quarta-feira, fevereiro 03, 2010

Mélika Ouelbani relata origens do Círculo de Viena

Haron Gamal, Jornal do Brasil

RIO - O Círculo de Viena , um movimento neopositivista que ocorreu na primeira metade do século 20, tinha como finalidade discutir problemas de filosofia das ciências e de metodologia. Seus mentores e participantes objetivavam tornar a filosofia científica, oposta a qualquer especulação ou dogmatismo, eliminando por completo a metafísica, considerada por eles sem sentido.

O movimento foi vigoroso entre as duas grandes guerras e surgiu numa Viena que se opunha à tradição idealista e metafísica da filosofia alemã. Os integrantes do Círculo, estudiosos das mais diferentes áreas do conhecimento (o que marcava o grupo com o que se convencionou chamar nos dias de hoje de interdisciplinaridade), bebiam nas fontes de Wittgenstein (1889-1951), filósofo também vienense, que contribuiu no campo da lógica e da filosofia da linguagem.

O Círculo de Viena, livro de Mélika Ouelbani, procura descrever a origem do movimento, convergências e divergências de concepções de seus integrantes, formulações de teorias do conhecimento e o destino intelectual de cada um após a dissolução do grupo, devido também ao acirramento da perseguição nazista nos anos de 1930, a que se deve o assassinato do seu formulador, Moritz Schlick.

No principal período de atuação do Círculo, que se situa entre 1922 a 1936, quando Schlick substitui L. Boltzmann na cátedra de filosofia das ciências indutivas, na Universidade de Viena, estudantes e cientistas reuniam-se à sua volta para debater os mais variados temas, mas o que caracterizou esses pensadores foi o rigor lógico e, ao mesmo tempo, o principio de que só teria validade o evidenciado pela experiência. Por isso, eles também são chamados de filósofos empiristas.

Outros grupos análogos constituíram-se em Praga e Berlim, estando seus integrantes em intercâmbio com os do Círculo de Viena, organizando congressos em várias capitais europeias, tendo acontecido o último nos EUA, em Cambridge, Massachusets, no ano de 1939.

Eis algumas palavras da autora: “Praticamente quase todos os filósofos desse círculo recusavam-se a ser classificados como positivistas, a fim de que seu movimento não pudesse ser associado ao positivismo de Comte, que eles consideravam uma espécie de metafísica, ou até mesmo de 'verdadeira religião'. Contrariamente a isso, o propósito deles era fazer da filosofia uma disciplina científica oposta a toda 'especulação', a todo dogmatismo. A esse respeito, Schlick declarara que, eventualmente, ele até podia concordar com a classificação de 'positivista', desde que ela fosse sinônimo de negação de toda e qualquer metafísica”.

É importante salientar, no entanto, que seria melhor falar em um programa neopositivista do que em uma doutrina. Na verdade, esse programa consistia “globalmente, na realização de uma unidade da ciência e [caminhava] lado a lado com uma concepção da filosofia e de sua função”. O movimento até teve um manifesto, cujo título era A concepção científica do mundo. Nele, seus autores situam o movimento na história da filosofia inscrevendo-o na tradição vienense do final do século 19, e ressaltam a tradição empirista que não era estranha à Inglaterra (Russel e Whitehead) nem aos EUA (James), ou mesmo à Alemanha (Reichebach, em menor escala). O que esses pensadores queriam dizer com concepção científica do mundo significava mais especificamente uma concepção não metafísica do universo. O Círculo de Viena também tinha um aforismo: “O que se deixa dizer deixa-se dizer claramente”.

Um dos capítulos mais importantes do livro é o que trata de “Críticas ao positivismo lógico”. Mélika enumera os filósofos que criticaram o programa do Círculo, discutindo detalhadamente as formulações de Popper, Quine, Kuhn e Putnam. As principais reflexões desses autores são contra os princípios básicos do positivismo lógico (a distinção entre o analítico e o sintético) e “sobretudo o princípio da verificação, ou de sentido; em segundo lugar o empirismo e a antimetafísica daí decorrentes”. Outra crítica é a de que os neopositivistas não levaram em consideração “o aspecto social e cultural em sua explicação do processo do conhecimento científico”.

O que se poderia discutir, apesar de a autora tocar sem ênfase no assunto, é até que ponto o aparecimento do neopositivismo fez parte de um projeto de eliminação da metafísica, que foi concomitante à ascensão das doutrinas nazi-fascistas e outros totalitarismos. Essas doutrinas, na verdade, eram avessas a qualquer discussão que permitesse a multiplicação de sentido. Da mesma forma, os filósofos do Círculo de Viena propõem o estabelecimento do sentido pela experimentação e pelo logicismo. Até mesmo as ciências humanas, segundo eles, deveriam “seguir, mais cedo ou mais tarde, a mesma via da física e da matemática”. Segundo o livro, numa crítica tardia aos neopositivistas, associou-se a eliminação da metafísica não a uma ordem epistemológica, mas a uma ordem “política e histórica”.

Sem querer endossar concepções e propostas desses filósofos, a importância do grupo aponta a necessidade do ser humano pelo contínuo debate, condição fundamental para o progresso não só das ideias, como também das ciências, mesmo que os interesses dos cientistas não sejam convergentes e que suas disciplinas muitas vezes se mostrem conflituosas.

O destino do movimento pode ser observado a partir de duas perspectivas. A primeira delas é que a emigração de muitos de seus integrantes para os Estados Unidos nos anos que antecederam à Segunda Guerra fortaleceu o desenvolvimento do país que os asilou, permitindo que o pragmatismo e o pensamento lógico encontrassem terreno fértil na América do Norte. O segundo é que a perspectiva de destruição da metafísica não encontrou terreno na Alemanha, mesmo num período em que a ascensão do nazismo acarretava controle sobre a linguagem, ainda que o germanismo austríaco não se prendesse ao tom diretamente político, mas à questão de método.

É louvável, no livro, a existência de vasta bibliografia para quem deseja se aprofundar no pensamento dos integrantes do Círculo. Faço, no entanto, uma ressalva. Aparecem pelo menos três referências indiretas e uma direta a Kant (o kantismo é refutado pelo pensamento heterogêneo do Círculo), mas o seu nome não consta no índice onomástico.

O livro faz parte da coleção Episteme, da Parábola Editorial. Nela já foram publicados dois volumes: um sobre Foucault e outro sobre diversidade cultural.

15:54 - 04/01/2010

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