sábado, abril 02, 2011

Tanussi Cardoso

O difícil percurso do olhar

O poema, sempre difícil de ser analisado, ou mesmo percebido, constante obstáculo para o leitor, eis que surge e se oferece à decifração. Mas se não o deciframos, não seremos por ele devorado. O poema não é uma esfinge. Ou me engano? Desejam-se as suas palavras como se deseja a placidez de um rio caudaloso em estação de estio. Mas logo sobrevém a tempestade, e a mesma paisagem, que tanto nos acalmava, torna-se ameaçadora, a ponto de nos arrancar de onde a observávamos, lugar que antes julgávamos seguro. Oh, impossível o sublime kantiano, acompanhar a tempestade, em toda sua plenitude, fora dela. Seria bom se a poesia tivesse a mansidão desse rio, qual o rio de Heráclito, mesmo que nele não fosse possível ver duas vezes nossa própria face. Seria bom ler poesia sem se deixar contaminar, sem termos de levar para casa, ainda que tão somente, uma gota de toda essa lama.

Assim, umas vezes como placidez, outras tantas como tempestade, chegam-nos os versos de Tanussi Cardoso. Em Exercício do olhar, como assegura o próprio nome do livro, exercita-se os vários modos de percepção da subjetividade, exercita-se nossa capacidade de sobrevida dentro da arte poética, ou mesmo – talvez o impossível – a capacidade de sobrevivência humana fora de toda essa tormenta.

Iniciando-se com “Óvulo I”, a poesia se apresenta como larva. Então, perguntamos? Do que é capaz uma larva? Já sabemos a resposta. Afinal, tudo começou com uma larva. Eis o início: “que bicho se abrirá em palavra?” Através desse pequeno verso, viaja-se não apenas pela história humana, mas também através da literatura em língua portuguesa. Lá está Camões, com o seu bicho da terra tão pequeno, depois Drummond, que retoma Camões e apresenta esse bicho ainda bem pequeno, mas como protagonista de outras viagens, odisséias modernas. O autor de Exercício do olhar atualiza o tema e o lança à posteridade, pois a viagem continua, e a poesia-larva há de se multiplicar abrindo-se em palavras, constituindo novos mundos, constituindo a própria liberdade, que é o que caracteriza o ser humano. Nada melhor para mostrá-lo livre do que o ato criador, no caso do poeta, sua escrita, tema do segundo poema, “Certas palavras”. Vai assim o desenrolar do livro, versos falando da língua, das palavras, da arte, de outros autores e de todas as possibilidades e impossibilidades.

O bom poeta nunca cabe em si próprio. Aliás, ninguém cabe em si próprio, mas, melhor do que o poeta para expressar tal preocupação não há: “porque todos os mistérios são santos, / não nomearemos o nome das / coisas.” Mas o que é o fazer poético senão o ato de nomear, mesmo negando-o? Escreve-se, nomeia-se, caso não se o faça com o nome conhecido, cria o autor uma nova maneira de dizer, um novo nome. Logo, nomeia-o do mesmo modo, embora à sua maneira. E assim avança Exercício do olhar.

O livro divide-se em três partes: o tempo, os dias, as noites. “Constrói o tempo teias e ruínas”, e nada melhor do que a poesia para fazer esse inventário, mostrando que o tempo também é construído por palavras: “O olho no olho do poema / que se anuncia / o olhar nosso de cada dia.”

Em “os dias”, confessa o poeta: “quando na superfície / o verbo / vem da falta.” Talvez pudéssemos, aqui, conjecturar que a poesia vem tentar preencher o que nenhuma outra atividade humana conseguiu. É possível dizer que, se os outros ramos do conhecimento dessem conta da vida, não necessitaríamos da arte, nem da poesia. Mas se apresenta o artista e, para causar vertigem nos estudiosos das outras áreas do saber humano, diz: “porque partimos / cegos / não há luz sol estrelas.” O poeta ou cantor, mesmo cego, como Homero, vem lembrar a existência da luz, feito que esses outros, portadores de técnicas capazes de erigir engenhos tecnológicos, não foram capazes de perceber. “Os dias” ainda mostram a carnalidade da poesia: “a palavra / orgasmo / abre-se tônica / bem no / meio / da carnalidade”, e, mais adiante, a carne vai irmanada à transcendência: “voo cego / de águia / desmaio / salto no / abismo / sem ar”.

Entre palavras discutindo as próprias palavras, palavras expressando o corpo e o amor, chega-se à ultima parte, “as noites”, em que a escrita revela, em “as sombras são”: “as sombras se esquecem / de si mesmas / e saem a espantar / as coisas, / à noite.” Espanta-se o poeta, espanta-se o leitor, a constatarem a poesia, esse fio tênue, capaz de atingir senão o cerne das coisas – hoje, duvida-se de que as coisas tenham cerne –, ao menos a levar ao ato de reflexão máxima, à descoberta surpreendente do que é estar vivo: “a cada poema / que se faz / adia-se a morte / até a manhã / de um novo / poema.”

Difícil falar mais sobre um autor de extensa e diversa obra – Boca maldita, 1982, Beco com saídas, 1991, Viagem em torno de, 2000, A medida do deserto e outros poemas revisitados, 2003, Exercício do olhar, 2006, e 50 POEMAS escolhidos pelo autor, 2008, – com elogios de inúmeros autores conceituados, como o do prestigiado acadêmico Antônio Carlos Secchin: “um dos pontos altos é o belo tom elegíaco que você empresta a tantos poemas" (sobre o livro: Viagem em torno de).

Retornando ao início dessa matéria, poderíamos perguntar: a poesia de Tanussi devorou o leitor, caso ele não a tenha decifrado? Certamente, não. Às vezes, como em toda escrita poética, a decifração torna-se difícil, e sabe-se que, para ela, não há apenas uma possibilidade de leitura, mas múltiplas. Então, não mais se teme a esfinge, admira-se e louva-se a sua beleza.

Exercício do olhar

Tanussi Cardoso

Editora Fivestar, 145 páginas.

2 comentários:

TANUSSI CARDOSO disse...

Haron, só tenho a agradecer a paciência - quase científica - de ter lido meus livros, em especial, o EXERCÍCIO DO OLHAR, com o olhar crítico que acrescenta algo novo à sua leitura e, portanto, ao próprio poeta. Com certeza, entre tantas análises feitas ao meu trabalho, o seu conseguiu tocar em pontos ainda obscuros - até mesmo para mim - de forma clara, objetiva, lúcida e... poética. Não basta criticar, há que se saber escrever. Ao findar o seu texto, senti que estou no caminho certo, procurando o meu espaço e a minha própria voz. Sei que saio dele engrandecido, o que me faz tentar continuar.
Agradeço o tempo perdido comigo, amigo.
Abraços fraternos, Tanussi

Carmen Moreno em Prosa e Verso disse...

Haron,
Belo e altamente poético seu texto sobre Exercício do Olhar. Sim, "(...)se os outros ramos do conhecimento dessem conta da vida, não necessitaríamos da arte, nem da poesia". Ainda bem que não conseguem dar conta! (rss). Assim, teremos sempre para nos "salvar" autores como Tanussi Cardoso.
Abraços,
Carmen Moreno