sexta-feira, março 11, 2011



O poder ultrajovem


Reedição de crônicas de Carlos Drummond de Andrade surge num momento em que o gênero se encontra negligenciado


Era bom quando tínhamos um poeta maior que, além de produzir extensa e múltipla obra poética, também escrevia três crônicas por semana no antigo JB. Bons tempos que não voltam mais. Um poeta que não estava só a surpreender os costumeiros leitores do gênero, mas também àqueles que não liam poesia.


Talvez com Drummond, em termos de Brasil, a poesia se tenha tornado até certo ponto popular. Quem nunca ouviu falar de “José”, de “No meio do caminho”? O poeta, que tratava a palavra com tamanha maestria, não a renegava na crônica, gênero até certo ponto, conforme nos ensinam os manuais, fugaz.


Crônica vem de Cronus, deus do tempo na antiguidade clássica, também conhecido como Saturno, aquele que devorava os próprios filhos. Quem escreve crônicas não está apto a falar de deuses, mas de assuntos do tempo, desse tempo que passa muito rápido, deixando-nos com traços no rosto e mais próximos do fim. Logo, a crônica também acaba passando. Mas não é isso que acontece com o gênero quando se trata de Carlos Drummond de Andrade.


Caso procuremos nos muitas vezes soturnos departamentos de letras das universidades públicas, vamos encontrar dissertações e teses que tentam provar que a crônica drummondiana é do mesmo quilate de sua poesia. Quer dizer, poesia e crônica, quando se trata do autor de A rosa do povo, não possuem diferença. Portanto, é de se louvar e desejar que sempre se reeditem as crônicas de Drummond. É isso que faz a editora Record com a nova edição de O poder ultrajovem, conjunto de textos escritos pelo poeta por volta do final da década de 1960 e início da seguinte. Neles, predominam sutileza, leveza e sensibilidade. Mas não deixam de fazer profunda análise tanto do ser humano como da época.


O livro começa com histórias protagonizadas por crianças ou adolescentes, que, na sua vontade férrea, como o ferro das calçadas de Itabira, conseguem dobrar os adultos: a menina a convencer o pai, no restaurante, de que tem o direito de escolher o próprio prato; o caso das crianças desconfiadas, que, muito a contragosto, deixam o autor segurar suas pastas escolares, ele que vai sentado no banco de um ônibus lotado; a mãe que acompanha o filho até uma casa abandonada para que ele recolha algo dali, caso contrário será objeto de escárnio entre os colegas da escola; a professora que tenta fazer um plebiscito na sala de aula para saber se deve lecionar usando calça comprida, mas chega à conclusão de que ser democrática dá muito trabalho; a história da adolescente que recorre ao poeta porque seu cãozinho comeu a capa e as primeiras páginas de um livro de Fernando Pessoa emprestado a ela pelo namorado. Ela quer o autógrafo de Drummond, não importa que não seja ele o autor do livro, o que vale é não desagradar o namorado.


Dentre muitos assuntos, algumas crônicas abordam outros escritores, como Cecília Meireles, Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Guimarães Rosa.


Cecília é comparada a uma deusa, que chegou e se foi em novembro. Ela fez tudo que deveria ter feito para ter as feições de um ser humano, mas, na verdade, tratava-se de uma deusa. “Mulher bela? Sim, foi mulher bela. Grande poeta? Claro, foi grande poeta. Mas foi principalmente... deusa. Ah, o sorriso olímpico de seus olhos verdes, mas quem disse que o sorrir dos deuses é promessa de comunhão com os homens?”


Mário de Andrade é outro contemplado. O cronista rememora os vinte cinco anos da morte do autor de Macunaíma. “Até hoje não é fácil aceitar a perda de tudo que em Mário de Andrade foi criação e expansão humana.” Sobrepõe-se, no final do texto, a imagem do modernista de primeira hora morto, mas é um morto que ri, “junta os dedos em cacho e movimenta-os, exclamando: A própria dor é uma felicidade.”


Outro lembrado é Manuel Bandeira. Ao completar um ano de sua morte, Drummond escreve: “O poeta morreu coisa nenhuma. É abrir ao acaso qualquer de seus livros e tirar a prova.” O cronista relata três episódios interessantes. O primeiro, durante um almoço com Bandeira, em que este lhe diz que não se pode julgar com justiça os concursos literários, “tão melhor avaliar um poema, quando a gente o lê sem intenção de julgar.” Outro episódio é a revelação súbita de Bandeira: “Carrego comigo duas tristezas, nunca amei uma portuguesa nem uma negra.” E ante a surpresa de um admirador, que lhe pergunta na rua sobre o segredo de sua mocidade apesar da idade avançada, Bandeira responde: “Sofrimento.”


E nesse ritmo vão as crônicas. Para não ficarmos apenas nos episódios que relembram amigos que já se foram, há momentos que revelam humor e ironia, como na crônica “Assalto”, em que uma senhora, ao pronunciar a explosiva palavra diante do preço exorbitante do chuchu, numa feira livre, põe a rua em polvorosa.


Há crônicas de espírito bem carioca, como a que registra o aparecimento de dois operários num andaime, ante a janela do autor. Este oferece a eles um cafezinho, e logo descobre que um dos pintores é compositor. O homem entoa um samba, sobre o próprio andaime, e acaba muito aplaudido pelo público, as outras pessoas que aparecem nas janelas do prédio de escritórios.


Como vivíamos o início dos anos 1970, não poderiam faltar referências ao futebol, à copa do mundo, e à ditadura militar, que aparece várias vezes sofrendo crítica velada, como no último texto do livro, o poema denominado “Copa do mundo 70”: “e de repente o Brasil ficou unido / contente de existir, trocando a morte / o ódio, a pobreza, a doença, o atraso triste / por um momento de grandeza.”


O poder ultrajovem

Carlos Drummond de Andrade

Ed. Record, 287 páginas
Matéria publicada no JB online em 07/03/2011.

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