quinta-feira, maio 04, 2006

Última noite em Bagdá
Não se deve voltar ao campo de batalha após abandoná-lo. É um ensinamento básico. Mas eu tinha de voltar. A causa: um livro esquecido. Logo eu que nunca gostei de ler, que comecei a me aproximar da leitura há pouco. O responsável disso: um professor que me fez representar pequeno papel numa peça, uma atividade escolar; ele disse que eu tinha talento, que era um artista nato. Me saí bem na apresentação, fui muito elogiado. Também nunca gostei da escola. O teatro começou a me mostrar que podíamos fazer alguma coisa diferente ali, além da chatice do dia a dia; o teatro e um jornal que havíamos criado. Agora, deitado sobre o chão da sala, na escuridão da noite, vejo pelo vão em escombros, local onde antes ficava a janela, as únicas luzes possíveis: a das estrelas distantes e a de morteiros e foguetes que cruzam o céu. Talvez tantas cores sirvam para orientar algum tipo de ofensiva, como estava acostumado a ouvir dos locutores, no pequeno rádio que possuíamos. Estou agarrado ao livro, apenas me movimento, vez ou outra percebo o cravar de projéteis no antigo forro da casa. O pó que se desprende e os cacos de cimento que caem sobre mim lembram meu pai e o tempo em que ele andava de uma lado a outro tentando melhorar nossa casa. Todos já se foram, dizem que para um campo de refugiados. Não tenho idéia do que seja isso. Voltei escondido, não posso abandonar este livro, deixar que se perca em meio ao monturo de destruição deixado pela guerra. Sempre pensei que iríamos sair desta situação. A guerra era uma coisa distante, não nos atingiria. O avanço do inimigo era apenas comentários de pessoas desocupadas que ficavam perdendo tempo com assuntos inúteis à porta das casas. Mas o inimigo veio. De início, mostrou-se em disparos e clarões distantes. As crianças se assustaram, procuraram os abrigos. Mas logo todos perceberam que eles eram frágeis e não comportavam toda a população. A seguir, vieram os aviões. E como voavam rápido. Pareciam invisíveis. Passavam furiosos, tinham como rastro o próprio barulho que faziam. Ouvimos também a aproximação dos helicópteros. Mas não estavam ali para nos retirar, como tinham prometido os americanos; num vômito constante, despejavam soldados. Mais tarde, nos deparamos com fileiras e mais fileiras de caminhões e carros de combate. Agora, eu, aqui. Na casa semidestruída que um dia foi nossa. Eu e meu livro. Bem apertado à minha barriga. A pequena sala onde estou permanece no escuro; apenas reflexos de um céu em fogos de artifício. Mas às crianças, ou ao que sobrou delas, é possível, entre outras coisas, enxergar no escuro e descobrir palavras. (Encontrado entre as páginas de um Hamlet)

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