sexta-feira, fevereiro 19, 2010

Sonhos, nuvens, fumaça e poesia

“Morava sozinho, não tinha dinheiro, minha saúde deixava bastante a desejar, não publicava nada em lugar algum fazia um bom tempo, ultimamente nem sequer escrevia. Meu destino parecia miserável. Acho que tinha começado a me acostumar com a autocompaixão.” Num determinado trecho de Estrela distante, Roberto Bolaño (1953 - 2003) faz o narrador dizer as palavras acima. Tudo funciona como se a literatura, ou a escrita do personagem – ele também é um escritor – estivessem a fracassar. Mas a história narrada, na verdade um romance dentro de outro, é que trará ao leitor a verdade. Então, o que seria fracasso acaba por se tornar revelação.

A narrativa inicia-se em 1973, às vésperas do golpe militar contra o governo de Salvador Allende. O autor apresenta um Chile pleno de força juvenil, onde a maioria dos personagens frequenta oficinas de literatura, sonha com um governo revolucionário e paquera as também jovens poetas, como as irmãs gêmeas Garmendia. No entanto, um jovem misterioso, inicialmente conhecido como Alberto Ruiz-Tagle, surgirá para desestabilizar o ambiente. Ele é um elegante e sofisticado participante numa das oficinas de literatura da Universidade de Concepcion, escreve até bons poemas segundo a opinião de algumas pessoas, e conquista o coração de uma das gêmeas. Após o golpe, saberemos seu verdadeiro nome: Carlos Wieder; na verdade, trata-se de um oficial aviador. Daí, ele passa a escrever com fumaça, nos céus do Chile, versículos bíblicos e poemas “enigmáticos”.

A questão primeira que o romance impõe é a literatura. Todos os jovens amigos do narrador são poetas ou pretendem sê-los, inclusive o militar infiltrado. Mais adiante, Bolaño faz um levantamento dos anos que se seguiram ao golpe, o que aconteceu com grande parcela da juventude chilena, a perseguição, a morte e o exílio. Sabe-se mais sobre o poeta aviador, sobre o furor que causou nos meios civis e militares do novo governo com suas piruetas e poesias aéreas. Mas, a seguir, também somos informados sobre sua saída de cena no momento em que não mais interessa ao governo.

Ainda a respeito da literatura, é importante observar outros pontos colocados pelo romance. Um deles é que, à primeira vista, todos os poetas são de esquerda. Apesar de seus poemas não serem diretamente políticos, a atitude de cada um dos escritores é de recusa ao status quo. A arte atua como instrumento de resistência. A partir daí se discute até que ponto pode existir uma arte de vanguarda patrocinada pelo regime, sobretudo sendo o regime militar e de direita. Após o golpe, há a debandada, quase todos os intelectuais ou poetas precisam deixar o país; há também aqueles que sucumbem. Outro ponto é a referência a grandes nomes da literatura universal, como Vitor Hugo, Balzac, Apollinaire etc, juntamente com autores desconhecidos ou mesmo criados por Bolaño, poetas ou prosadores que não só convivem com os clássicos mas representam (alguns deles) uma espécie de literatura marginal.

No começo do livro, o narrador conta a sua história e a de seus companheiros, de uma perspectiva distante. Diz que no ano de 1973 tinha apenas a idade de 18 anos. Logo vem os anos de exílio que perduram e parecem não acabar mais. A narrativa transforma-se numa espécie de escavação da memória quando relata sobre seus amigos e o destino que experimentaram. A maior parte da narrativa, no entanto, fixa-se em Ruiz-Tagle/Wieder, seu possível destino, sua aparição através de pseudônimos em algumas publicações menores e a tentativa de localizá-lo.

Nos três últimos capítulos “é então que entra em cena Abel Romero e eu volto a aparecer em cena”, o que revela a pouca importância que este narrador-poeta dá a si próprio. Há ainda uma frase pungente no mesmo parágrafo: “O Chile também se esqueceu de nós.” O personagem recém chegado é um ex-policial chileno que também está há anos no exílio, após vagar por vários países estabelece-se na França. Sempre tivera a fama de exímio investigador, chegando a desvendar os casos mais difíceis. No trecho, o livro assume ares de verdadeiro romance policial. Romero procura o narrador-personagem em sua casa, em Barcelona; encontra-o por intermédio de um ex-companheiro deste dos tempos do Chile, chamado Bibiano. Ambos eram inseparáveis na frequência às oficinas literárias e na vida boêmia de Concepcion. Bibiano jamais deixara seu país, tendo trabalhado durante muito tempo numa sapataria, para depois publicar e se tornar famoso, inclusive chegando a dar aulas em universidades americanas. Uma pessoa não identificada, que tinha enriquecido recentemente, pagava ao investigador e a quem ajudasse a encontrar Wieder uma significativa quantia, e “para encontrar um poeta ele precisava de ajuda de outro poeta. Eu disse que para mim Carlos Wieder era um criminoso, não um poeta.”

Romero segue o rastro de Wieder através dos vários nomes que este usara. Mergulhamos então numa rede que inclui fanzines de várias partes do mundo, não só de várias correntes literárias marginais como também publicações de skinheads, de grupos neonazistas e de torcidas de clubes de futebol. Aparece até uma rede de produção de filmes pornôs.

No capítulo final, é emocionante a viagem feita por ambos até uma estação turística na Catalunha, onde, segundo as investigações, mora o ex-poeta aviador. O objetivo é que o escritor exilado o reconheça, o restante estará a cargo de Romero.

O que se pode depreender no balanço geral da obra é todo um percurso que não só inclui a história recente do Chile, mas também um possível processo tanto de descrédito como de valorização da própria literatura. O narrador, numa vida muito semelhante à de Bolaño, está doente, não sobrevive de seus livros, até ali não obtivera reconhecimento e já passa dos quarenta anos. Acaba por aceitar a quantia oferecida para ajudar na captura do ex-agente colaboracionista do regime Pinochet.

A valorização está na elevação da poesia acima de qualquer outro tipo de arte literária, pois se trata de um enredo protagonizado por poetas. O próprio Bolaño parece fazer uma mea culpa, já que começou sua carreira como poeta e pouco a pouco foi abandonando a poesia para dedicar-se à prosa, sendo reconhecido afinal como grande ficcionista. Apesar de, aqui, a história ser contada por um poeta, não significa a negação da poesia; através de sua narrativa a História se mantém viva, a poesia se impõe e a arte assume, enfim, sua verdadeira função.

Estrela distante, Roberto Bolaño
Tradução de Bernardo Ajzenberg
Companhia das Letras, 143 páginas.

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