Em Peregrinação,
texto publicado pela The New Yorker
em dezembro de 1987 e só agora traduzido para o português (Revista Serrote, nª
11, Instituto Moreira Sales), Sontag narra sua infância e parte da adolescência,
até fixar-se num acontecimento marcante na sua vida: o encontro com Thomas Mann,
no final de 1947.
Aos quatorze anos de idade, a então adolescente já levantava
algumas questões, como o desinteresse dos jovens pela leitura, a “baboseira de
colegas de escola e de professores” e o estrago que a incipiente cultura de
massa da época, tendo como ponta de lança o rádio, já começava a insinuar: “os
programas semanais de humor, ornados com risadas enlatadas, a pegajosa parada
de sucessos, a histérica narrativa dos jogos de beisebol e das lutas – o rádio,
cujo móvel enchia a sala de estar nas noites de semana e em boa parte dos
sábados e domingos, era um tormento sem fim.” Mas é a visita a Thomas Mann no
seu exílio nos Estados Unidos, que antecipa, como uma premonição, o futuro da
intelectual e pensadora americana.
Em Los Angeles, a alguns metros do cruzamento da Hollywood
Boulevard com a Highland Avenue, ela encontra sua primeira livraria. Passa a
frequentá-la, onde lê em pé os livros que mais lhe interessam. Em algumas
ocasiões, com sua parca mesada, compra um ou outro. Mas sabia que seu dia
chegaria, e que em algum lugar havia pessoas que pensavam de modo semelhante a
ela.
Aprecia a música de Stravinsky, que podia ser ouvida em
alguns concertos que frequenta gratuitamente com um ou dois amigos de escola. Ouve
também “os guinchos e as pancadas” de John Cage, porque sabia que os jovens de
sua geração deviam gostar de “música feia”.
O que Stravinsky era para ela na música, Thomas Mann tornou-se
na literatura. Em novembro de 1947, compra A
montanha mágica. Começa a ler naquela mesma noite, e durante algumas das
noites seguintes diz que sentiu falta de ar enquanto lia. “Pois aquele não era
simplesmente mais um livro que eu adoraria, era um livro transformador, uma
fonte de descobertas e reconhecimentos.”
Merril, um dos colegas de escola com quem ela sempre passeia,
sugere que procurem na lista telefônica o nome de Mann, que mora na mesma
cidade dos dois. Na Califórnia daquele tempo, mais precisamente em Hollywood,
quem tinha muitos fãs eram os artistas de cinema, portanto, Thomas Mann, embora
fosse uma figura pública, não seria difícil de ser contatado. Ele atende ao pedido
e marca a visita para o domingo seguinte.
Susan mostra-se constrangida durante toda a entrevista, teme
cometer qualquer tolice. Repara que Mann fala devagar. A jovem pergunta-se se não
teria sido um erro visitá-lo, pois já o conhecia bem de seus livros. Talvez a
vagarosidade de sua fala tivesse como causa o fato de o inglês não ser sua
língua natal ou, quem sabe, ele desejasse que os estudantes o compreendessem bem.
A conversa a princípio gira em torno de literatura. Depois,
sua mulher, Kátia, serve o chá. Mas a conversa continua. A jovem Sontag observa
a mesa de trabalho do autor, os objetos de adorno, como estatuetas,
fotografias, os quadros nas paredes, os livros; então, surpreende-se ante a
primeira biblioteca particular que vê na vida.
Mais adiante, o escritor quer saber sobre eles. A jovem se
constrange ainda mais. O que vai dizer? Tem vergonha da escola onde estuda. Já
não ensinam Latim nem Shakespeare, há aula de autoescola e datilografia, há até
um aluno que tem uma arma e assalta frentistas vez ou outra. Mas Mann
precisaria saber dessas coisas? Ele já tinha problemas demais: o exílio, a destruição
que o nazismo causara em toda a Europa; sua cidade natal, seu país, a Alemanha,
ficavam muito longe. O romancista era um deus no exílio. Bom quando ele falou
sobre o seu último livro, que estava sendo traduzido para o inglês naquele
momento (Doutor Fausto), melhor
quando citou A montanha mágica como sua
principal obra até ali. Susan e o amigo se decepcionam quando ele diz que
Hemingway seria o escritor americano mais representativo. Verdade? Será que o
famoso Thomas Mann gostava de Hemingway? Os dois não o tinham lido, não o apreciavam. Seu
amigo diz gostar de Romain Rolland, pensando em Jean-Cristophe; de Joyce, do Retrato.
Ela diz apreciar Kafka, de A metamorfose;
Tólstoi, dos últimos escritos religiosos e dos Romances; cita Jack London para
não faltar um escritor americano. Mann acha-os jovens muito sérios, talvez
destoantes do espírito americano (“dizia que sempre gostara de conhecer jovens
americanos, que mostravam o vigor e a saúde e o temperamento fundamentalmente
otimista desse grande país”). Em certo momento, o autor de Os Buddenbrooks fala sobre o valor da literatura e a necessidade de
proteger a civilização contra as forças da barbárie.
No final da tarde, a ainda quase menina Susan e seu jovem
amigo partem, com um sol poente que parece bastante luminoso. Ou seria a
impressão deixada pelo escritor?
Anos mais tarde, ao escrever Peregrinação, Sontag relembra o episódio como o fim de um ciclo.
Sua entrada para a Universidade da Califórnia, em Berkeley, depois a
transferência para a Universidade de Chicago, a opção pela filosofia e pela
carreira de escritora, escolhas ainda impensadas quando estivera lado a lado
com Thomas Mann. A era Roosevelt se encerrara, e a Guerra Fria estava
começando. O escritor e a família definitivamente deixam os Estados Unidos
depois de uma estadia de quinze anos, tinham até se tornado cidadãos americanos.
Mann vivera na Califórnia mas, na verdade, seu pensamento jamais estivera ali.
Susan Sontag faleceu em 2004 e, assim como Mann, sempre
acreditou na literatura e na filosofia, fez dessas matérias sua vida e usou a
escrita para lutar contra as ortodoxias e preservar a liberdade, uma forma
também de proteger a civilização contra as forças da barbárie. Ainda que isso
não seja possível neste período de capitalismo tardio, que ao menos aconteça
como na sua primeira leitura de A
montanha mágica: que a literatura e a filosofia possam ser transformadoras,
fontes de descobertas e de reconhecimentos.
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