freud nos momentos em que os nazistas estiveram em seus calcanhares.

A ressalva que se pode fazer ao livro é de que o autor muitas vezes se prende a fatos que não podem ser comprovados por documentos, como diz no começo: “Há quem afirme que Freud e Minna eram amantes e que ela teve que fazer um aborto”. Outro ponto também polêmico é sobre um tio de Freud que foi preso na segunda metade do século 19 acusado de falsificar dinheiro. Tais passagens revestem o livro, vez ou outra, em ares de fofoca.

Uma questão importante está no capítulo “As contas bancárias secretas”, onde Cohen explica como o sistema bancário suíço se aproveitou do dinheiro dos judeus que pereceram no Holocausto. O trecho vale como uma boa crítica, mostrando que houve muita gente que lucrou sob a sombra hitlerista e não pagou o preço quando o Nazismo foi derrotado.

Deve-se louvar a inclusão de dois apêndices. Um com o elenco de personagens, incluindo toda a família Freud, desde seus pais e tios até os descendentes. Depois são enumerados o primeiro grupo de psicanalistas, os médicos de Freud e os principais nazistas que tiveram alguma ligação com a psicanálise e com a família Freud.

A fuga de Freud, de David Cohen. Ed. Record, 320 páginas.

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