segunda-feira, janeiro 09, 2012

O escritor na torre de marfim 

Charque, o mais recente livro de Marcelo Mirisola, não deve ser lido como uma obra autobiográfica. Talvez a gênese de toda confusão em torno do autor, no momento de cada novo lançamento seu, resida neste ponto, um princípio elementar na seara da literatura. Como o próprio escritor afirma: “eu uso a primeira pessoa, não falo na primeira pessoa”, e, logo a seguir, “no jardim de infância da literatura, a primeira lição que aprendemos é: Eu é outro”.

O livro tem subtítulo: uma autobiografia, vá lá. Expressão por demais irônica. Levando-se em conta as duas últimas palavrinhas, percebe-se o deboche com o próprio pseudogênero escolhido.
Não é novidade no universo da ficção a existência de autobiografias ou mesmo de biografias de pessoas que jamais existiram. Borges escreveu resenhas de livros que nunca foram publicados. Desde o surgimento do romance, passados os estilos dos oitocentos, como o Romantismo e o Realismo, obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas e mesmo Dom Casmurro, ambas de Machado de Assis, foram recebidas por muitos como portadoras da mais absoluta verdade. Portanto, por que o tema e o gênero escolhidos por Mirisola na maioria de seus livros, como também neste último, provocam sempre tamanha estupefação?

Outro aspecto deve ser destacado: o gênero ficção está aberto a todo tipo de invenção, mesmo que o reinventado seja o próprio autor, mesmo que ele atribua ao narrador as duas iniciais do seu nome civil. Mas os MM do protagonista de Charque indicariam verdadeiramente as iniciais do autor? Quem há de garantir? E se assim o fosse, qual o problema?

O trocadilho é fruto do Modernismo, e a prosa de Mirisola tem origem neste movimento inaugurado no momento em que as letras nacionais estavam congeladas, o vernáculo amordaçado, a língua elitizada e trancada em de torres de marfim. Não é por acaso que o protagonista de Charque tem um pequeno apartamento no centro de São Paulo, chamado por ele também de torre de marfim. Quem se esconde/revela, o autor ou a língua utilizada por ele? O que deve e pode ser criticado em Mirisola é o débito na originalidade. Ele não é o inventor de tal tipo de literatura.

Há quem afirme que o Pós-modernismo é o período em que são respeitados os vários tipos de discurso. Seria melhor afirmar que, se existe mesmo o Pós-Modernismo, com todo o respeito àqueles que fizeram ou fazem opções destoantes da maioria, não há a conclamada diversidade nem o respeito aos diferentes. O que existe é a pseudoaceitação da diversidade. Por isso, a prosa de Mirisola recebe tantas críticas.

Não é de se estranhar o motivo que leva sua escrita a causar tanto escândalo junto ao bom mocismo e ao politicamente correto de grande parte da atual literatura brasileira. O que existe de mais vigoroso em suas narrativas é o afã em ridicularizar os lugares comuns, os postos ocupados por aqueles que julgam ter atingido a merecida consagração. Seus personagens têm o direito de remar na contracorrente e de chamar de despachantes os escritores de botequim, ou de armazém. Também não há pecadilho algum quando o narrador de Charque diz que odeia as “acadimias”, mas entraria na disputa da cadeira de Paulo Coelho na Academia Brasileira de Letras, caso ela estivesse vaga.

Charque trata da vida de um escritor desde os anos de 1960 até 2011. E não deixa de fazer um acurado e arrasador levantamento deste período histórico, onde cada um a seu modo tentou ser bem sucedido procurando apropriar-se dos mecanismos que tinha à mão, como a especialização, o compadrio, ou mesmo a trambicagem. Tudo com o objetivo de conseguir seus fugazes momentos de fama. O narrador é mordaz nessa crítica, levando-nos a crer que a intelectualidade ao perder sua base teórica, ao se deixar levar por tantos conceitos heterodoxos, já não consegue fazer a devida leitura de mundo; elaborar propostas viáveis talvez seja ainda mais difícil. O que resta a essa intelectualidade é partir para o jogo com o que tem à mão, o que torna as apostas cada vez mais temerárias. Aí é que entra uma das questões fundamentais do romance: Charque já não seria apenas o nome do livro, mas significaria o modo que cada um encontrou para se autopreservar. O que vale 
para a maioria não é arriscar, mas manter os lugares conquistados.

Charque, de Marcelo Mirisola, ed. Barcarola.

Haron Gamal - doutor e literatura brasileira pela UFRJ
Publicado no caderno Prosa e Verso, de O Globo, em 19/11/2011.

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