sexta-feira, março 08, 2013

Resenha de "A montanha mágica", de Thomas Mann


Romance de Thomas Mann antecipa visões do Holocausto

Um jovem singelo viajava, em pleno verão, de Hamburgo, sua cidade natal, a Davos-Platz, no cantão dos Grisões. Ia de visita por três semanas. 
Mas de Hamburgo até essas alturas a viagem é longa, demasiadamente longa, na verdade, para uma estada tão curta. É preciso atravessar diversos estados, subindo e descendo, do planalto da Alemanha meridional até a beira do lago de Constança, cujas ondas saltitantes são transpostas de navio, por sobre abismos considerados insondáveis. 
A partir dali torna-se demorada a viagem que até  esse ponto se realizava rapidamente quase em linha reta. Há delongas e complicações. Na localidade de Rorschach, já em território suíço, voltamos a nos confiar à viação férrea; mas, por enquanto não se progride além de Landquart, pequena estação alpina, onde se precisa fazer baldeação. [...] A estação de Landquart acha-se situada a uma altura relativamente moderada. A partir dela, porém, entra-se na própria montanha, por uma estrada rochosa, áspera, angustiante.

Desse modo começa a viagem de Hans Castorp aos Alpes suíços, no romance “A montanha mágica”, de Thomas Mann. O personagem, um jovem recém-formado em engenharia naval, tem como objetivo visitar o primo, Joachim Ziemssen, que sofre de tuberculose e está hospedado num sanatório (uma espécie de hotel, como são os sanatórios da época) da pequena cidade. A narrativa situa-se na primeira década e em meados da segunda, do século 20.

O início do romance, ao descrever as agruras da viagem de Castorp, contrasta com o que vamos encontrar durante todo o texto, que situa a história num lugarejo da Suíça. Narrações e descrições fora dali existirão apenas na lembrança dos personagens. E não são muitas. A narrativa avançará sem movimentos bruscos, privilegiando o aparecimento dos personagens, seus pensamentos, suas ideias e o que eles nos têm a dizer.

Assim, desde o começo, será possível constatar, além do movimento e do aparente desconforto para se chegar à montanha, sobretudo devido aos vagarosos transportes da época, a oposição entre subida e promessa, uma vez que toda escalada cria a perspectiva de algum tipo de revelação.

O título “montanha mágica”, que poderia soar estranho, permite também análises diversas. A primeira delas esgota-se no que pouco a pouco nos é revelado, um local onde a permanência pode levar os enfermos à cura; a segunda, como aponta Antônio Cícero no prefácio dessa edição, remonta a uma citação de Nietzsche em “O nascimento da tragédia”: “Agora a montanha mágica do Olimpo como que se nos abre e mostra as suas raízes. O grego conheceu e sentiu os pavores e os horrores da existência: para poder não mais que viver, precisou conceber a resplandecente criatura onírica dos olímpicos.” Nesse sentido, não teremos no romance deuses olímpicos, mas seres humanos que vivem, estes sim, um novo aprendizado. Ele pode estar numa nova maneira de compreender o passar do tempo (se é que o tempo, ali, passa), ou, uma vez que não se tem aonde ir porque os passeios são sempre os mesmos, na viagem pelo mundo das ideias. Portanto, a montanha mágica torna-se mística não apenas por curar alguns de seus enfermos, mas por proporcionar ao nosso personagem central revelações sobre a vida e sobre a morte. Na verdade, o romance de Mann acaba por tornar-se um romance de formação.

E para a transformação desse jovem engenheiro, que se preocupava apenas com a técnica, num homem de pensamento, a montanha mostra-se promissora. Tentativa bem sucedida do autor em revelar, num princípio de século tomado por intensa febre tecnológica (um mundo futurista), que as ideias jamais podem ser abandonadas.

Há uma história curiosa sobre a família de Thomas Mann. Conta-se que, um dia, seu filho, Klaus Mann, ao voltar a Munique após uma viagem ao exterior, foi convencido por um dos empregados da casa a abandonar imediatamente o país, pois o avanço do nacional-socialismo colocava em risco a sua segurança e a de sua família. Klaus ainda espera até o dia seguinte quando, então, parte para um longo exílio. Após algum tempo, ele descobriu que o empregado era agente do regime e, naquele momento, não se sabe por que motivo, tentou livrar a barra dos patrões.

Em “A montanha mágica”, vemos desfilar uma série de adoráveis personagens, cada um representando uma ideia, ou um modo de vida. Um deles é Setembrini, a quem o autor nomeia de literato da civilização, isto é, um intelectual herdeiro do humanismo e da ilustração. Outro é o jesuíta Naphta, que trava com o italiano Setembrini um tumultuado embate intelectual. Ambos visam conquistar o espírito de Hans Castorp e tê-lo como discípulo. Há também Mynheer Peeperkorn, um holandês grandioso nos gestos e inconcluso na eloquência, mas cujas palavras revelam-no um tenaz conquistador. Mann o criou baseando-se num famoso escritor alemão do período, ganhador do prêmio Nobel de literatura. Desfila também a russa Mme. Chauchat, cujos olhos quirguizes seduzem o personagem central e o fazem lembrar uma paixão da época de colégio. Atente-se aqui para o tipo de paixão. Espalham-se pelo romance muitas informações acerca da medicina da época e da psicanálise, esta ainda no seu estágio de fundação, representada no romance pelo Dr. Krokowski.

A estada de três semanas de Castorp junto ao primo, em Davos-Platz, acaba demorando-se um pouco mais. As pessoas, praticamente todas enfermas, vivem um microcosmo da humanidade do período. Thomas Mann, como todo grande autor, adianta-se ao seu tempo quando diz pela voz de Naphta: “o segredo e a existência da nossa era não são a libertação e o desenvolvimento do eu. O que ela necessita, o que deseja, o que criará é: o terror”.

O livro, publicado em 1924, muito antes da Segunda Guerra Mundial, dos campos de extermínio e dos atuais homens-bomba, mostra, ao contrário do apelido que carinhosamente Setembrini dá a Castorp, que os “filhos enfermiços da existência” estão muito além da montanha.

A montanha mágica
Thomas Mann (tradução de Herbert Caro)
Editora Nova Fronteira, 957 páginas

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