terça-feira, janeiro 24, 2012

Resenha: Dois Rios, Tatiana Salem Levi, Ed. Record, 220 páginas.

Nas mãos de autores que já  antecipavam a modernidade, o personagem-narrador tornou-se componente eficaz, produzindo na maioria das vezes artifícios que acabaram por se tornar uma das questões fundamentais dos romances. A literatura brasileira apresenta numerosos exemplos nesse sentido, que podem ser constatados ainda no Romantismo e, mais adiante, no nosso principal clássico, Machado de Assis, sobretudo em Memórias póstumas, Dom Casmurro e Memorial de Aires. Na contemporaneidade, temos dois exemplos de autores que souberam tirar o máximo proveito desse personagem: Milton Hatoum, em Relatos de um certo oriente e Bernardo Carvalho, em Nove noites. Tatiana Salem Levi entra pelo mesmo atalho, tentando dar aos narradores de Dois Rios o fôlego necessário para levar sua história até o fim.

Mas a empreitada, aqui, torna-se arriscada. Construir um romance em primeira pessoa com dois narradores implica dois problemas. O primeiro é o sacrifício de um arrojo poético maior em prol da objetividade do que cada um tem a dizer. O segundo exigiria muito do escritor, porque as palavras desses narradores teriam de insinuar a psicologia e as idiossincrasias de cada um deles, logicamente elas não poderiam ser as mesmas. Numa leitura mais apurada, o que se pode constatar é que os dois personagens-narradores são muito semelhantes, senão os mesmos.

O romance, dividido em duas partes, apresenta na primeira uma mulher chamada Joana. Ela relata sua vida e o passado da família. Na segunda, um homem, mais precisamente seu irmão gêmeo, Antônio, se põe a narrar parte dos mesmos fatos, acrescidos de outros que viveu longe da irmã. Apenas um acontecimento os diferencia: o homem parte, enquanto a mulher fica (ao menos temporariamente) e acaba tendo de cuidar da mãe, que pouco a pouco vai enlouquecendo. Um segmento da narrativa ambientado à época da ditadura militar colore o romance com tintas fortes, não deixando de lado o cinzento período da história do Brasil.

Dois rios, segundo livro de Salem Levi, segue, em parte, o mesmo gênero do primeiro, A chave de casa, que é a memória. Claro que, quando se trata de romance, o que predomina é a ficção. Mas o retorno constante ao passado, o trágico e inesperado término da infância, a saudade pelo que se foi, o amor e a promessa de eterna união entre os dois irmãos permeiam muitos momentos do texto. Mais à frente, no entanto, com a adolescência e a idade adulta, haverá a separação e o amor por outra pessoa. A descrição de paisagens marítimas e imagens noturnas revelam momentos de intensa beleza da narrativa.

Uma terceira personagem, a francesa Marie-Ange, mesmo sem querer, acaba por unir as duas pontas do que se havia rompido, a ligação entre os dois irmãos. Joana e Antônio, após a morte do pai, tornaram-se inimigos. Ambos se apaixonam pela mulher, só que vivem os momentos dessa paixão em geografias e tempos diferentes.

Dois rios, além do nome do livro e do lugarejo onde acontece boa parte da história, serve também como referência aos dois irmãos, porque, na verdade, eles deságuam na mesma foz: Marie-Ange.
O leitor de romances, mesmo ao negar sua face conservadora, normalmente gosta de, no fim da leitura, ver equacionadas algumas das tensões que lhe desfilaram durante a narrativa. O livro de Tatiana nos revela um ponto certeiro. Ambos, irmão e irmã, concluem que, ficando ou partindo, estarão sempre na mais completa solidão. O surgimento da francesa ajudou cada um a superar o nó que os impedia de viver com mais plenitude. Joana deixa de lado a culpa e a mãe, e começa a viver a própria vida; Antônio, que sempre fugiu dos problemas da pequena família, retorna para encará-los de frente.

Um episódio, no entanto, mostra-se incoerente. A segunda parte do livro ocorre num período de tempo quase simultâneo à primeira, mas há um momento em que se situa à sua frente. Nela, Batistine, avó de Marie-Ange, morre, fato que é narrado por Antônio. Quando Joana viaja com a francesa, num momento posterior à volta do irmão, ambas encontram a personagem ainda viva. Talvez a transgressão temporal sirva para mostrar que descobertas prescindem de cronologia.

Haron Gamal: doutor em literatura brasileira pela UFRJ
Artigo publicado no caderno Prosa & Verso de O Globo, em 07/01/2011.

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