sexta-feira, janeiro 12, 2007

Gunsk

A primavera é uma estação alegre em grande parte dos lugares, sobretudo em Gunsk. O degelo acontecia de modo que não atrapalhava a vida dos habitantes da pequena cidade. Meu hotel se situava junto ao lago. Podia-se vislumbrar de uma das janelas do segundo andar a fina camada de gelo que se desfazia a cada dia e em breve daria lugar às límpidas águas do lago, que brilhariam novamente sob os mornos raios de sol.
Naquela manhã de fins de março, dirigia-me ao restaurante. Costumava-se comer em demasia naquele lugar, mas desejava apenas o desjejum. Uma xícara de café com leite, algumas torradas e iogurte. Havia poucos hóspedes no hotel. Fora da temporada, não há quase viajantes. Surpreendeu-me uma mulher só, que usava óculos escuros dentro do restaurante e se sentava junto a uma mesa próxima à escada que levava ao piso inferior.
Tentei disfarçar meu interesse em observar sua silhueta. Fazia seu pequeno almoço devagar e olhava as páginas de um livro. As outras mesas estavam praticamente vazias. No lado oposto, junto à janela que dava vista para a entrada principal, três senhores conversavam quase que de modo inaudível. Pareciam querer contribuir com o ambiente de paz e silêncio do lugar.
A chegada de um dos garçons com a bandeja plena de xícaras, pequenos pratos e talheres provocou um tilintar que me fez voltar novamente para a mulher. Agora ele a servia com zelo e atenção.
No decorrer da manhã, enquanto eu caminhava pelas alamedas frias e ainda com pouca vegetação, pensei o que uma mulher sozinha estaria fazendo ali naquela época do ano. Perdi-me em divagações que não eram de minha conta. E flagrava-me em atitude um tanto conservadora.
A cena se repetiu durante três dias. Sempre a via no mesmo lugar, lendo o livro, e, cobrindo-lhe os olhos, os óculos escuros. Não consegui enxergar título ou autor do livro. Ela comia e bebia vagarosamente, quase não fazia movimento algum. Tudo parecia ser repetição da cena que presenciei no primeiro dia.
Na manhã de quinta-feira, não mais a encontrei no restaurante durante o café da manhã. Provavelmente partira, pensei. Durante a tarde, no entanto, a avistei num dos bancos do parque. Senti vontade de me aproximar, mas não tive coragem. Ela, no entanto, sem desviar a vista do que ainda lia, me dirigiu algumas palavras. A princípio não compreendi. Mas depois de alguns instantes, percebi que me cumprimentava. Parei e retribuí-lhe a atenção. Surpreendi-me novamente quando me dirigiu as seguintes palavras:
– Sente-se um pouco, ainda é cedo para a hora do chá.
– Oh, não tolero chá – respondi.
– É por isso que nunca o vejo no restaurante à tarde.
Não falou mais nada. Ainda demonstrei certo desconforto devido ao silêncio que se estendeu dali em diante. Ela não se moveu. À hora do chá, pediu licença, levantou-se e se foi.
Eu partiria no dia seguinte. Concluí, então, que não seria possível estabelecer algum tipo de relação com ela. Durante à noite, porém, acordei com alguém batendo à porta do meu quarto. A princípio, estranhei. Depois fui abrir. Surpreendeu-me a presença dela. Ainda usava os óculos escuros e se podia perceber que tinha chorado. Pedi que entrasse. Apontei uma cadeira junto ao aparador. Ela abaixou a cabeça e permaneceu durante muito tempo naquela posição.
– Ainda não sei seu nome – experimentei.
– Elizabeth – proferiu num tom de voz suave.
– O que houve?, algum problema?
– Não, não houve nada.
Foi só o que respondeu. E novamente mergulhou num longo silêncio.
Apaguei a luz do quarto. A claridade ofuscava-me. Deixei acesa apenas a luz de um abajur lateral.
– Você é um escritor famoso, não? – perguntou.
– Escritor, sim; famoso, nem tanto.
– Li seus dois livros.
– O segundo foi muito criticado.
– Sei, acompanhei a polêmica – resumiu com voz embargada.
– Você bateu aqui às duas da madrugada para discutir literatura?
– Não, nem tanto – chegou a sorrir.
– Você acredita que os personagens poderiam ser pessoas reais? – continuou.
– Como assim? – surpreendi-me.
– Por exemplo: aconteceria tanta coisa a Leopold Bloom, em um dia, se ele fosse um homem de carne e osso?
– Ele era de carne e osso.
– Se fosse uma pessoa como qualquer um de nós? - ela insistia.
– Essa é uma questão complexa.
– Como assim?
– Creio que seria inútil conversarmos sobre isso agora.
– Descobri que você vai embora amanhã.
– E você, mora aqui?
– Vou-me embora à tarde.
Levantou a cabeça e fixou o rosto em minha direção.
– Podemos nos ver em outra ocasião, em outro lugar – arrisquei.
– Responda-me só uma coisa: você acredita que a trajetória de um personagem poderia ser real?
– O real é discutível - redargüi.
– Muitos falam assim.
– Sim. A maioria das coisas são construções. Vivemos mais de histórias. O que corresponde ao real, ou à realidade, no espaço de um dia? Você daria conta de absorver através de seus sentidos tudo que está à sua volta, ao natural? Estamos aqui nesse hotel. Vemos o jardim, o restaurante, o quarto. Suponhamos que essas coisas sejam reais. Será que só vivemos dessas visões? Lembramos, pensamos, articulamos. O que são essas coisas? São experiências diretas ou estão misturadas ao que nos disseram, nos contaram ou lemos? Mesmo que algumas tenham sido experiências diretas, não são reais. Passam pelo crivo dos conceitos que criamos. Como eu falei no início, é uma questão muito complexa. Há os jornais, o rádio, a TV. Estamos mais cercados dessas coisas do que desse seu real...
– O real não é meu, – interrompeu – é um fato.
– Se você considera que tudo que nos chega é real...
– Nem tudo.
– Dê um exemplo.
– Será que eu sou real? Sou, você não acha?
– Depende. Você representa uma realidade. O real é uma outra coisa.
– Que coisa?
– Talvez o deserto, como diz aquele filme.
– Seus livros não são reais?
Comecei a perceber que ela brincava. Apaguei a luz e disse a ela.
– O que você vê agora?
– Nada.
– Então, isto é o real. Se acendo a luz, não há mais real. A própria lâmpada é uma construção. E também tudo que você verá em volta.
– Não acenda a luz – me pediu.
Senti que ela deitou-se a meu lado. E, talvez ironicamente, acrescentou:
– Vamos viver o real, mesmo que seja por uma noite.

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