quinta-feira, dezembro 21, 2006

Knopt

Numa tarde de sexta-feira de novembro as águas agitadas do Knopt levaram um menino. Ele brincava com outras crianças junto à margem direita. Corria. De repente debruçou-se na amurada, seu corpo projetou-se adiante e mergulhou nas águas geladas do rio. Os bombeiros foram logo acionados. Duas embarcações ligeiras procuraram durante horas o pequeno. Alguém avisou por telefone à cidade seguinte. Se ele fosse encontrado lá, no entanto, já se sabia que não estaria vivo. Em todo caso, a sobrevivência era difícil devido à baixa temperatura. Várias pessoas se aglomeraram no ancoradouro de Humpt. Muitos saltaram à velha embarcação que permanecia amarrada a toras e olhavam em todas as direções tentando descobrir algum vestígio do desaparecido. Crianças assustadas correram para junto de suas mães. A ponte Triestgarden abrigava vários homens e mulheres que em vão voltavam-se às águas lamacentas e rápidas que escorriam abaixo. Jovens revoltados formaram uma milícia e apedrejaram o posto de fiscalização que ficava também sobre a ponte. Pessoas presentes tentaram contê-los, mas a indignação era maior. Após discurso inflamado contra a administração local feito por um deles, outras pessoas aderiram aos revoltosos e multiplicaram-se as mãos que arremessavam projéteis improvisados contra a guarita. O guarda de plantão precisou fugir. Marcharam depois em direção à Câmara, mas foram contidos a tempo e dispersados por policiais avisados do que acontecia.
Como entardecia cedo naquela época do ano, as buscas tiveram de ser suspensas. Um clima de tristeza abateu a cidade. Ninguém tinha o que dizer. O acidente não fora o primeiro, sofria-se, porém, porque a vítima era uma criança.
Normalmente às sextas havia mais transeuntes no centro velho. Bebia-se animadamente até altas horas. Mas àquela noite a cidade ficou de luto. Após escurecer, as pessoas se dispersaram. Uns poucos se dirigiram às bodegas da margem direita, enquanto outros desapareciam embarcando nos transportes sobre trilhos, peculiares na cidade.
Entrei no bar de Greend. Dei-me com dois conhecidos. Meneei a cabeça cumprimentando-os. Eu e Greend éramos velhos amigos. Cumprimentou-me e, sem que eu precisasse dizer palavra alguma, serviu-me.
Às oito horas, Blend, morador de Munch, chegou à cidade. Até então eu não o conhecia. Vinha elegantemente vestido, trazia uma pequena valise. Entrou na bodega e pediu uma dose de uísque. Depois de tomar a segunda dose, tentou estabelecer diálogo.
– Soube que houve uma tragédia hoje.
– Sim – afirmei.
– A cidade está deserta. Não é costume estar assim às noites de sexta.
Usava uma gravata estreita sob o paletó preto, que continuava abotoado. Pendurara o grosso casaco logo que entrara.
– Venho de Trebic, viajo a negócios. Sempre pernoito aqui uma vez por mês, mas nunca vi o senhor – disse, continuando a se dirigir a mim.
Apresentei-me e permanecemos conversando. Parecia ser um homem alegre, feliz. Aos poucos, sob o efeito da bebida, foi se soltando. Contava casos engraçados sobre os moradores das cidades que sempre visitava. Ressaltava de maneira caricata o exótico, alguma pilhéria, ou alguém idiota e estapafúrdio. Começamos a rir. Inicialmente de modo acanhado, mas depois já à vontade. Até mesmo esquecidos da recente tragédia. A seguir falou sobre Malbork, cidade onde eu estivera há alguns anos e que me trazia boas recordações.
– Você conhece o Hotel Wensck?
– Conheço – respondi.
O Wensck era uma hotel antigo. Tinha três andares, mas não possuía elevador. Situava-se num lugar pitoresco. Suas janelas davam para as montanhas que permaneciam durante grande parte do ano com os cumes cobertos pela neve. A cidade não abrigava esportes de inverno; quem quisesse praticá-los devia se dirigir a uma outra povoação, a mais ou menos duzentos quilômetros de distância, para então começar subir as montanhas. Isso proporcionava à cidade atmosfera tranqüila e a deixava longe de turistas predadores que só viriam estragar-lhe o caráter de refúgio para aqueles que gostavam de se isolar do resto do mundo.
– Estive lá essa semana.
– Esteve no Trwarbovar?
– Claro! Você acha que eu ia perder essa? – disse com entusiasmo, enquanto mostrava o copo vazio a Greend.
– É o único lugar da cidade onde se pode ter uma boa bebida e uma boa comida – afirmei.
Ele assentiu com a cabeça, enquanto levava à boca mais uma dose de uísque.
– Conheci ali uma mulher. Sempre estive lá, mas nunca dei pela existência daquele ser fabuloso.
– Como se chama? – perguntei curioso.
– Apenas Anne, pelo que pude depreender.
Imediatamente me veio à mente a imagem de uma mulher com quem há anos me relacionara. Ele demorou-se durante algum tempo a descrevê-la e não tive mais dúvida de que se tratava dela mesma. Partira de onde estávamos havia três anos. Mudara de nome. Escondia-se em Malbork. Na ocasião da partida, dissera-me que seria a última tentativa. Durante toda a vida não se adaptara a lugar algum. Decidira dar mais uma chance a si própria. Era, a meus olhos, uma mulher atormentada. Isso ainda a tornava mais bela. Não disse nada a ele. Esperei que continuasse a conversa.
Um casal entrou na taberna de forma atabalhoada. O homem puxava a mulher pelo braço. Ela usava um vestido negro reluzente, que pude perceber quando tirou o casaco. Parecia estar bêbada. Tentava se libertar do braço dele. Mas ele a segurava com força, até que conseguiu fazê-la sentar em um dos bancos, junto a uma pequena mesa.
– Vamos comer algo, você precisa se alimentar, já bebeu demais – dizia a ela, se esforçando em transmitir-lhe carinho ou cuidado.
A mulher, porém, queria mais um dose de vodca. Insistiu tanto que Greend acabou levando-lhe a bebida. Tomou tudo de uma só vez. Ergueu a cabeça voltando os olhos para cima, como se apreciasse o teto do bar. Deu uma sonora gargalhada, depois se acalmou.
Blend reatou nossa conversa.
– Como eu ia dizendo, ela se chama Anne. Você a conhece?
Meneei a cabeça negativamente, enquanto bebia mais um pouco.
– Conheci-a nesta semana. Prometi voltar. Passamos uma noite juntos. Logicamente com muito respeito, no Trwarbovar. Ela me disse que mora no Wensk. Como é possível morar num hotel? Mas ela disse que mora e gosta muito. A rotatividade dos hóspedes parece que lhe causa excitação.
– O Wensk é propício a esse tipo de vida – consegui dizer algo, tentando não tropeçar nas palavras. Não queria que ele descobrisse a antiga relação que tivéramos.
A verdade é que eu a conhecera em Gunsk há oito anos. Ela estava em férias lá. Tentava se recuperar de mais uma de suas crises. Descobri que morávamos na mesma cidade. Quando voltou, estabeleci contato. Tivemos um romance. Fiz tudo naquela ocasião para ficarmos juntos, mas ela não era mulher de permanecer muito tempo com ninguém, nem permanecer no mesmo local. Quando partiu para Malbork, fui me despedir dela. Disse que um dia iria visitá-la, mas nunca fui.
– Disse que conheceu a obra de Schrobell – continuava ele com entusiasmo. – Parece que é um poeta excelente. Leu até alguns poemas para mim.
Eu o ouvia. Mas aquela conversa acabou por provocar-me forte impressão. Não pelo próprio Blend, mas pela lembrança de Anne. As inúmeras doses que eu já consumira também contribuíam para isso. A atmosfera do bar me sufocava. Outras pessoas entraram. Fumaça de cigarros se espalhava por todo o ambiente. A mulher bêbada recostara no ombro de seu homem. Parecia dormir. Embora Blend continuasse falando, eu já não ouvia suas palavras. Mudara de assunto. Contava sobre outros lugares, outras pessoas. Meus olhos estavam voltados para ele, meus pensamentos, entretanto, não mais se encontravam ali. Voltara-me para Anne.
Sim, iria até ela. Na próxima semana, viajaria a Malbork.

sábado, dezembro 02, 2006

O Buderwais
O buderwais ainda não recebera os habituais freqüentadores. Suas luzes vermelhas e azuis podiam ser vistas através da porta de vidro e já iluminavam com sutileza o interior do pequeno restaurante.
Anoitecera havia pouco. Joj Reed permanecia rente ao balcão lateral. Tinha um pequeno copo à frente e parecia, até aquele momento, sóbrio. Trajava uma surrada camisa grossa de mangas compridas, cinzenta, calças de brim, bota marrom com fivela de couro. Seu casaco jazia dependurado, por enquanto sozinho, na parede junto à porta de entrada. Estava quente ali dentro, mesmo assim, na cabeça, não dispensava o tradicional boné azul. A roupa apertada deixava transparecer que Reed estava realmente gordo. Tinha um rosto de menino, apesar dos cinqüenta e poucos anos. Demonstrava constante interesse por qualquer tipo de assunto. Punha-se a ouvir qualquer história atentamente. É lógico que não acreditava em todas. Mantinha-se sempre informado sobre tudo que acontecia em Kempt, embora o distrito tivesse crescido para o sul, lugar onde ele nunca estivera. Era um bom sujeito. Estava sempre pronto a ajudar alguém, desde que a necessidade não fosse dinheiro. Juddy aniversariava. Ele sabia que em breve a casa estaria lotada, por isso não tardara.
Todo final de outono havia festa no Bud. A data era conhecida por todos. Juddy fazia questão de não esquecer amigo algum. Pagava a despesa prazerosamente. Convidava até mesmo alguém que por acaso vira uma só vez. Era mestra em fazer amigos. E todos aproveitavam. Conhecidos e desconhecidos.
Um dos garçons tomava conta de um grande assado que havia horas parecia girar no forno improvisado. Ali não era habitualmente lugar de muita comida, era mais um bar do que um restaurante, mas aquele era um dia especial. Todo cuidado era pouco. E ele não queria decepcionar os convidados.
– Completa pra mim – mostrava o copo vazio ao ocupado garçom –, daqui a pouco você nem conseguirá ouvir minha voz.
O empregado o olhava enviesado. Mostrava-se nada simpático. Aquele freguês antes da hora o incomodava. Pegou bruscamente uma garrafa e completou sem disfarçar a fisionomia de desagrado.
Joj levantou o copo como se quisesse olhar através do vidro translúcido. Admirou a bebida transparente. Depois, rapidamente, em apenas um gole, despejou-a goela abaixo.
Devido ao frio, não havia mesas na parte externa, sobre o estreito calçamento. Era comum ocuparem aquela área. Até mesmo uma parte da pequena rua, em dias de temperatura amena, quando o bar lotava. Por enquanto, porém, algumas mesas permaneciam desarmadas, na área posterior. Talvez mais tarde, quando a bebida esquentasse homens e mulheres, alguém se lembrasse de armá-las e provavelmente muitos nem se importariam com o frio intenso.
Jefrey Santon acabava de chegar. A porta rangera. Joj virou o rosto e percebeu a entrada de um homem com fisionomia aborrecida. Não perdeu o humor:
– Veio sozinho, Santon? Deixaram você livre hoje? – deu uma gargalhada estridente.
Era por causa da mulher, que nunca o deixava em paz. Sempre que saía, ela imediatamente vinha atrás. O rosto do amigo – na verdade não podiam ser chamados de amigos quando estavam sóbrios – permaneceu impassível. Santon, a princípio, ignorou-o completamente. Joj nada falou. Mas pôde perceber que saía em vantagem com a blague. Sabia que depois da segunda ou terceira dose ele viria falar-lhe e tudo acabaria bem.
Após pendurar o casaco, tirar o gorro e enfiá-lo em um dos bolsos, olhou ao redor. Parecia desaprovar o ambiente. Acabou por pedir uma dose de uísque.
– Pode aproveitar, Santon, hoje não é por nossa conta – gargalhou Joj.
O garçom gritou por alguém que vinha lá de dentro. Mostrava-se por demais ocupado para atender bebedores, segundo ele, adiantados. O empregado pegou a garrafa e quando ameaçou entornar a bebida em um pequeno copo, deparou-se com as grossas mãos de Santon a cobrir o recipiente. Como já o conhecia, ia servir-lhe o uísque que bebia em dias comuns.
– Do legítimo, por favor - sussurrou de modo nada amistoso.
Depois de ser atendido e ainda observar durantes longos segundos a bebida que só podia usufruir em dias de festa como aquele, levou o copo ao nariz querendo sentir primeiramente seu odor. Após uma menção cordial a Joj, como desejasse a ele, ainda que em silêncio, saúde – tentava devolver-lhe o deboche –, virou o copo à boca.
A chegada de um casal despertou o interesse daqueles até então poucos freqüentadores. Era Célia Grifth acompanhada de um homem mais jovem, devia ter, no mínimo, dez anos a menos que ela. Vieram de modo sorrateiro. Entraram. Sentaram-se em silêncio junto a uma das mesas laterais, próxima à janela. O vidro estava bastante embaçado. A mulher procurou na bolsa uma carteira de cigarros. Tirou um, tateando sem pressa as extremidades do maço. Em seguida procurou fogo. Como custava encontrá-lo, Joj pensou em se adiantar, mas não foi necessário. Ela tinha um isqueiro. Ainda olhando ao acompanhante, que talvez se surpreendia com sua contida teatralidade, acendeu o cigarro e deu um longo trago. Os cabelos louros e um tanto embranquecidos – ela não usava tintura – se destacaram. Era bela. Não seria necessário apontar-lhe a idade para que se gostasse dela. Mesmo um tanto envelhecida, muitos não deixariam de desejá-la. O acompanhante, com pequenos olhos, perscrutou todo o recinto; vislumbrou o grande relógio acima do balcão principal; os copos virados e dependurados; as garrafas amontoadas a um canto sem preocupação de ordem ou harmonia; a fisionomia enfastiada do garçom e seu auxiliar; de esguelha investigou Joj e Santon. Quando o cigarro já atingira a metade, ouviu-se a voz de Célia, como que ao acaso. Dizia: "Bud, onde todos vêm, mas nunca se encontram". Acabou rindo alto da própria pilhéria. De repente falou ao acompanhante:
– Não vai pedir nada? Não tenha medo. É a Juddy que aniversaria. Daqui a pouco ela chega. Convidou os amigos e os amigos dos amigos. Não se preocupe. É por conta dela.
Ele, abrindo um pouco mais os olhos, a olhou. Sussurrou um tanto tímido a ela:
– Stanhagger e água mineral.
– Stanhagger? Bebida de profissional. Mas água mineral? Não me parece – disse sorrindo gostosamente. – Mas não é a mim que você deve pedir, eu não sou o garçom – falava enquanto apontava ao balcão mostrando o empregado da casa. Ela continuava com o rosto alegre e jovial.
Aos poucos as pessoas foram chegando e às 9:30 grande parte dos convidados já se encontrava no Bud, como era conhecido pelos freqüentadores usuais. O interior do bar estava quente. Embora a temperatura caísse ainda mais, alguns homens não se intimidavam e já se esparramavam pela parte exterior. A bebida contribuía para que carregassem as pequenas mesas para o lado de fora. Outros preferiam permanecer de pé. A aniversariante ainda não chegara. Mas era aguardada com muita ansiedade. Alguém ensaiava as primeiras notas musicais em um pequeno teclado. Um microfone mal regulado assobiou, sendo logo contido.
– Você precisa entender, Rich, que ele nos roubaram. Se tivessem de pagar tudo que nos tiraram, teríamos dinheiro para receber durante o resto da vida.
– Calma, Lionel, hoje é dia de festa. Não precisamos falar nisso. Bebamos do melhor.
– Não, isso jamais poderá ser esquecido – vociferava – fomos roubados. Criaram até leis para nos achacar.
Lionel saíra para junto às pessoas que se aglomeravam no passeio. Entre o vozerio, carregando seu eterno caneco de cerveja, acabava sempre no mesmo assunto. A venda das usinas de Kempt. Como a maior parte das pessoas que estavam ali, trabalhara lá.
– Eu disse na época – continuava –, quem apóia esta ação está enforcando-se, está atirando em si próprio. Mas não acreditaram. Achavam que tudo ia melhorar. Torpedearam até mesmo as ações do sindicato. Ilusão. Veja no que deu.
– Ele tem razão – bradou Kinsk um tanto turvo. – A questão são os índices. Lembram dos expurgos? Nunca recebemos aquele dinheiro. A justiça se arrasta até hoje entre marchas e contramarchas. Como pode o governo reconhecer a atualização de cinqüenta por cento dos índices para as indenizações e não fazer o mesmo sobre os salários que nos pagavam há quinze anos? E olhem que só reconheceram cinqüenta por cento – fazia questão de frisar, cuidando para que a bebida que trazia no copo não entornasse.
– Por que os novos compradores não nos pagaram ou não nos pagam agora? Se isso acontecesse, mesmo que em parcelas, todos teríamos dinheiro para receber durante o resto de nossas vidas. Lionel tem razão. Isso jamais deve ser esquecido. Essa campo de batalha jamais deve ser abandonado.
Célia já falara com a maior parte dos presentes. Acendera o quinto cigarro. Bebia, no entanto, pouco. E somente cerveja. Apesar de fazer questão de cumprimentar a todos num estado de constante alegria, não esquecia seu acompanhante. Fazia questão de se voltar para ele, sempre mostrando-se gentil. Procurava não deixá-lo isolado no local, já que ele estivera somente uma ou duas vezes ali em outras ocasiões e não conhecia pessoa alguma.
– Você já ouviu falar nas antigas usinas de Kempt, não? – perguntou Célia a ele.
– Claro. Quem não ouviu?
– Aqui há muitas pessoas daquele tempo. Praticamente todos ficaram sem emprego após a venda. Mas deixemos esses problemas de lado. Hoje não é dia de se falar nisso.
Sinalizou ao garçom que já não conseguia contentar a todos. Pedia que pegassem as bebidas junto ao balcão. Mas a de Célia., fazia questão de levar.
De repente alguém gritou:
– Vem aí a Juddy!
Todos se levantaram e puseram-se a cantar animadamente para a aniversariante.
A festa tomou maior vigor com a chegada de Juddy. Vários brindes foram feitos. Ouviam-se o tilintar de copos, taças e canecas. Um festival de beijos e abraços acontecia junto à aniversariante. O homem da pianola começou a entoar uma música que era do agrado de todos os presentes. O vozerio se fez maior na tentativa de acompanharem a canção.
O homem que viera com Célia sentia-se feliz por estar ali. Não esperara por aquela festa num final de domingo. Observava as pessoas, e embora silencioso, achava-as simpáticas. Quando a balbúrdia amainou e todos tentaram retomar a conversa que acontecia antes da chegada de Juddy, ele pode observar três homens que discutiam sobre um maço de folhas que um deles tinha às mãos.
– A poesia de Schrobel acabará se perdendo – dizia –, isso precisa ser publicado.
– Você já esteve com ele? – indagava após apanhar com um ar de satisfação um caneco de cerveja que jazia sobre o balcão. – Você já conversou com ele sobre isso?
– Não, apenas o conheço – respondeu o outro. Este era magro e usava cavanhaque.
– Tweeth já falou com ele diversas vezes – interferiu o terceiro. – Ele não dá importância. Disse que se a literatura o quiser que bata à sua porta.
Os três gargalharam.
– É engraçado – dizia o último –, mas a coisa é séria. Isso é muito bom, precisa ser preservado.
– Ele escreve como se estivesse brincando. É impressionante – refletiu em voz alta o que começara a falar.
– O perigo é que há inúmeras folhas soltas por toda a cidade. Amanhã ou depois, quando se quiser juntar tudo, vai ser difícil. Vai ser preciso comprovar a autoria – Tweeth redargüiu.
– Nosso velho complexo de cão menor e vagabundo. Um dia reconheceremos que não tivemos poeta melhor do que ele – essa voz foi a de um intruso que acabara de chegar e tomava um copo cheio de vodka. Todos o olharam admirados e se surpreenderam. Mas acabaram gostando da opinião.
– Aqui também se discute Schrobel! – exclamou admirado o acompanhante de Célia.
– Você o conhece? – ela indagou.
– Li alguma coisa dele, mas ainda não há livros. Folhas esparsas circulam por aí. Principalmente pelos bares do Centro Velho.
– Eu não o conheço pessoalmente – continuou Célia –, mas dizem que ele é intratável. E pior de tudo é que bebe demais e sempre está envolvido em confusão.
– Mas o que escreve é de primeira – o amigo retorquiu.
Um homem de seus sessenta e poucos anos andava de um em um e parecia oferecer alguma coisa. Até que alguém respondeu de maneira nada amistosa.:
– Você vem à festa e ainda quer vender essas bugigangas?
– Não são bugigangas, são jóias - rebatia, olhando nos olhos do interlocutor.
– Hoje não é dia de trabalho. É dia de festa, vê se não aborrece.
Ele fingiu que não escutou e continuou sua peregrinação. Ia de um em um. Não demonstrava incômodo com as palavras rudes que às vezes recebia.
Reed e Santon agora cantavam juntos, acompanhados pelo homem da pianola. Já tinham bebido em demasia, mas agüentavam o tranco. Nunca foram tão amigos. Estavam perfeitos até na voz, bastante afinada. A platéia apreciava e tentava cantar junto com eles.
O amigo de Célia olhou o relógio. Já era madrugada de segunda, e a hora ia adiantada. Fez menção de partir.
– Não, senhor, você não vai embora.
– Já estou muito cansado. Bebi demais – dizia ele.
– Por isso, mesmo. Vamos descansar em minha casa.
– Já é segunda. Início de semana... – insistia.
– E o que tem isso? – indagou Célia. – Por acaso alguém trabalha em Kempt? Lembre-se que as usinas foram vendidas. Estão fechadas. O aço vem da Ásia. É mais barato para o governo pagar trezentas coroas de seguro desemprego a cada um de nós.
Riram os dois e mais quem ouviu a piada, aliás, não era piada. Era verdade. Pediram mais uma dose. E agora serviam champanhe. Não iam perder essa oportunidade.

sexta-feira, novembro 17, 2006

Kempt
O Knopt fluía tranqüilo naquela tarde de domingo. O frio era intenso, mas ainda insuficiente para congelar as águas cinzentas do rio. Na margem oposta ao ancoradouro de Humpt, uma velha embarcação permanecia amarrada junto a toras. Não se via pessoa alguma. Virei-me para a straat Kourbuse e continuei caminhando cidade adentro. A taberna Kaiser permanecia fechada. O velho Greend, seu proprietário, sempre desaparecia no início da tarde para dormitar durante uma ou duas horas. A antiga tabuleta, junto ao postigo, dependurada a uma marquise tão antiga quanto ela, além de identificar o local, trazia logo abaixo o nome de Greend. A primeira transversal, seguindo pelo estreito passeio, era a Tair Anderson, pequena viela que ligava a rua onde eu me encontrava à Deigth Lusckern, uma rua maior, que também permanecia totalmente deserta. Ergui um pouco o rosto logo que entrei na Deigth e pude observar os sobrados que se enfileiravam. Serviam como depósitos, muitos estavam abandonados, eram mais que centenários e percebiam-se várias alterações na construção original. A arquitetura sofrera modificações conforme as necessidades de cada época. A Tair dera-me consciência de minha solidão, na Deight essa consciência se ampliou. Inspirei com mais vigor e ao soltar o ar me senti gelado. Grandes latas de lixo ainda se encontravam junto a portas de alguns estabelecimentos comerciais que funcionaram até tarde na noite anterior. A limpeza pública as havia esvaziado, mas a presença delas tornava o local um tanto inóspito. Tentei perceber a presença de alguém, porém não consegui descobrir sequer uma alma. Um ruído, inicialmente distante, fez-se ouvir; gradativamente foi crescendo até se transformar num pequeno ônibus que saiu da Liev Kroubin. Esta rua serve de ligação aos bairros populares da zona oeste. O veículo vinha em marcha lenta. O condutor usava um boné azul marinho inclinado para o lado esquerdo. Ele olhou-me como perguntando se eu subiria. Fiz um pequeno sinal com o braço direito. Ele parou. Entrei fazendo um aceno silencioso com a cabeça. O ônibus partiu vagarosamente. Pertencia a uma linha que circulava no centro velho da cidade, seguindo até a margem direita do Knopt. Não atravessava a ponte que ligava aquele setor da cidade aos bairros mais nobres. Dali ele voltava e trafegava novamente o centro velho até se perder na periferia de Kempt, bairro antes proletário, próximo às antigas e extintas indústrias da zona central, que agora se tornara pleno de bares e bodegas, habitado por homens e mulheres que tentavam sobreviver de pequenos serviços autônomos. Aos domingos a empresa reservava àquela linha apenas um veículo. Não havia praticamente pessoa alguma que transitasse para o centro velho e para as margens do rio, principalmente devido ao tempo frio. Dentro do veículo ia apenas, além do motorista, uma mulher. Era uma senhora. Usava a cabeça coberta por um pequeno lenço à holandesa. Seus cabelos castanhos podiam ser observados porque escorriam até abaixo dos ombros. Usava óculos. Fingi não tê-la percebido. Ela me olhou de soslaio e continuou mergulhada em si. Íamos aos solavancos, enquanto eu me surpreendia com a cidade desabitada. O ônibus enfiou-se por mais ruas desertas, senti-me deprimido. Pensei um tanto absurdamente que uma bomba de gás poderia ter explodido. Apenas eu o motorista e aquela mulher seríamos os sobreviventes.
- O senhor ouviu cair uma moeda?
A voz da mulher cortou a tarde silenciosa desviando-me os pensamentos. Pareceu soar numa língua estranha Assustei-me. Depois me virei. Só então entendi o que ela perguntava. Recolhi uma pequena moeda sob um dos bancos, entregando-lhe a seguir.
- Obrigada – retribuiu lançando-me um curto sorriso. Fiz apenas uma leve menção com a cabeça, voltando-me à rua em que agora íamos. Estávamos já beirando o campanário de Kempt. O veículo começava a retornar em direção ao centro velho. Reparei que a mulher não descera. Permaneceria ali fazendo novamente todo o percurso. Voltaria, absorta, pelas mesmas ruas até o outro extremo da linha. Senti vontade de perguntar aonde ia. Mas depois conclui que eu fazia o mesmo. Entrara no ônibus por entrar, sem rumo, apenas para passar o tempo e me esquivar do frio. Ninguém adentrara durante todo aquele percurso.
- O senhor também faz como eu... - iniciou a frase e a interrompeu subitamente me dirigindo o rosto, como que ouvindo minhas anteriores conjecturas. Tentava iniciar um breve diálogo.
- Como a senhora? - demonstrei não ter entendido.
- É, como eu - continuou -, fujo todas as tardes de domingo, não agüento ficar em casa. É uma desolação.
- Sim - acrescentei sem ter mais o que dizer. Demonstrei desânimo em relação à conversa que se iniciava.
- Às vezes fico no ônibus a tarde inteira. Quando começam aparecer os primeiros moradores de Kempt, vou para casa.
- ...
Ela notou que eu não correspondia, mas continuou:
- Quase sempre não há ninguém. Hoje o senhor apareceu...
- É... - proferi mais um vez, me desculpando pelo longo silêncio.
- Na semana passada o motorista me deixou às margens do Knopt. Atravessei a ponte às quatro da tarde e me dirigi ao setor leste, mas me decepcionei.
- Por quê? - animei-me em perguntá-la.
- Os bebedores de cervejas de Kempt são mais interessantes. Às vezes fazem barulho. Isso me diverte.
- E os do setor leste?
- Lá não há ninguém. As ruas são ainda mais desertas e as bodegas comuns não existem. Me arrependi. É sempre mais animado em Kempt.
Estávamos novamente na straat Korbuse. Olhei o velho Greend na porta de sua bodega. Fiz menção em me levantar para descer. Ela deteve-me.
- O velho Greend cheira mal. Vou levar você a um lugar melhor. Não desça.
Permaneci indeciso. Um desconforto abateu-me. Mas perguntei:
- Aonde?
- A Kempt. Lá sempre é melhor. E hoje à noite há uma pequena comemoração no Buderwais.
- No Buderwais?
O Buderwais era uma espelunca que se destacava das outras devido à sua parca iluminação. Pequenas lâmpadas azuis e vermelhas tremeluziam durante a noite, criando uma atmosfera bruxuleante. Vez ou outra algum artista local se apresentava no estreito palco improvisado, à direita da entrada principal.
- Não se preocupe, venha comigo, é por conta da casa.
Concordei emitindo um monossílabo, enquanto observava a fumaça que saía de minha boca em direção à fresta de uma das janelas recém aberta.
As luzes brancas e frias da avenida se acenderam. O condutor não se surpreendeu porque continuávamos no veículo. Fez o contorno na Tair Anderson; novamente trafegava na Deigth Lusckern, em direção a Kempt. Agora, sob as primeiras sombras da noite.

sábado, novembro 04, 2006

Baudelaire

Eu estava sentado à mesa de um bar. No lado oposto, havia uma mulher loura, de cabelos compridos. Fumava um cigarro longo, desses raros, que os jovens já não procuram. Aspirava-o sôfrega, retinha a fumaça durante algum tempo, depois a soltava natural, de modo que esta subia e se perdia no ar. O cigarro entre os dois dedos e o sorriso constante atraíram-me. Esperei. Queria me certificar de que ela estava só. Entre desejos intempestivos de lhe enviar um bilhete, consegui aquietar-me: "você é linda", escreveria "e o cigarro lhe dá um charme terrível". Mas aguardei. Não queria quebrar-lhe o encanto. Sua idade? Não sei, nem importa. Levei o copo de chope à boca, mas não desisti de acompanhá-la a distância. Meus olhos eram lanternas inseguras em noite de desacertos. Ela também bebia, mas era algo que beirava o rubro, e havia uma colherinha dentro do copo. Uma mulher feliz, pensei. O garçom chegou-se a ela, ouviu-lhe silencioso palavras mágicas e se retirou solícito. Sobre minha mesa, segurei uma das rodelas de chope e a girei sobre a toalha quadriculada. Já havia bebido demais, mas não perdera a lucidez. Quando o garçom voltou, sussurrou-lhe algo que a tornou fada encantada. Desisti de interpelá-la. Não a tocaria nem que me sobrassem versos de um Camões ensandecido, ou mesmo de um Bocage perdido nas trevas da contemporaneidade. O relógio luzia-me duas da madrugada. Horas dos boêmios cônscios de que sempre foram sós e de que aos sós não existe remédio. Não sei se sua presença lançava-me em mar de velas abertas e enfunadas ou de vagas irregulares sob céu sem estrelas, intempérie das horas tardias.

quinta-feira, outubro 19, 2006

Desemprego

Cruzava eu o movimentado Largo da Carioca numa manhã ensolarada de dezembro quando, subitamente, senti um toque às costas. Voltei-me. Era Agnaldo, e qual não foi o seu espanto:
- José, como vai? O que tem feito? Há quanto tempo ... - e mais perguntas triviais de alguém que há muito não vê o amigo.
Trabalháramos juntos durante alguns anos, fôramos verdadeiros amigos; ele confiava em mim e me contava até mesmo seus segredos mais íntimos. Depois a empresa me demitiu alegando excesso de funcionários; então, desapareci.
Após alguns instantes de hesitação, meio sem jeito, fez a pergunta crucial:
- Em que você está trabalhando atualmente?
Num gesto brusco, joguei minha maleta entre seus braços e mantive as mãos levantadas como se não a quisesse de volta.
- Vendo malas, valises, maletas - dizia enquanto ele, assustado, tentava segurá-la.
Me olhou espantado já abraçado à pequena mala, tentava dizer alguma coisa. Sorri e continuei:
- É da melhor qualidade, couro legítimo, vários compartimentos, pode observar, não há melhor no mercado.
Agnaldo me olhou de novo, agora comovido. Fez que ia comprar. Talvez pensasse sobre minha situação, talvez quisesse me ajudar. Eu já fora um bom funcionário, ganhara bem, mas naquele momento... Fez menção de me devolver a mala para tirar o dinheiro do bolso, mas, de repente, exclamou:
- A mala está cheia de coisas, veja isto!
Dei uma sonora gargalhada e então respondi:
- É tudo brincadeira, não vendo mala alguma, vamos tomar um café - convidei.
Respirou aliviado, me devolveu o artefato e caminhamos para o bar mais próximo.
Irônico, acrescentei:
- O café é por minha conta.

segunda-feira, outubro 02, 2006

In extremis

Continuava sentado junto à mesa tentando ordenar as idéias. Naquele dia, inspiração era algo difícil; nada me vinha à cabeça. Havia prometido uma matéria sobre determinado assunto, mas a folha virtual ia branca. Fui até à janela algumas vezes, acendi e apaguei vários cigarros. Fumei cada um deles até pouco mais da metade. O ar da sala tornara-se insuportável. De repente, uma mulher próxima à janela, no outro bloco do edifício. Havia muito que trabalhava naquele lugar e nunca a observara. E como era bonita. Segurava algumas folhas de papel, parecia estar lendo ou examinando algum documento. A postura dela era de uma planta altiva e elegante que derramava galhos pleno de flores recentes. Permaneci no mesmo lugar por mais algum tempo. Tive a esperança de receber de volta seu olhar, mesmo que ao acaso. No entanto, não aconteceu. Voltei-me após ela desaparecer. Mergulhei novamente nos temas que tinha em mente. Cheguei a tocar no maço de cigarro mais uma vez, mas reparei o cinzeiro cheio de pontas. A proteção de tela já aparecera. Pequeno avião atravessava céu azul informático. Era o efeito do tempo. Em breve, o monitor ficaria negro. Proteção quase in extremis; ainda me restava o automático, inação total. Era o espelho de minha mente naquele momento. A tarde já avançava. Logo escureceria e a cidade começaria a fervilhar, as pessoas deixariam os grandes prédios do centro: umas voltariam a suas casas, outras iriam aos bares, restaurantes, conversariam, ririam...
Fui ao banheiro; lavei as mãos e dei com minha fisionomia no espelho. Não me lembrava qual a última vez em que me observara tão de perto. Os olhos pareciam mais fundos; a testa tinha rugas que me lançavam na incerteza dos anos...
À janela, a mulher do outro lado reaparece; agora me olha. Percebo em suas mãos papel límpido com alguns algarismos; mapa desenhado a números. Detenho-me ante a possível alucinação.
A mulher: planta de caule delicado, folhas finas, flores amarelas.

segunda-feira, setembro 18, 2006

Tabaco
Quando na Grécia os deuses ainda vinham se misturar com os homens, não havia o arranha-céu que sobe lavado pela chuva.
João atravessou a rua munido de dois maços de cigarros. Seria suficiente para toda a noite. Na praça ainda havia algumas pessoas, sobretudo homens que carteavam. Lembrou-se da simplicidade desses jogadores de fim de vida. Mas quem sabe o que seja fim ou o que seja vida? Olham reis, damas, valetes e outras cartas que passam rápidas, muito rápidas.
Um ônibus que vinha do Centro anunciou sua presença com o ranger de freios; alguém saltou, depois o veículo continuou vagaroso, o motor era fera coagida em cidade de domadores.
Camões, grande Camões quão semelhante teu fado ao meu quando os cotejo... Olhou à porta vizinha, silêncio. Nem mesmo um ruído. O bêbado parara a vinte metros, encostara a uma árvore. Saberia ele sobre Camões?, saberia sobre outro poeta?. Camões grande Camões..., a voz diminuiu de volume até desaparecer.
Quando girou a chave, pensou que entre os gregos talvez não houvesse a solidão. Ao chegar à sala, o guardador de rebanhos: um quadro na parede; quem lhe dera o nome? Quando comprara, já viera assim. Mas ali, guardador, só de automóveis...
O cinzeiro estava cheio de pontas. E o anúncio de que o cigarro faz mal à saúde. Fumava havia sessenta anos. E se parasse? Talvez morresse. Acendeu mais um. Num ligeiro movimento, esbarrou no telefone silencioso; tocava uma vez na semana: a mulher da lavanderia. Caminhou até a janela e viu a loja em frente: um bar; um homem chegou à porta, trazia à mão um copo de cerveja. Acenou-lhe da calçada erguendo breve o braço desocupado. Retribuiu-lhe. Era o Esteves. O mundo reconstruiu-se. Observou a fumaça que subia pelo quarto. Uma coisa banal, mas que também o restituía ao mundo. Viu na pouca névoa a imagem de uma mulher, pequena prostituta em frente a Mercês de Cima; dádiva de corpo na tarde cristã. Esmeralda, a última que estivera ali, e fazia mais de um ano. Cheiro forte de tabaco, foi o que pronunciou. Achou engraçado alguém pronunciar a palavra tabaco. E ela tinha o aspecto tão jovial. No mar tanta tormenta e tanto dano... Novamente o mendigo. Na terra tanta guerra... Esmeralda levantou-se, vestiu-se rápida e não voltou.

sábado, setembro 02, 2006

Sozinhos
“O senhor então sentiu vontade de voltar a ver-me?”
Lúcio olhou ao redor tentando levar a conversa a outro destino. Seta atirada sem premeditação, não calculara o risco de ter descoberta a posição.
“E então?”, a voz da mulher continuava a ressoar pela sala; revelava alguém incólume a desvios e com plena consciência das intenções do homem à sua frente.
“Bem...”
Percebendo que ele titubeava, não o socorreu. Deixou que o prolongado silêncio revelasse todo o embaraço em que se metera. Na verdade, nau à deriva, não notara que desde a chegada girava em torno de si próprio; e quanto mais tentava retornar a terra, mais se perdia em maré turva.
“Quando éramos meninas eu e minha irmã íamos à casa de seu pai. Você ainda não havia nascido. Gostávamos do lugar, gostávamos de ouvir sua avó; ela nos contava histórias maravilhosas. Pena não tê-la conhecido. Você não seria um homem tão perdido e ao mesmo tempo tão enredado em si mesmo”.
“Bem...”
“....”
“Bem...”
“Jerusalém era então uma terra distante, não sonhávamos com outro lar”.
“Ah, sim , Jerusalém...”
“Tivemos de fazer viagem mais longa, demoramos a reencontrar os amigos; hoje, onde estão? Quase todos já partiram”.
Havia uma jarra de flores sobre a pequena mesa. Ao observar que ele olhava naquela direção, deu alguns passos e, com gesto hábil, proporcionou mais elegância a um rosa.
“Não venha aqui em busca de sentido.”
“Mas... mas não tenho essa intenção.”
“Todos somos sós. Ninguém há de nos ter apreço, com exceção de nós mesmos”.
“Eu tenho apreço a você; ou melhor, gosto... gosto muito...”
A revelação ecoou precipitada e fora de tom.
“Agradeço, mas fiquemos nesse ponto. Olhe bem para mim. Estou bem, e nem tenho mais idade...”
Alguém passou tilintando a sineta: “hora do chá!, hora do chá”!.
Ester levantou-se. Lúcio quis amparar-lhe o braço, ajudá-la na caminhada até o restaurante. Mas ela, polidamente, recusou.
Ele então ouviu-lhe a voz, encantadora e baixa:
“Vamos tomar o chá”.

sexta-feira, agosto 18, 2006

High society

O cabelo caiu-lhe sobre a testa quando estendeu o fósforo aceso. A noite ainda amparava-se nas últimas sombras. Acendi o cigarro e continuei olhando um ponto indefinido no horizonte. O pensamento entretanto não se mantinha ali.
Voltei-me para Gilberto, mas ele não percebeu. Eu ainda pensava na mulher que havíamos deixado desacordada dentro da casa.
Não sabíamos o que ocorrera. Pedi a ele que lhe tomasse o pulso. Não acreditei quando me disse que nada ouvia. Tentei ampará-la, apalpá-la; mas a senti fria; os lábios pouco a pouco perdiam a cor.
"Vista-a!", ainda gritei revelando todo meu desespero.
"Vamos embora, vamos!", foi tudo o que disse.
"Vamos procurar ajuda".
Minha proposta não encontrou eco.
"Não há quem possa nos ajudar, e logo vai amanhecer; estaremos encrencados".
Alguma coisa crescia dentro da casa, nos revolvia o estômago; o ar faltava, faltava-nos fôlego. Abandonamos tudo e corremos até o outro lado da estrada. As estrelas luziam indiferentes; um resto de lua nos aguardava, paradoxos de um mundo distante, paraíso tenebroso. A mulher ainda quase menina talvez morta.
O cigarro acesso indo e vindo a meus lábios acalmava-me. Cheguei a pensar que se o tempo parasse ali talvez fôssemos felizes.
"Eu lhe disse, ela não estava acostumada, não devia ter nos acompanhado".
"Agora não adianta mais", soltou a fumaça junto às palavras e atirou longe a ponta de cigarro.
Eu procurava uma saída que antecedesse às primeiras luzes. Queria não acreditar no que vivíamos, mas tudo era vão. Explosão precipitada de mina plantada por nossas próprias mãos.
"Vamos", Gilberto gritou de dentro do carro.
"Vou ficar".
"Você está louco?"
Desceu do jipe, me pegou pelo braço, tentou me arrastar. Uma das mangas do agasalho ficou em suas mãos. Pegou-me então pelo pescoço.
"Você tem que ir, precisa ter sangue frio neste momento, não podemos mudar o que aconteceu".
"Mas a mulher está morta!", meu grito se perdeu no ar.
Conseguiu que eu entrasse no carro. Depois, o ronco do motor.
Ao manobrar, a poeira da estrada misturou-se à neblina.
Partimos.
Descemos a serra sem mais palavras.

quinta-feira, julho 06, 2006

Duas mulheres
- Sei tudo.
- Quem lhe contou?
Deolindo não respondeu, apenas se levantou e caminhou até a sacada. Olhou a cidade lá embaixo. Seu pensamento, no entanto, não a fixou, viajava até a imagem da mulher que amava e que agora lhe escapava.
- Sinto muito – a voz do oponente fez que voltasse à realidade.
- Sou um diplomata – pronunciou de modo quase inaudível, - sei quando devo me retirar.


O Paraíso do chope ainda estava sem seus freqüentadores habituais quando Deolindo entrou e se estabeleceu em uma das primeiras mesas. Anacleto, o garçom que sempre o atendia, não deixou de observar a face soturna do cliente. Aproximou-se e perguntou se não desejava uma mesa mais reservada, na parte interna do restaurante.
- Quero apreciar a paisagem – foi a resposta que obteve.
Prontamente estendeu-lhe o cardápio e se afastou durante alguns minutos; sabia como agir naquelas circunstâncias.
- Uma garrafa de Logan – foi o que ouviu quando tornou a se aproximar.
Saiu para atender o pedido.
Quando voltava trazendo a bandeja que tinha copo, balde com pedras de gelo e a garrafa de uísque, percebeu duas mulheres que se sentaram numa das mesas, no lado oposto à entrada.
Exagerou na dose de maneira proposital, ainda assim o cliente pediu maior quantidade.
Deolindo levou o copo aos lábios e sorveu o uísque com grande voracidade. Olhou na direção da praia e pode ver os últimos vestígios do dia. Um manto avermelhado cobria o horizonte misturando-se ao verde do mar; na calçada várias pessoas caminhavam num exercício contínuo de final de tarde.
Custaram-lhe alguns minutos os primeiros sinais de atuação do álcool. Percebeu em primeiro lugar que o anoitecer era uma alucinação saborosa; a cor avermelhada se azulava, esverdeava, escurecia de novo até se transformar no brilho da primeira estrela. Neste momento distinguiu logo abaixo, próximos a ele, dois rostos de mulher.
Segurou a garrafa e despejou no copo mais um pouco de uísque; o pequeno balde à sua direita ainda possuía uma boa quantidade de gelo, mas ele preferiu não o tocar. A ligeira embriaguez acendeu-lhe o desejo; não sabia, porém, o que dizer a qualquer uma das duas.
O garçom se aproximou mais uma vez e foi ele quem o salvou. Respeitoso, curvou-se e falou:
- Uma daquelas mulheres deseja falar com o senhor. Mas permita-me alertá-lo sobre uma coisa: é provável que sejam prostitutas.
Deolindo meneou a cabeça sem que a expressão transmitisse algum tipo de sentido. Após alguns minutos acenou e pediu para que passassem para sua mesa.
Elas vieram, sentaram-se prazerosas e permaneceram.
Descobriu um paraíso que não sabia existir. Enquanto ficou naquela cidade, passou a sair ora com uma ora com outra, quando não com as duas. Pagava bem, mas não se incomodava com isso, dinheiro não era problema.
Foi feliz durante seis meses.

quinta-feira, junho 22, 2006

Singular ocorrência[i]

Padre, agradeço-lhe a presença. Agora que agonizo, não poderia deixar este mundo sem contar-lhe que, certa vez, tive fortuna rara, ou antes única, uma coisa que nunca esperara achar, nem merecia mesmo, porque nunca passei de um pobre diabo. Mas, enfim, os pobres também são filhos de Deus. Foi o caso que, perto das dez horas de uma noite de 1860, encontrei no Rocio uma dama vestida com simplicidade, vistosa de corpo. E muito embrulhada num xale grande. A dama vinha-me por detrás, e mais depressa; ao passar rentezinha comigo, fitou-me muitos os olhos, e foi andando devagar, como quem espera. Eu, o pobre diabo, imaginei que era engano de pessoa. Apesar da roupa simples, vi logo que não era coisa para meus beiços. Fui andando; a mulher, parada, fitou-me outra vez, mas com tal instância, que cheguei a atrever-me um pouco; ela atreveu-se o resto... Ah! Um anjo! E que casa, que sala rica! Coisa papa-fina. E depois o desinteresse...
Como todos sabem, eu sempre fora um sujeito reles e vadio. Vivia a explorar os amigos de meu ex-patrão, e, no dia seguinte fui procurar o Andrade, aquele meio advogado, meio político, nascido nas Alagoas. Pedi-lhe, como de costume, dois ou três mil-réis. Ele deu-me o dinheiro, e, como me visse excepcionalmente risonho, perguntou-me se tinha visto passarinho verde. Pisquei os olhos e lambi os beiços; o Andrade, que dava o cavaco por anedotas eróticas, perguntou-me se eram amores. Mastiguei um pouco e confessei que sim. “Olhe, acrescentei, para V.S. é que era um bom arranjo!” Andrade abanou a cabeça; não lhe cheirava o comborço. Mas teimei; era na Rua do Sacramento, número tantos... “Não me diga isso!” Imagine como não ficou o Andrade. Ele mesmo não soube o que fez nem o que disse durante os primeiros minutos, nem o que pensou nem o que sentiu. Afinal teve forças para perguntar se era verdade o que eu estava contando; mas adverti que não tinha necessidade de inventar semelhante coisa; vendo, porém, o alvoroço do Andrade, pedi-lhe segredo, dizendo que eu, pela minha parte era discreto. Fiz que ia sair; Andrade deteve-me, e propôs-me um negócio: propôs-me ganhar vinte mil-réis. -“Pronto!” – “Dou-lhe vinte mil-réis, se você for comigo à casa dessa moça e disser em presença dela que é ela mesma.” Hesitei um pouco, por medo, não por dignidade; mas vinte mil-réis... Pus uma condição: não meter-me em barulhos... Marocas – era o nome dela – estava na sala, quando o Andrade entrou. Caminhou para a porta na intenção de o abraçar; mas o Andrade advertiu-a, com o gesto, que trazia alguém. Depois, fitando-a muito, fez entrar-me; Marocas empalideceu. –“É esta senhora?” perguntou ele. –“Sim, senhor”, murmurei com voz sumida, porque há ações ainda mais ignóbeis do que o próprio homem que as comete. Andrade abriu a carteira com grande afetação, tirou uma nota de vinte mil-réis e deu-ma; e, com a mesma afetação, ordenou-me que saísse.
Mais tarde soube que a mulher era sua amante, apesar de casado e com filha de dois anos. E que desaparecera a seguir. O Andrade pôs-se a toda procura; ao encontrá-la, caíram nos braços um do outro. O senhor, padre, pensa que tudo se explicou? Coisa nenhuma. Nenhum deles tornou ao assunto; livres de um naufrágio, não quiseram saber nada da tempestade que os meteu a pique. A reconciliação fez-se depressa. O Andrade comprou-lhe, meses depois, uma casinha em Catumbi; a Marocas deu-lhe um filho, que morreu de dois anos. Quando ele seguiu para o Norte, em comissão de governo, a afeição ainda era a mesma. O Andrade contava tornar ao fim de pouco tempo, mas morreu na província. A Marocas sentiu profundamente a morte, pôs luto, e considerou-se viúva; sei que, nos três primeiros anos, ouvia sempre missa no dia do aniversário. Há dez anos perdi-a de vista.
Sempre me perguntei por que Marocas descera até a mim, os Leandros; nostalgia da lama? Parece que não; jamais o fizera. Mas o acaso, que é um deus e um diabo ao mesmo tempo... Enfim coisas!
[i] Este conto, como bem sabem as pessoas de cultura ao menos mediana, é de autoria de Machado de Assis. Tive, no entanto, a terrível idéia de reescrevê-lo sob a perspectiva do vilão, Leandro. Enquanto preparava pena, tinta e papel, outra idéia ainda mais temerária abateu-me: usar as próprias palavras de Machado.

quinta-feira, junho 08, 2006

Tempos de guerra

E é fatal dizer que o desconforto só aumenta quando, enfim, chega a sua vez. Eu tinha de guiar aquele veículo através de cinco quadras. Conhecia o caminho, passara por aquelas ruas um sem número de vezes; nunca, porém, pensei que as percorreria pela última vez. Minha missão: guiar o automóvel até o número 153 da J. Depois, apenas esperar; talvez dois minutos, talvez dois segundos. O percurso devia ser feito a 40km, não poderia ultrapassar carro algum e a parada preestabelecida precisava ocorrer dentro das marcas amarelas que sinalizavam a entrada de uma garagem. A parada provocaria suspeita e a aproximação dos sentinelas, mas o vidro escuro do carro e a impossibilidade de se comunicarem comigo provocariam neles hesitação. A reação viria logo, no entanto tarde demais. Guiava conforme as instruções. Vi uma menina que caminhava agarrada à mãe; ambas envolvidas pela meia luz do final da tarde refletiam um último raio de poesia; percebi, em frações de segundo, como tudo poderia ter sido diferente; as duas indicavam um mundo possível. No final da K, um caminhão se interpôs a meu trajeto. Tudo está acabado, pensei; o alvo não seria atingido, desperdiçávamos equipamento e material humano. Mas o veículo se moveu deixando a rua livre. Pela última vez, olhei o céu. Ainda havia luz. Na última esquina, uma jovem de casaco marrom trouxe-me um filme à memória; tempos em que se suspendiam operações para não se matarem inocentes. Mas, agora, quem era inocente? Cheguei ao local indicado. Parei. Um soldado de óculos escuros e telefone em uma das mãos caminha em minha direção. Pára à distância de uns cinco metros. Grita-me algo que não escuto ou não entendo. Mais dois se aproximam; possuem armas pesadas, mas não tempo para dispará-las. Todos estamos mortos.

quinta-feira, maio 25, 2006

O manequim

O homem olhava a vitrine. Parecia impressionado com o que via. Aproximou-se mais um pouco, bem junto ao vidro. Tomou cuidado para que sua respiração não o embaçasse e continuou olhando demoradamente. Estava como que enfeitiçado. Do outro lado, um manequim feminino muito bem vestido. A vitrine tinha outros, mas não eram tão bonitos. Aquele andar do shopping enfileirava numerosas lojas, atrativas vitrines, diversos produtos, mas era aquele que o havia enternecido.
Todos os dias ia ali passear. Morava num prédio lateral, apartamento pequeno, quente. O shopping era refrigerado, via bastantes pessoas, distraía-se. Tinha feito até algumas amizades. Pessoas sozinhas como ele. Era, porém, discreto, limitava-se apenas a algum cumprimento, de preferência um ligeiro aceno, ou um leve movimento com a cabeça. Gostava de andar só, ou melhor, como dizia, em sua própria companhia.
Sempre olhava as vitrines. Sabia até de cor a disposição das lojas, dos produtos. Conhecia os cafés, as mesinhas que tentavam imitar estilo antigo, as funcionárias que atendiam, etc.
Aquele manequim, no entanto, era algo novo. Ele não estava ali antes. Havia lojas que nem mais os usavam, substituíam-nos por madeira, fibra ou por moldes imitando pedaços de corpo. Possuíam apenas as partes necessárias para armar as vestes, não tinham cabeça, nem beleza alguma. A loja nem era nova, mas aquele manequim era uma grande novidade, um grande motivo para apreciar em suas tardes de passeio pelo local.
Passou dois meses admirando-o. Ia todos os dias àquela loja. Às vezes logo após o almoço; outras, no começo da noite. Demorado, olhava o manequim. Observou que uma vez por semana mudavam suas vestes, eram modelos novos. Qualquer peça de roupa deixava o manequim deslumbrante. Concluiu que fora feito baseado na deusa da beleza. Mesmo sem peça alguma, seria maravilhoso.
Numa segunda feira de maio, pela manhã, assim que o shopping abriu, entrou e dirigiu-se diretamente à vitrine da loja. Não era seu costume passear ali durante as manhãs. Naquele dia, porém, não resistiu ao desejo de visitá-lo cedo. Verificou se não errara de andar, ou mesmo de loja. Olhou as outras vitrines iluminadas, olhou as lojas de frente, reparou que não errara. Mas onde estava a que procurava? Aquela loja chique não poderia ter desaparecido como num toque de mágica. Os vidros que protegiam os elegantes manequins estavam cobertos por papéis do próprio shopping, com dizeres de que em breve ali se inauguraria uma famosa papelaria.
Começou a sentir o rosto molhado de suor. Sentia também o corpo frio. Olhou para os lados como se procurasse socorro. Queria agachar-se vagaroso, mas o que fez foi virar-se, encostar no vidro, secar o rosto com a palma das mãos e procurar recompor-se. Após alguns instantes, caminhou até um banco de madeira que estava vazio, no outro lado do corredor. Sentou-se e começou a pensar no que iria fazer dali em diante.
Sua primeira providência foi dirigir-se à administração. Queria saber o que acontecera à loja. O funcionário que o recebeu não estava preparado para aquele tipo de informação. Na verdade, nem sabia que loja era e nem que tinha fechado. Pediu que aguardasse. Voltou após longos dez minutos com a seguinte informação:
"A loja fechou, o dono resolveu encerrar o negócio.”
"Mas como?" Ainda quis argumentar, mas o funcionário disse que era tudo o que sabia.
Na Rua Gonçalves Dias havia muitas lojas sofisticadas, dentre elas uma da mesma marca.
“Eu já disse ao senhor, isso aqui é uma franquia, eu não sei de nada sobre outras lojas que usam o mesmo nome e ainda que soubesse não poderia dar informações.”
O ar-condicionado suavizara um pouco a caminhada. Tentava obter de alguém que trabalhava ali, não sabia se um dos donos ou um funcionário, informações sobre a loja que fechara. Foi, porém, inútil. O homem, quando observou que aquele senhor não compraria nada, que fazia perguntas sem sentido, sentiu intenso desconforto. Estava atrapalhando-lhe os negócios e precisava despachá-lo. A imagem do velhinho não correspondia à clientela da loja.
Ao voltar à rua e ao calor sufocante, ainda virou-se para a vitrine. Tentava encontrar o mesmo manequim. Não conseguiu, não havia modelo algum parecido com o que procurava.
O jeito foi recorrer à lista telefônica. Havia alguns representantes daqueles manequins. Possivelmente o dono da loja os devolvera, ou mesmo os colocara à venda. Tentaria assim chegar a ele por outro caminho.
“Pois não, em que lhe posso ser útil?”, a voz da recepcionista lhe soou agradável.
Depois de obter dois ou três endereços resolveu ir ao local, não gostava de telefonemas.
“Eu gostaria de saber sobre manequins...”
“Manequins?”
“Sim, desses que ficam na vitrine das lojas, principalmente nos shoppings.”
“Qual a sua empresa?”
'Empresa?' Chegou a tomar um susto. Como sairia dessa? Não poderia contar a ninguém a verdadeira história. Seria tomado por louco, ficaria desacreditado. Tentou manter firmeza.
“Eu ainda a estou registrando”.
“Ah, sim”.
“Gostaria de saber alguns preços; pretendo fazer uma boa encomenda”.
Saiu dali tendo deixado para contato telefone, endereço e tudo mais. Na verdade informações inventadas na hora. Não obtivera pista alguma do que almejava.
Depois daquele dia, passou a percorrer todos os shoppings da cidade. Sabia onde ficavam todas as lojas da mesma rede onde descobrira o manequim. Aproveitava para olhar também outras vitrines. Apesar de desiludido, as idas e vindas pela cidade acabaram por distraí-lo um pouco. Passou a reparar outras pessoas como ele. Eram entes solitários, que caminhavam de um lado a outro e nunca pareciam ter destino certo. Só temia que eles também procurassem pelo mesmo objeto.
Certa noite acordou sobressaltado. Eram três horas da manhã. Na verdade sempre temera acordar durante a madrugada. Olhava o relógio e ao perceber que o amanhecer ainda estava distante sentia uma enorme angústia. Lembrou, então, de um sonho. Sim, sonhara com seu manequim. Sonhara e encontrara-o. Só não lembrava o local, mas parecia ser numa loja de objetos usados.
Ao amanhecer saiu cedo. Onde houvesse algum brechó, ele estaria lá.
Suou muito durante o dia. Esse tipo de loja, além de quente e abafado, deixava-lhe poeira por todo o corpo. No final do dia, tossia e espirrava pó.
Foi quando lhe informaram sobre um brechó que ficava na rua dos Inválidos. Decidiu que seria o último. Não agüentava mais. Quando chegou ao local, reparou que a própria rua tinha um ar decadente. Os sobrados se enfileiravam sujos, maltrapilhos. Alguns se haviam transformado em cortiços. Num andar térreo, tentando escapar da goteira de um cano d'água, adentrou entre papéis velhos e um tórax portando um paletó preto. Mais alguns passos, desvencilhando-se de uma pilha de revistas antigas, viu seu manequim. E estava tombado entre objetos menores. Havia junto dele até mesmo uma gaiola. Sentiu uma vertigem. O dono do estabelecimento correu em sua direção. Puxou uma velha cadeira e o fez sentar. Trouxe-lhe um copo d’água.
“Eu quero esse manequim”, entre a respiração ofegante, pronunciou essas palavras de um só jato.
O dono do lugar se surpreendeu. O cliente não perguntara preço nem regateara, o que não era comum neste tipo de negócio.
Levou o objeto com o máximo cuidado. Pediu que o ajudassem a pegar um táxi.
Depois disso, pouco foi visto. Dizem que quase não sai de casa. Ao seu lado, sempre o manequim. Vestido com as roupas mais caras.

quinta-feira, maio 04, 2006

Última noite em Bagdá
Não se deve voltar ao campo de batalha após abandoná-lo. É um ensinamento básico. Mas eu tinha de voltar. A causa: um livro esquecido. Logo eu que nunca gostei de ler, que comecei a me aproximar da leitura há pouco. O responsável disso: um professor que me fez representar pequeno papel numa peça, uma atividade escolar; ele disse que eu tinha talento, que era um artista nato. Me saí bem na apresentação, fui muito elogiado. Também nunca gostei da escola. O teatro começou a me mostrar que podíamos fazer alguma coisa diferente ali, além da chatice do dia a dia; o teatro e um jornal que havíamos criado. Agora, deitado sobre o chão da sala, na escuridão da noite, vejo pelo vão em escombros, local onde antes ficava a janela, as únicas luzes possíveis: a das estrelas distantes e a de morteiros e foguetes que cruzam o céu. Talvez tantas cores sirvam para orientar algum tipo de ofensiva, como estava acostumado a ouvir dos locutores, no pequeno rádio que possuíamos. Estou agarrado ao livro, apenas me movimento, vez ou outra percebo o cravar de projéteis no antigo forro da casa. O pó que se desprende e os cacos de cimento que caem sobre mim lembram meu pai e o tempo em que ele andava de uma lado a outro tentando melhorar nossa casa. Todos já se foram, dizem que para um campo de refugiados. Não tenho idéia do que seja isso. Voltei escondido, não posso abandonar este livro, deixar que se perca em meio ao monturo de destruição deixado pela guerra. Sempre pensei que iríamos sair desta situação. A guerra era uma coisa distante, não nos atingiria. O avanço do inimigo era apenas comentários de pessoas desocupadas que ficavam perdendo tempo com assuntos inúteis à porta das casas. Mas o inimigo veio. De início, mostrou-se em disparos e clarões distantes. As crianças se assustaram, procuraram os abrigos. Mas logo todos perceberam que eles eram frágeis e não comportavam toda a população. A seguir, vieram os aviões. E como voavam rápido. Pareciam invisíveis. Passavam furiosos, tinham como rastro o próprio barulho que faziam. Ouvimos também a aproximação dos helicópteros. Mas não estavam ali para nos retirar, como tinham prometido os americanos; num vômito constante, despejavam soldados. Mais tarde, nos deparamos com fileiras e mais fileiras de caminhões e carros de combate. Agora, eu, aqui. Na casa semidestruída que um dia foi nossa. Eu e meu livro. Bem apertado à minha barriga. A pequena sala onde estou permanece no escuro; apenas reflexos de um céu em fogos de artifício. Mas às crianças, ou ao que sobrou delas, é possível, entre outras coisas, enxergar no escuro e descobrir palavras. (Encontrado entre as páginas de um Hamlet)

quarta-feira, abril 19, 2006

Salomão e o Shabat

Salomão voltava a pé da sinagoga após a oração inicial do Shabat. Vinha intrigado devido à conversa que ouvira de dois velhos que sonegavam a reza em troca de algumas palavras. O assunto girava em torno do próprio dia sagrado dos judeus. Ele, que sempre respeitara a tradição e exigia que sua mulher também o fizesse, estava surpreso pelo que ouvira. Salomão não tomava ônibus durante o Shabat, sequer acendia luz, televisão muito menos; a esposa preparava tudo de véspera: arrumação e limpeza da casa, compras no pequeno mercado e, enfim, o preparo da comida frugal da qual se serviriam durante o dia seguinte. Mas a conversa entre os dois velhos produzira nele alguma inquietação.

No sábado pela manhã, Salomão acordara cedo, como de costume, e já ia adiantado no percurso costumeiro; seus pensamentos flutuavam soltos até que se deparou com Isack. Este descia do ônibus nas proximidades da sinagoga. Ah, esse Isack, não sabia viver o Shabat, tomava condução, não seguia direito a religião e, além de disso, não respeitava a alimentação kosher; de que adiantava freqüentar a casa de orações se não fazia nada direito? Nada falaria, não se meteria na vida alheia, mas que era um acinte, era, que não lhe dirigisse a palavra.

Após a oração, Salomão procurou um dos dois senhores cujo diálogo o afligira na véspera.

- Por favor, Yahud, sei que não faz parte da boa educação manter ouvidos atentos à conversa dos outros, mas considero você meu amigo, gostaria que me esclarecesse sobre o assunto que você e o seu Moisés conversavam ontem, no momento da oração.

Yahud emitiu um sonoro pigarro, olhou seu interlocutor de viés retornando a seguir à posição em que se encontrava antes de ser abordado.

- Que conversa? Não costumo falar no momento das orações.

- A conversa versava sobre um tal elevador, algo que existe em determinada sinagoga de Israel; você disse ao seu Moisés que era permitido ao rabino tomá-lo, mesmo durante o Shabat.

Yahud levantou a cabeça e tentou conter um início de gargalhada.

- Ah, quer dizer que você ouviu; por que está preocupado com isso?

- Não se deve tomar elevador durante o Shabat, muito menos um rabino deve fazê-lo.

- Salomão, esqueça essa história, é melhor conversarmos sobre futebol; será que podemos travar esse tipo de conversa no Shabat?

- Não brinque, Yahud, quero saber a verdade.

- Que verdade?

- A do tal elevador.

- Salomão, se você quer saber, eis a história: o elevador existe, é verdade; e é permitido ao rabino subir através dele, mesmo durante o Shabat.

- Mas, como?

- Como? Ele entra no elevador e o elevado simplesmente sobe.

- Não entendo a que ponto as coisas estão chegando; pois não somos judeus ortodoxos?

- Salomão, entenda-me bem; este elevador é muito moderno; o rabino não precisa premer botão algum. Ele pára diante da porta, esta abre automática, fecha e leva o rabino até o andar de cima, sem que ele necessite fazer coisa alguma, basta entrar e esperar.

Salomão franziu o cenho, parecia deter-se em meditação sobre o que acabara de ouvir.

Então foi a vez de Isack se aproximar.

- Desculpe-me a intromissão – acabou por dizer -, mas ouvi a conversa e achei tal invento válido e interessante; escutem só, hoje aconteceu a mim algo semelhante: eu me encontrava diante do ponto de ônibus, parei para descansar, na verdade não esperava condução; mas o ônibus parou à minha frente, abriu a porta, então entrei. Quando o veículo se aproximava do ponto, aqui bem próximo à sinagoga, percebi que ele parava de novo sem que eu tivesse dado sinal algum, de repente abriu a porta, então, saltei!

quarta-feira, março 22, 2006

Passaporte europeu

O Arraial do Sana está às escuras, é sábado de carnaval. Muitos jovens andam de um lado a outro na rua principal, junto à única praça da cidade; ao fundo, há uma pequena igreja. O aspecto é de uma minúscula localidade rústica. As casas revelam arquitetura colonial, o que combina com as montanhas que rodeiam o arraial. Se o aglomerado urbano fosse um pouco maior, poder-se-ia chamá-lo de uma cidade entre às montanhas. Mas é um lugarejo: a rua principal, duas ou três transversais e o caminho para as cachoeiras.

Quando a energia elétrica retorna, é possível distinguir com nitidez o casario e suas cores alegres, descobrir bares e pequenas lojas de artesanatos. Pela rua, enfileiram-se artistas com variados objetos expostos sobre panos que cobrem o passeio; os produtos mais comuns são colares e pulseiras de metal ou mesmo de fios de tecido.

Aqui, o consumo de maconha é livre. Não existe polícia. Os moradores não reclamam e lucram com isso, porque a maioria aluga quartos para aqueles que chegam em grande quantidade, sobretudo em períodos de temporada, na verdade jovens aventureiros. Existem também os terrenos que se estendem diante e atrás das casas e se transformam em alegres campings, onde se permite a armação de barracas em troca de alguns reais por cada hóspede.

Junto a um bar que também funciona como padaria, vejo uma mulher loura e outra de cabelos pretos. Fumam. A loura passa o baseado à amiga. Esta sorve-o com voracidade e prazer, depois devolve o pequeno cigarro. Reparo que falam língua estrangeira. De início penso que são argentinas, horas depois vou descobrir que o idioma delas é o italiano.

Uma pequena banda se aproxima da praça. Algumas pessoas seguem os músicos e dançam entusiasmadas. As duas mulheres ensaiam alguns passos e entram na festa; são seguidas de mais gente que está nas imediações. O carnaval toma conta do lugar e parece injetar energia nas pessoas; a festa que tinha começado arrastada e em meio à escuridão agora segue em ritmo intenso. Perco de vista as duas mulheres. Não posso abandonar o local, sou artesão e para permanecer no arraial até terça ou quarta preciso ganhar algum dinheiro.

Às duas da madrugada aperto o meu cigarro, depois o acendo, dou numa longa tragada. Fecho os olhos, então sinto que alguém me puxa por um dos braços. Ouço a seguir a voz rouca do amigo:
- Vamos ao Jamaica, a coisa lá tá boa.

O Jamaica é um amontoado confuso de barracas que costuma ser chamado de camping. Seu proprietário é um negro de cabelos rastafari. Conseguiu dar ao local características reggae. Próximo à entrada, avista-se o tablado que é utilizado como palco quando ali acontecem shows, depois se estende espaço semelhante a uma quadra de vôlei. Dobrando à esquerda, entra-se no bar. As paredes são de madeira, com muitas fotos de bandas reggae. É possível se sentir bem ali enquanto se bebe alguma coisa. Subindo o caminho gramado à direita, atinge-se o acampamento. As barracas se aglomeram de forma desordenada e, no carnaval ou em outros feriados extensos, conforto é palavra banida dali. Não é preciso dizer que o cheiro da erva paira durante as vinte quatro horas do dia, e que ninguém é molestado por consumir tal preciosidade.

Ao entrar encontro alegre multidão. Vou pedindo licença, caminho em direção ao bar. Há pouca luz, mais homens do que mulheres. No palco, dois músicos tentam injetar ânimo na garotada com o intenso ritmo da América Central. Da América pobre, da América dos doidões, dos sem perspectivas, daqueles que sonham com não mais que um baseado e uma mulher por uma noite antes que tudo se acabe.

Peço uma dose de vodka e refrigerante sabor laranja. Sento em um dos bancos, faço a mistura e começo a beber. Um casal se beija ao meu lado. A garçonete passa e me olha de relance. Quatro ou cinco rapazes entram, pedem cerveja; já estão muito alegres. Então reparo que há uma mulher entre eles. O amigo que me chamou para estar ali, só agora aparece. Olha demoradamente as bebidas. Parece ter dúvida sobre o que pedir. Acaba escolhendo uma taça de vinho. Depois que a experimenta, vira-se para mim e diz:

- Que merda! Parece suco de uva.

Toco-lhe um dos braços. Ele me olha. Aponto duas mulheres. São as italianas.

Há no começo um grande problema. Italiano e português vieram da mesma mãe, mas pouco se entendem. No momento mais difícil, tento a língua universal; dou à loura meu último baseado. Aí ela me entende. Fica comigo pelo resto da noite. Não precisamos de muitas palavras. Nossos corpos falam por nós.

No dia seguinte, acordo sozinho. Olho ao redor, não há vestígios da mulher. Procuro meu amigo. Ele dorme também sozinho, profundamente.

À tarde, avisto a loura. Vem a meu encontro; me beija na boca.

- Tu sei un uomo amabilissimo!

Não demoro a descobrir que estão numa pousada. Preferiram o lugar ao camping. Com a voz melodiosa tenta me explicar que lá estão acampadas. Mas só as duas. O proprietário permitiu que armassem a barraca.

No domingo e na segunda, permanecemos juntos; eu com a loura, meu amigo com a outra. Misturamos nossas línguas, misturamos nossas secreções. Abandono meus afazeres e a acompanho nas cachoeiras. Ela usa saia curta. As pernas brancas sobressaem, denunciam-na estrangeira.

Somos todos latinos, em menor ou maior grau, mas entre nós há uma África. Para ela pitoresca, para mim, carga pesada.

Na terça, as duas embarcam numa camioneta em direção ao Rio. Antes de partir, agarra-me num longo beijo.

- Tu sei un uomo amabilissimo!

Minha cor e meus cabelos ásperos e embaraçados contrastam a seu aspecto limpo, sua pele branca, seus cabelos louros.

Dois dias depois vão pegar o avião para a Itália. Moram em Turim. Vão embora. Vão para o mundo organizado, para a Europa.

Aqui, nuvens escuras despencam sobre nós. A fumaça do cigarro de maconha invade nossos pulmões. No Rio ou em São Paulo, a polícia vai nos extorquir. Sabemos disso.

Elas dizem que gostaram do Brasil, que gostaram daqui; garantem que voltam. Nunca viram tamanha liberdade. Não há lugar melhor no mundo. São turistas. São italianas, podem andar por onde quiserem. Passaportes europeus.

Olho meu amigo. Ele ressona recostado ao muro da igreja. Tem aspecto sujo, os cabelos emaranhados, a barba por fazer. Somos fugitivos em nosso próprio país. Escondemo-nos. Não há lugar para nós.

- È la migliore piazza del mondo!

Estamos fodidos.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Wellington, Paçoquinha e a escola

Mesmo alguns anos depois, quando já estava aposentada e desfrutava um pouco de lazer, o que jamais conseguiu durante o tempo em que foi professora, Maria Lúcia jamais compreendeu o significado da visita que um ex-aluno lhe fizera, na escola, numa tarde de quarta-feira, em setembro do ano de 2002.
No dia seguinte à misteriosa visita, ao encontrar na própria escola uma colega de profissão, não hesitou em logo lhe dizer:
- Sabe quem esteve aqui, ontem? – e sem esperar resposta, continuou: - o Wellington.
- Que Wellington? – perguntou Isa, a amiga.
- O Wellington, aquele que foi meu aluno na 2a série e da Márcia na 3ª.
- Aquele garoto totalmente louco, que nos fez um dia chamar a polícia e o corpo de bombeiros ao mesmo tempo?
- Isso, esse mesmo.
- Não acredito. Pra mim ele nem mais existia. Do jeito que era maluco e com as companhias que andava, achei que não duraria muito.
- Ele não só existe, como mudou muito. Está um homem, é grande e forte, tem vinte e três anos – afirmou, sem pestanejar, Maria Lúcia.
- E o que ele queria? – perguntou Isa, um tanto desconfiada.
- Disse que estava com saudade da gente. Queria nos ver, sobretudo a mim e a Márcia, que fomos professoras dele. Disse que devia muito a nós.
- Não acredito, aquele garoto era uma peste.
- Sério, e parece que mudou muito, contou que entrou pra polícia.
- Polícia? – surpreendeu-se a amiga.
- Polícia Federal.
- Não acredito, Lúcia, isso deve ser brincadeira.
- Verdade, Isa, ele mostrou carteira de policial.
- Deve ser falsa.
- Não era, não. Ele nos contou que está lotado em São Paulo. Que veio ao Rio numa missão especial. Pediu-nos segredo. Falou: “professora, por favor, não fale a ninguém”, aí virou pra Márcia e continuou: “trata-se de uma missão altamente perigosa e comprometedora”.
Isa, com a testa franzida, olhou para Maria Lúcia, demonstrava total descrença pelo que a amiga lhe relatava.
Maria Lúcia continuou:
- Então, ele nos contou o segredo: “a senhora já ouviu falar num criminoso chamado Paçoquinha?”, “o seqüestrador?”, perguntei. “Esse mesmo”, ele continuou: “o que está preso no batalhão de polícia, aqui próximo da escola. Viemos escoltá-lo, ele será transferido para outra unidade”.
- Você e Márcia realmente se certificaram de que ele era da polícia mesmo?
- Claro. A Márcia ainda disse a ele em tom de dúvida: “como você é da polícia federal se não há concurso pra lá há anos?”. “Claro que houve concurso”, ele nos assegurou e ainda disse mais: “foi um concurso que ocorreu apenas em São Paulo”.
- Lúcia, como é possível, um concurso federal apenas em São Paulo?
- Isa, ele nos contou todos os detalhes. Nos relatou algumas façanhas acontecidas por lá, prisões espetaculares que fez junto com outros companheiros e outras tantas coisas. Eu ainda falei pra Márcia: “viu?, há pessoas aqui que não crêem, mas a escola também forma pessoas para o bem. Em meio ao tráfico, à criminalidade que toma conta dos morros aqui em volta, há aqueles que optaram por fazer parte da lei".
- Há algo de estranho nisso, Lúcia, não consigo acreditar.
- Nós duas, eu e a Márcia, conversamos com ele durante muito tempo. Depois que bateu o sinal de saída, a Márcia se foi com as crianças e eu ainda saí com ele e continuamos conversando.
- Vocês saíram? Maria Lúcia, você deve ter enlouquecido. Vocês foram pra onde?
- Isa, aí você já está querendo saber demais.
As duas se separaram a seguir. Cada uma foi para sua sala e deram suas aulas naquele dia.
Na sexta feira, dia seguinte à conversa, Isa chegou à escola procurando desesperada por Maria Lúcia. Ao encontrá-la disse de um jato só?
- Lúcia, você já leu algum jornal de hoje ou viu o noticiário da TV?
- Não, por quê?
- Então leia você mesma – entregou-lhe o exemplar de um jornal.
Maria Lúcia então se surpreendeu com a principal notícia:
"Paçoquinha foge. Famoso seqüestrador escapa fardado e pela porta da frente de Batalhão onde estava preso. Governador exige apuração imediata. Secretário de Segurança exonera comando da polícia militar. Há suspeitas de mega operação envolvendo civis e militares na fuga do famoso criminoso".

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Cidadela

A rua do Ouvidor em nada lembrava os tempos passados. Uma alarmante gritaria de camelôs ecoava por todo o trecho. Tentavam vender rapidamente suas mercadorias e, ao mesmo tempo, enxergar a possível aproximação dos homens da Guarda Municipal. Qualquer suspeita da presença destes era motivo de correria e agitação, além de causar pânico aos passantes. Entrei numa loja. Tinha visto havia alguns dias um modelo interessante. Desejava prová-lo. Se caísse bem, o levaria. A vendedora se aproximou sorridente. Apontei o que desejava. Ela foi buscar o vestido. Entrei na cabine. Despi-me e o vesti. Adorei.

Caminhei em direção à Rio Branco. Desejava ir a uma livraria na Travessa do Ouvidor. No sinal, reparei um homem alto, negro, gordo e desajeitado. Devia medir em torno de 1,90m. Continuei rapidamente até atingir meu destino. Entrei na livraria. O ambiente se transformou. O ar era frio. Uma voz de mulher entoava um jazz intimista. A exposição de livros me transportou a um outro mundo. Passava os olhos nos títulos quando vi o mesmo homem, do outro lado, em frente à estante de ficção estrangeira. Mera coincidência, pensei. Desisti de permanecer ali. Iria ao CCBB, tomaria um café e descansaria um pouco.

Após tomar o café, olhei em volta. Apreciei a bela e antiga arquitetura do prédio. A cúpula alta e transparente deixava penetrar a luz do sol. Sentia-me bem. Temi avistar o homem alto, negro, gordo e desajeitado. Mas ele não estava ali.

Dirigi-me ao segundo andar. Acontecia a exposição de um famoso pintor nacional. As telas eram gigantescas e apresentavam figuras geométricas. Embora um tanto leiga em artes plásticas, não deixei de apreciar as formas e nuanças de cor.

Quando dei por mim, entardecia. Segui pela Primeiro de Março. Tráfego intenso. Sobre o passeio, desviava-me de pessoas apressadas que vinham em sentido contrário. Ambulantes obstruíam a passagem. Na praça XV, entrei no Paço Imperial. Aproximei-me do bistrô. Sentei-me e pousei a bolsa sobre a cadeira ao lado. O garçom veio em meu socorro. Pedi um suco de laranja. Quando ele se afastou, surpreendi-me com a presença do homem que já vira outras duas vezes durante a tarde. Desta vez, concluí que não podia ser coincidência. Fiz um gesto brusco de que iria levantar-me, mas contive-me. Aquele era um lugar público, teoricamente não havia perigo. Na rua, estaria mais exposta. Tomei o suco vagarosamente. Procurei distrair-me. Olhei duas páginas de uma revista que trazia comigo. Permaneci ali cerca de vinte minutos. Às vezes tentava, de soslaio, observar se ele me espionava. Constatei que não. Não se moveu de onde estava. Pedi a conta. Paguei e não esperei troco. Precipitei-me porta afora. Senti vontade de ir ao banheiro. Mas agüentaria. Alcancei a praça e, sem olhar para trás, atravessei em direção à Sete de Setembro.

Anoitecera. O número de pessoas diminuíra. Passei diante de um restaurante onde um homem cantava ao violão. Algumas pessoas tomavam cerveja. Um garçom apontou-me uma mesa. Segui em frente. Quando atingi o Mc Donald's, entrei e tranquei-me no banheiro. Olhei-me no espelho. Estava assustada. Ajeitei-me. Na rua novamente, olhei em várias direções. Não avistei quem eu temia. Apressei-me em direção à Rio Branco.

Peguei um táxi. O trânsito seguia lento em direção a Copacabana. Naquele momento, me encontrava mais tranqüila. Os vestígios da agitação anterior tinham desaparecido. Respirava aliviada e até sentia uma ponta de felicidade. Ao cruzarmos o segundo túnel, já na Princesa Isabel, pedi ao motorista que me deixasse no primeiro ponto da Tonelero. Quando ele parou, assustei-me. De novo o homem. Desta vez no ponto, como à minha espera.

- Continue, por favor, não vou descer - precipitou-se minha voz atônita.

O motorista ainda demorou, o apressei:

- Rápido, não pare aqui.

Continuamos. Pedi que ele fosse pela Lagoa, entrasse em direção a Ipanema e me deixasse na Visconde de Pirajá. Desceria um ponto antes da General Osório.

No momento de saltar, porém, hesitei. Concluí que seria melhor continuar.

- Não, por favor, vou voltar para Copacabana.

Agora foi o motorista que me olhou com desconfiança.

- Não é problema de dinheiro - assegurei -, se quiser, pago adiantado. Dei uma nota de vinte a ele.

- Continue, por favor.

O movimento em Copacabana nunca diminui. O bairro funciona a pleno vapor em todas as horas do dia e da noite. Sairia do táxi na Nossa Senhora de Copacabana, na esquina com a Figueiredo de Magalhães. Ali haveria muita gente. O perigo seria menor.

Caminhava a passos rápidos pela Figueiredo. Tentava alcançar a Tonelero, como quem vem de Ipanema. Mas logo percebi que percorrer aquele trecho não fora a melhor escolha. Olhava em todas as direções; avançava, mesmo com maus pressentimentos. No caminho, descobri uma padaria. Entrei. Comprei um maço de cigarros. Acendi um. Dei dois tragos com sofreguidão. Quando me voltei com o objetivo de retomar o trajeto, vejo o homem passar. Ia em direção à minha rua. Fui abatida por intenso desespero. Estava certamente à minha procura. O que fazer? Tentei pensar em algumas soluções. Tentativas vãs. Se eu seguisse em sentido contrário, tudo ficaria mais difícil. Quis ir à polícia. Mas temi que me julgassem louca. Pensei em recorrer a algum amigo. Não me lembrei de ninguém naquele momento. Saí da padaria e entrei num novo táxi. Já estava tão perto de casa e tive de me afastar novamente.

Desci na Atlântica. Entrei no Leme Palace. Me hospedaria ali por uma noite.

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Trilogia Brasiliense
I

O painel luminoso em letras brancas e fundo vermelho ofusca meus olhos. Trata-se de uma loja de material fotográfico: Fujioka. Paro. Em frente, há um quiosque de café. Peço um expresso. A garçonete, séria, me pergunta se desejo mais alguma coisa. Meneio a cabeça negativamente.
As pessoas desfilam o final de ano no Conjunto Nacional. Tento ver suas fisionomias. Principalmente a das mulheres. Passam apressadas. Desejam presentes de última hora. Uma moça pára na frente de uma das vitrines; observa as câmeras digitais. Sorvo meu café enquanto ela permanece; rabo de cavalo, pequena bolsa às costas, camiseta e calça jeans, o casaco dependurado num dos braços. A garçonete percebe meu interesse, enquanto lava algumas xícaras. A moça, a do rabo de cavalo, dá meia volta; o acaso faz que nossos olhos se cruzem. Pisco. Ela não repara, ou finge que não repara. Desaparece. Outras pessoas continuam atravessando o local. Há lojas para todos os gostos e interesses. Meu pensamento se mantém na moça loira de rabo de cavalo. Quando me volto ao bistrô, seguro o cardápio que está ao lado. Descubro outras coisas além de café expresso e café com creme: irish coffee.
- Vocês servem irish coffee?
- Servimos.
- Quero um.
Tento observar como ela o prepara; há alguma cerimônia, um tipo de ritual na preparação. Mas concluo que há muito ninguém faz tal pedido. A garçonete olha num pequeno papel a receita da bebida. Viro-me ao corredor à esquerda para que ela não se sinta constrangida.
Vejo uma loja de loterias, depois uma sapataria. Várias lojas de moda feminina se enfileiram no lado oposto e em uma delas descubro uma das atendentes, de sorriso dourado e blusa cor de rosa. Presto atenção ao que ela faz. Anda de uma lado a outro, conversa com a companheira de trabalho e chega à porta quando percebe alguém interessado nas roupas. A vitrine está uma graça. Ela sorri para a cliente, pergunta em que pode ser útil.
Recebo meu irish coffe com um pouco mais de ingredientes do que o normal e com o ar preocupado da garçonete; a bebida tem bom sabor, o uísque parece de boa qualidade.
Após os dois primeiros goles, algo inexplicável ocorre em meu interior. A capital federal me chega com outros ares. Só quem aprecia o que é construído pelo homem – o que é artifício - tem bons sentimentos por esse lugar.
Volto-me de novo às mulheres. Há uma morena que me olha e se detém diante da loja em frente. Ela se demora. O tempo é demasiado para quem escolhe um par de sandálias. Duas negras param ao meu lado e pedem pão de queijo e café com leite. Descubro uma criança entre elas. A mais velha me repara e se deixa escorregar num sorriso educado. Retribuo. Minha pele se ressente devido ao frio, apesar de dezembro. Aqui a temperatura sempre é baixa. Brasília acompanha o primeiro mundo até na temperatura. Mas o sol permanece dentro de mim na expectativa de que a mulher que entrou na sapataria corresponda. Termino minha bebida. Sinto que a garçonete não está acostumada a servir irish coffee; teme que eu deseje outro. Peço uma pequena garrafa de água. Ela sorri aliviada. O menino entre as duas come seu pão de queijo. A morena sai da sapataria, caminha para o café. Percebo o olhar fugidio em minha direção; não tento disfarçar. Ela pede um capuccino. Eu tomo minha água. Carrega bolsa com o nome da loja. Dois homens passam conversando, um jovem segue uma adolescente. A morena dá a senha e consegue estabelecer um diálogo. Duas palavras sobre o clima; depois descobre que não sou daqui. Meu silêncio me denuncia. Respondo por monossílabos. Temo que ela escape após o último gole. Executo a lei dos contrários: desinteresse, ainda que em disfarce.
- Preciso também comprar um calçado – deixo escapar.
Ela sorri. Quase pergunta se quero ajuda para a escolha. Embora ela se tenha aproximado com facilidade, temo que se assuste, pode não ser nada disso que estou pensando. Preciso de mais uma bebida, mas deixo para após a escolha do calçado. Talvez uma sandália, confortável e de couro.
- Ah, de couro, são caras mas ótimas.
- Sim, ótimas - repito sua última palavra.
Carrego agora também uma pequena bolsa, com a sandália. Atravessamos todo o Conjunto. Sugere um bar discreto.
- Por que um bar discreto?
Ela não responde.
A cidade é discreta, todos falam baixo, todos se cumprimentam, mas pouco se conhecem. Um bar discreto; ei-lo. Há sempre um garçom solícito à porta de um bar discreto. Enquanto ela pede para ir ao toalete, peço uma dose de uísque.
- Sim, uísque - de novo, a surpresa -, não se bebe uísque nesses lugares?
Bebe-se. Eu é que não percebo. Ela volta. O garçom traz a bebida. Ela olha desconfiada para o copo. Desculpo-me, devia ter esperado. Ela não bebe, garanto que vai pedir suco. Desfaço-me em sorrisos, sinto-a preocupada. Vejo em seus olhos desconfiança sobre o homem que está diante dela. Acusa-me de alcoolismo através de um sorriso sem têmpera. Penso que deseja partir e está arrependida sobre o encontro casual. Ledo engano. Ela pede vodka.
Um rapaz passa pelo corredor empurrando um carrinho; dois outros o acompanham. Neles há alegria de fim de ano. Reparo a loira de cabelos com rabo de cavalo. Tarde demais. A morena toca um de meus braços.
- Veja aqui - diz olhando o cardápio -, veja que interessante, comida francesa, no Conjunto!
Ela, daqui, nunca tinha reparado. Duas doses de uísque, duas de vodka. Um prato de batatas cozidas. Estranho? Sim, mas verdade, estavam ótimas. Para finalizar mais um uísque para mim, mais uma vodka para ela. Saímos juntos. Estamos inteiros. A temperatura já não é baixa. Ela me arrasta para o estacionamento. Desconfio. Tem automóvel, veio dirigindo.
- Você já vai? - pergunto.
- Não, vamos juntos, onde você se hospeda?
- No Manhattan.
- Não vamos já - muda de idéia -, há uma varanda.
Paramos. A noite com as luzes de natal se estende por todo campo aberto que é a capital federal. Há enfeites, há estrelas, há brilhos interessantes.
- Eis uma cidade para quem gosta da cultura.
- Cultura? - repete minha última palavra em tom de pergunta.
- Cultura - afirmo -, tudo aqui é construído ou organizado pelo homem, matemática com um pouco de poesia.
- Poesia? – surpreende-se.
- Acostumamo-nos com a natureza; quem está de férias prefere uma praia, alguma montanha, um sítio; só vem para cá quem aprendeu a gostar de outro tipo de natureza: a humana; ou se vem por necessidade.
- Filosofia?
- Não -, respondo -, ou melhor, talvez sim.
- Você está aqui por isso?
- Não sei, descobri agora.
- Agora? repete.
- Agora, confirmo.
- E o que vamos fazer?
- Vamos andar.
- Aqui não se anda, quero dizer, a esta hora se anda de carro.
- Então vamos, vamos de carro.
Ela olha mais uma vez a área aberta, com prédios distanciados, vias que se cruzam de modo planejado, luzes que nos iluminam.
- Matemática, poesia, construído - ouço sua voz -, gostar do que é construído - repete em tom de reflexão.
Olha-me, sorri melancólica enquanto abre a porta do carro. Eu queria que ela tivesse um sorriso alegre. Sinto tê-la despertado para o que nunca tinha pensado. Talvez tivesse sido mais fácil levar a conversa em outra direção. Filosofia?, não. Talvez amor ou sexo, ainda que implícito.

II

"Luciana, loira, 24 anos, estudante universitária, precisa de ajuda financeira. Tel 8....... ."
Fico intrigado com o anúncio na seção de classificados do Correio. Percorro toda a página e percebo outros: um rapaz oferece seus dotes e serviços, mais adiante outra jovem também em dificuldades, em seguida uma mulher de trinta e três anos está em busca de aventura. Logo descubro: prostituição, feminina e masculina. Decido ligar. Para Luciana. Após o segundo toque, ouço sua voz.
- Alô, Luciana?
- Sim.
- É sobre o anúncio, você precisa de quanto? – mostro-me incisivo.
- Precisamos conversar antes.
- Como faremos?
- Devemos nos encontrar.
- Onde?
- No Brasília Shopping.
- Quando?
- Você marca.
- Hoje, às 1800.
- Ok.
Fixamos o local: o café diante da livraria. Combinamos a roupa que vestiremos.
Luciana está à minha espera; veste blusa cor-de-rosa esvoaçante, de tule; o tecido transparente permite que se observe o top, que é próprio para aquele tipo de tecido; a saia é rodada, em tom cor de vinho; o conjunto lhe dá ar juvenil. Circulo a mesa em que ela lê uma revista.
- Luciana?
- Sim.
- Armando.
- Muito prazer.
Logo percebe que não sou da cidade.
- O que você faz aqui? – quer saber.
- Ainda não sei.
- Você viaja a algum lugar e não sabe para quê?
- Talvez.
- Um desmiolado – sussurra e sorri.
- Conversemos sobre negócios – sugiro.
- Negócios?
- Sim, seu anúncio.
- Ah, sim – sorri de novo.
Olha-me sorrateira. É bonita. Mas não é a loira anunciada no jornal
- Os homens preferem as loiras – pronuncia adivinhando-me o pensamento.
Tem cabelo curto, mais para castanho claro, um corte sedutor.
- Qual é o preço?
- Quinhentos.
O valor é alto, mas mantenho a seriedade.
- Vale pela noite toda?
- Toda – responde voltando-me os olhos e depois procurando um guardanapo sobre a mesa.
- Onde vamos?
- Você paga, você escolhe.
Quando ainda andamos pelo interior do shopping, pede licença para ir ao toalete. Espero diante de uma loja de telefones celulares que é vizinha a uma de chocolates: Kopenhagem. Admiro a tecnologia dos aparelhos e depois o requinte dos bombons. Uma das vendedoras – da loja de chocolates – me olha e sorri. Sinto que não será difícil estabelecer algum vínculo inicial. Penso em abandonar a profissional. Tarde demais, ela já aparece na outra ponta do corredor. Ainda tenho tempo de ir até o pequeno balcão onde está a moça. Deixo meu cartão. É a primeira vez que tento uma conquista desse gênero, não creio que terei retorno.
Vamos ao R., famoso restaurante freqüentado pela elite da cidade, à beira do lago sul. Ali há um pianista que à meia luz dedilha melodia suave. Após às 21:00h surge outro músico, desta vez um saxofonista, que lhe faz companhia. A música nos atinge em cheio, principalmente após dois cálices de vinho do porto. Jantamos à luz de velas. Entrada: camarões ao vapor com molho holandês; cherne assado acompanhado de batatas portuguesas cortadas finíssimas é o prato principal; uma grande salada de palmito, acelga e mini tomates torna o jantar mais leve. Tudo no mais extremo requinte. Bebemos uma garrafa de Bordeaux.
Ao deixarmos o local, circulamos de automóvel à beira do lago. Após alguns poucos quilômetros, chegamos à South Point, famosa boate da moda. Mas antes de entrarmos, envolvo Luciana em meus braços, passeamos durante algum tempo sobre um céu vago e enigmático, observamos o lago e as luzes dos automóveis que cruzam a via expressa.
Como é quarta-feira, a South Point não tem muitos freqüentadores, o que nos deixa bastante confortável. De início, não quero nenhuma bebida alcóolica, mas Luciana pede coquetel de frutas tropicais com vodka e algumas gotas de gim, uma pequena cereja acompanha a bebida. Sorvo aos poucos uma garrafa pequena de água mineral com gás. A música naquele momento ainda é suave e entoada por voz feminina: um blue negro, compassado, convida ao namoro. A pequena pista está quase vazia. As pessoas junto às mesas permanecem envolvidas umas às outras. A temperatura ambiente é baixa e também incita ao tocar de corpos. Em seguida, o ritmo começa a se tornar mais agitado até desaguar num estilo anos setenta, mixado e preparado por DJs que não se satisfazem com o som original. Dançamos o tanto que podemos e da maneira que sabemos. Creio que Luciana está surpresa. Talvez tenha pensado que eu a houvesse solicitado somente para programa num motel. É provável que me ache um milionário que quer se manter anônimo; animo-me por ela não ter perguntado a origem de meu dinheiro. Não teria como lhe explicar. Ainda bem que as prostitutas são discretas.
Ela é bastante carinhosa. Namora-me com se eu fosse seu verdadeiro amor. Beija-me na boca diversas vezes e com volúpia. Dança e se diverte dando o máximo de si. Nem se percebe que trabalha.
Às duas e meia, decido partir para meu hotel. O Manhattan Plaza. Lá um quarto de casal nos espera. Quando dirijo ainda beirando o lago, antes de atravessarmos a ponte JK, pede que eu pare.
- Algum problema? – pergunto.
Faz que não com a cabeça. Lança-me um sorriso ardiloso e desce. Pede que eu abaixe os faróis. Diante do automóvel, tira toda a roupa e a arremessa em minha direção. Quer que eu aumente o som do aparelho de CD. Põe-se a dançar nua durante muito tempo. Não sei qual é sua intenção. Confia em mim deixando em meu poder todas as peças que veste; está afastada do carro. Sempre admirei a confiança que desperto nas mulheres, já na primeira vez que saio com elas. Começa a chuviscar. Seu corpo é salpicado por gotículas que parecem de cristal. Dois raios produzem estrondoso trovão; a chuva engrossa, ela se deixa molhar, seu corpo todo brilha, depois corre para dentro do automóvel e senta ao meu lado. Beija-me na boca; suas mão estão frias, mas sua língua é quente. Posso sentir gosto de mel e frutas, o rastro de álcool é o aroma do desejo. Quando me solta, sussurra:
- Leve-me a seu hotel, é urgente – sorri de novo maliciosa.
- Você não vai se vestir?
- Não, me leve nua...
Cumpro-lhe o desejo.
Temos uma noite inesquecível. Ela é boa de cama e garanto que eu também não a decepciono, embora – é preciso lembrar – aquilo para ela seja um trabalho.
Quando acordo às oito e alguma coisa, percebo que estou só. A primeira coisa que penso é que fui furtado. Mas constato que não foi isso que aconteceu. Encontro um bilhete:
“A noite foi maravilhosa. Obrigada. Sobre o pagamento, esqueça. Era brincadeira. Também vim a passeio. Um dia desses nos encontramos. Talvez em outra cidade. Um grande beijo. Luciana.”
Às onze horas, enquanto leio o Correio no lobby superior do hotel, o telefone me chama. Ligação local, a cobrar. Atendo. É a moça da Kopenhagen; quer encontrar comigo.

III

– Sr. Armando?
– Sim?
- É Gabrielli, da Kopenhagen, lembra de mim?
- Claro.
Pergunto se posso encontrá-la no Brasília Shopping, às 4:00h da tarde.
- No Brasília, não, hoje estou na loja do Pátio Brasil, sabe onde fica? – pelo seu modo de falar, tenho a intuição de que essa mulher deve ter um jeito amalucado.
- Sei.
Diz mais algumas palavras e quando vou falar, ouço que vai desligar porque não pode estar ao telefone a essa hora. Antes, ainda pergunta se vou mesmo. Confirmo. Percebo que ela está feliz, manda um beijo e desliga.
Observo com mais atenção o local à minha volta. O ambiente é de luxo. Mas devido à época do ano, quase vazio. Os deputados, quase todos, estão em seus estados de origem; empresários e outros profissionais que freqüentam vez ou outra a capital federal também não se encontram por aqui. Admiro a vista panorâmica que se descortina através dos vidros que me rodeiam; vejo outros edifícios, vias, coletivos, automóveis. A cidade se estende; é possível apreciar o eixo monumental com os ministérios enfileirando-se em ambos os lados e os dois altos prédios do congresso ao fundo; os vastos espaços abertos produzem sensação de infinitude e grandeza. Em Brasília, a amplitude também nos transmite sensação de conforto.
Volto-me ao andar onde me encontro; ao fundo há um bar. Taças, garrafas e outros objetos estão arrumados entre vidros espelhados. Preparam-se ali todos os tipos de bebidas e também serve-se café. Deixo o jornal sobre uma das pequenas mesas; levanto-me da poltrona e caminho até o bar. Peço uma pequena xícara de café com leite. Depois, sento-me de novo; agora sobre uma banqueta estofada. Aguardo. Um casal com trajes clássicos conversa, enquanto a mulher tira da bolsa o maço de cigarros; no outro extremo dois homens, um de terno bege outro de terno marrom estão sentados próximos, folheiam a Veja; alguns metros adiante, um jovem, em traje esportivo, parece adormecido num dos estofados, sua cabeça pende para trás, numa posição de quem ou passou a noite em claro, ou bebeu até alta madrugada.
***
Chego mais cedo ao Pátio Brasil. Não por causa do encontro, mas porque preciso almoçar. Dirijo-me ao segundo piso e entro num restaurante muito aconchegante. Mas confesso que não acho a comida tão saborosa. Ao terminar, como de costume tomo café e, depois de passar rapidamente pelo lavatório, caminho para a loja dos chocolates.
Não entro. Admiro pelo vidro os diversos modelos de embalagens e produtos daquela marca. Há caixas de bombons elegantíssimas, parecem obras de arte, percebo o colorido todo especial, quando Gabrielli me descobre. Pede licença à companheira e vem rápida até a mim.
- Oi – fala alongando a primeira vogal, sorri de forma deleitosa.
Beijo-a como se já nos conhecêssemos. Confesso que seu jeito de mulher desperta em mim súbita atração. Acho-a simpática, alegre. Parece ser a pessoa mais feliz do mundo. Depois completa:
- Viu?, telefonei, você pensou que eu ia esquecer, não foi?
Permaneço quieto durante alguns segundos, até que sorrio, procuro corresponder a alegria da moça.
- O que vamos fazer? – pergunto.
- Ah, tanta coisa – diz enquanto arregala os olhos, sorri com euforia ao perceber minha fisionomia -, só que... –, de repente silencia e olha para dentro da loja –, só que não vai poder ser agora, trabalho até as dez.
- Nossa, isso é escravidão – exclamo sarcástico.
- E, veja, sou até moreninha.
Ri de novo, agora de modo estrepitoso, mas sem perder a elegância. Sinto desejo por ela.
- E então, como fazemos? – indago.
- Tenho direito a quinze minutos, espere ali, no café, diante da agência do banco; fico com você durante meu tempo de lanche e então... , quem sabe? - sorri mais uma vez. –, puxa, você não precisava vir com uma roupa tão séria.
- Roupa séria? – surpreendo-me.
- Vestido assim você até parece um dos sócios da empresa.
Ela volta às carreiras para dentro da loja e eu caminho para o café.
Enquanto vou pelo corredor olhando ora a um lado ora a outro levo em conta uma possibilidade: essa mulher vai me causar algum transtorno, mas prefiro arriscar.
Olho uma vitrine de roupas esportivas, olho outra, uma marca italiana, perco-me por um dos corredores diante de uma joalheria. De repente, sinto que alguém me agarra por um dos braços, ouço sua voz.
- Vamos para o outro lado, lá é melhor.
É Gabrielli que surge do inesperado, usa o uniforme da empresa. Um tipo de jardineira marrom com blusa vermelha de manga curta que permanece por baixo da parte de cima da roupa. Ao chegarmos aonde apontou, sentamos.
- Sua loja também tem café expresso... – digo aleatoriamente.
- Quero estar sozinha com você.
- Por que me telefonou? – me faço de ingênuo.
- Por que você me deu seu número? – sua face é clara e animadíssima, explode numa gargalhada. Acabo rindo junto com ela.
- Você trabalha aqui há muito tempo?
- Não temos lugar certo. Vamos para onde a empresa manda. Não há muitas lojas da marca em Brasília. Às vezes, monta-se um quiosque em algum lugar, como o que funciona agora no Conjunto.
- Então, você trabalha muito?
- Trabalho.
- E não se diverte?
- E como! – sorri de maneira ainda mais intensa e me surpreende ao ajeitar meu cabelo. Depois pousa a mão sobre um de meus braços.
- Temos que conversar rápido – diz e olha meio temerosa para o relógio -, escute.
- Estou escutando.
- Você não é daqui, não é mesmo?
- De certa forma, não.
- Então não deve ter muito tempo?
- Devo partir em um ou dois dias.
- Vamos sair hoje? – pergunta de chofre.
Alegro-me com a proposta. Concordo. Tento não me impressionar por todo seu entusiasmo.
- Que legal! Então venha me apanhar às dez, mas me espere no estacionamento, basta dar um toque para meu número que vou a seu encontro, não posso antes, só das dez em diante.
Ela se levanta, me puxa por um dos braços. Uma das moças que trabalha na cafeteira dá um adeusinho a ela e me olha com ar de surpresa, mostra animação, é como se a incentivasse a ir adiante. Percebo alguma cumplicidade entre as duas. Saímos dali e ela também dá um adeusinho à amiga.
- Tenho que ir – diz atabalhoada -, mas não se esqueça, venha me encontrar, você parece ser uma pessoa maravilhosa.
Abraça-me com sofreguidão e, para minha surpresa, me beija nos lábios, depois me solta e grita enquanto corre para a loja:
- Não vai me dar bolo, viu?
Desaparece.
***
Chego às quinze para as dez ao estacionamento do Pátio Brasil. Ligo para Gabreielli. Ela atende.
- Oi, amor, você chegou um pouquinho adiantado, vou demorar ainda uns vinte minutinhos.
Quero lhe dizer que cheguei antes devido ao receio de não poder estacionar, já que o shopping fecha às dez, mas ela não espera eu falar e pergunta sobre a localização de meu carro. Respondo baseado nas letras e números que se encontram nas proximidades. De imediato me manda um grande beijo e desliga.
Saio do automóvel e resolvo circular pelo interior do shopping. O lugar é bonito e aprazível. Mas logo que entro me desoriento. A circulação foi criada para que as pessoas se confundam e tenham que transitar várias vezes pelo mesmo local. Creio que assim permanecem mais tempo entre as lojas e acabam comprando sempre mais alguma coisa, geralmente desnecessária. A essa hora, os empregados estão arrumando o estoque e torcem para que não chegue mais ninguém, principalmente quem olha muito e não compra nada. Olham de soslaio tentando descobrir que tipo de cliente se aproxima. Circulo no térreo e depois no andar imediatamente acima. Percebo que estou acompanhado de muitas pessoas. Umas já fizeram suas compram, outras apenas passeiam. Detenho-me diante de uma loja que vende doces e tortas; a atendente se aproxima e pergunta se desejo algo. Agradeço e continuo meu passeio. Quero ir até a loja de Gabrielli e permanecer escondido, gostaria de ver o que ela faz nos instantes derradeiros de seu dia de trabalho. Mas desisto. É melhor cumprir o combinado, não quero contrariá-la. Vou ao toalete, lavo as mãos e me olho no espelho. Ajeito o cabelo, a gola da camisa e saio. Procuro descobrir em que direção tenho de ir. A princípio, caminho para o lado contrário de onde vim; depois, orientado pelo quiosque de sorvetes do Mc Donald’s, descubro a porta por onde entrei.
Ao retornar ao estacionamento, vejo Gabrielli encostada à porta do carro com o telefone ao ouvido.
- Está bem, vou dar um jeito – são suas últimas palavras; desliga.
Ao me descobrir, corre e se atira em meus braços. Assusto-me com o gesto brusco, assusto-me com suas roupas, ela veste uma saia mais do que mini, abraça-me e se lança inesperada para um beijo, na boca.
Após eu dar a partida, diz:
- Temos um pequeno problema, mas de fácil solução, você não fica aborrecido?
- Claro que não – tento ser natural, como se problemas fossem as coisas mais normais do mundo, tento disfarçar meu olhar sobre suas pernas nuas.
- Temos que dar uma chegadinha em Ceilândia.
- Ceilândia? – indago automático.
- Isso, eu resolvo o problema em um minuto, depois você pode me levar para onde quiser e ficar comigo durante o tempo que desejar.
- Um mês?
- Calma, vamos devagar – aproxima-se e me beija.
- Você precisa me ensinar o caminho.
- Ensino.
A saída de Brasília para Ceilândia não é difícil. A via expressa que nos conduz também é boa. O problema é quando se chega à cidade. Lembra a periferia de São Paulo, ou mesmo a do Rio. A suntuosidade do Distrito Federal desaparece para dar lugar à paisagem que não se imagina para quem conhece apenas o plano piloto.
Entramos por algumas ruas um tanto soturnas àquela hora, depois percebo que as casas vão se tornam mais simples, mais humildes até que desembocamos numa espécie de campo aberto, mais adiante surge outra quadra onde a maior parte das casas se encontra ainda no tijolo. Numa das extremidades, há uma pequena praça.
- Pare aí – diz Gabrielli -, olha, você não precisa se preocupar – fala enquanto abre a porta e sai do carro -, aqui eu conheço tomo mundo, venha comigo.
Saio e caminho a seu lado. De repente, quando passamos diante de um bar, ela fala:
- Me espere aqui, já volto.
Cumprimenta o homem que está atrás do balcão e desaparece.
Ele fica me olhando durante alguns segundos e acaba por perguntar:
- Deseja alguma coisa?
Sem jeito, peço uma garrafa de água com gás.
Reparo dois homens que jogam sinuca na parte interna do bar. Um outro rapaz apenas olha. O que tem a vez de jogar vira-se e me cumprimenta com um pequeno gesto feito com a cabeça. Veste jaqueta de brim, que parece apertada em seu corpo. Segura o taco e com movimento firme acerta a bola branca encaçapando a da vez. Os outros dois fazem gesto de aprovação. De chofre diz:
- Mais uma cerveja, João.
Acabo de beber a água. Sinto-me um tanto deslocado naquele lugar. Mas logo Gabrielli reaparece. Para minha surpresa, traz uma criança pelo braço, deve ter três ou quatro anos. Ao me ver, a menina pergunta:
- Mãe, é esse que é seu namorado?
Gabrielli ri alto e diz:
- É, meu amor, é.
- Ele é bonito, mamãe.
Entramos no carro.
- Vou te ensinar o caminho, tenho que deixar Camila na minha irmã.
Dobramos à esquerda e à direita diversas vezes, até que chegamos. A casa parece boa, é de dois andares. Percebo que falta algum acabamento e que há um carro na garagem. Uma mulher morena de cabelos loiros chega à porta. Pega a menina no colo e tenta me olhar às escondidas. Depois, dá meia volta e desaparece.
Voltamos ao plano piloto. Sinto alívio.
- Não se preocupe, você não vai precisar me levar em casa esta noite.
Creio que minha fisionomia me denuncia.
Sinto-a a mulher mais feliz do mundo, me acaricia enquanto dirijo e não hesita em dizer:
- Vamos ter uma noite maravilhosa.
- Onde você quer ir? – pergunto.
- Vamos a um restaurante, você se importa?
- Claro que não.
- Conheço um que é maravilhoso, e não é caro, você vai adorar – fala e me dá mais um beijo, já está quase em cima de mim, tenho dificuldade para passar as marchas.
- Você parece carioca, e mesmo lá no Rio acho que já não há pessoas como você.
- Por quê? Você não está gostando do meu jeito?
- Estou, estou adorando – me apresso em dizer –, é que seu jeito não é característico de pessoas daqui.
- E se eu disser que sou carioca?
- Mas como você veio parar neste lugar?
- Ah, é uma longa história, um dia te conto.
É ela que orienta o trajeto até o restaurante.
Ele se situa em uma das quadras da asa norte. Na verdade, é de luxo. Tem maitre à porta, um outro empregado para nos levar até a mesa, um outro para servir a bebida e não deixar que os copos se esvaziem.
- Ah, é maravilhoso, não é mesmo? – ela me pergunta.
Está sentada a meu lado, não quer ficar de frente. Quando ainda bebericamos e aguardamos o prato principal, não hesita em me puxar pelo pescoço e me beijar na boca. De novo, reparo em suas faces inexprimível alegria. É como se possuísse uma bateria que nunca descarregasse. Sempre tem o maior entusiasmo. Qualquer proposta que faço é saudada como se fosse a melhor coisa do mundo. Conversamos sobre o trabalho dela. Diz que para trabalhar naquela empresa precisou fazer curso de etiqueta.
- Aliás, todas precisam.
- E você foi a que se saiu melhor? – pergunto com ironia.
- Foi um escândalo, nem é bom pensar... – arregala os olhos e sorri.
- Por quê?
- Você já reparou o meu jeito, não? O curso exige que as pessoas sejam discretas; alegria, só superficial; cada uma deve ter fisionomia padronizada. Não sei como consegui me sair bem...
- Você exagera, deve ter conseguido o primeiro lugar!
Emite outra gargalhada. Depois põe as mãos sobre a boca e arregala os olhos diante do silêncio e do ambiente à meia luz.
O garçom nos serve posta de salmão com molho de alcaparras; o prato não é tão sofisticado, mas esse peixe é difícil em Brasília, e a proposta também foi dela. Bebemos vinho branco francês. Ela não é ingênua. Embora ache tudo maravilhoso, está acostumada a coisas boas.
À uma e trinta, entramos no Manhattan Plaza. Olha assustada para toda aquele luxo. Percebo que por essa ela não esperava. Repara desde o elevador, o corredor todo atapetado e com as paredes também forradas, os quadros, até a decoração do apartamento. Vai à varanda com vista panorâmica, permanece durante alguns minutos tentando decifrar os locais que ela conhece lá embaixo. De início, acho que sente frio. Mas depois percebo que quando contrai o corpo magro age como se deixasse envolver por um abraço afetuoso, talvez da própria noite, que a torna mais excitada, como num ritual de preparação.
Quando volta ao apartamento, corre a porta de vidro da varanda. Pede que eu a abrace. Depois, ligeira, tira toda a roupa largando as peças desordenadas pelo quarto e mergulha na enorme cama de colchão de molas. Ela, de bruço, faz movimentos para que o colchão balance. Vejo seu corpo subir e descer, está quase em estado de êxtase.
Abro mais uma garrafa de vinho. Gabrielli que sóbria já é entusiasmada, quando bebe se mostra à beira da explosão. Temo por ela e tento contê-la. Atira-se em meus braços. Quando a acaricio, se tornar mais calma.
Namoramos durante boa parte da madrugada. Ao beirar o orgasmo, grita desesperada. Assusto-me. Diminuo meus movimentos e tento tapar-lhe a boca. Ela pede que eu não pare, mas seu coração explode num ritmo quase alucinado, prefiro acalmá-la; entra, então, num estado de certa tranqüilidade. A seguir, a cena se repete: excita-se, grita, eu a contenho de novo. Na terceira vez, deixo-a livre; ela grita cada vez mais alto até que goza; tento gozar junto com ela. Depois cai exausta a meu lado. Eu, do mesmo modo, estou sem a mínima condição de qualquer tipo de deslocamento.
Acordo às onze. Ainda está aninhada junto a mim. Nua, sob a coberta. Ao me movimentar, escuto seus primeiros sons.
- Hum, hum, me abraça.
Permaneço junto dela. Transamos mais uma vez. Mas agora, ela quase não grita. Próxima ao orgasmo, sussurra de modo quase inaudível:
- Vou gozar.
Depois cai novamente num torpor de quase quinze minutos.
- Você não tem que trabalhar? – pergunto preocupado.
- Hoje, só a partir das quatro.
O brilho da manhã combina com sua fisionomia agora tranqüila e com seus olhos ainda fechados, mas ao abri-los sei que estarão cheios de vida, próximos a outra grande explosão.
Quando, em torno das quinze e trinta, deixo-a à entrada do shopping, ela ainda se volta antes de passar pela porta automática e me dá adeus. Sua saia curta é um escândalo, várias pessoas olham para as pernas de Gabrielli. Ela faz sinal de que me vai telefonar.
***
O avião já decolou. Faz a curva sobre a cidade. Tento ver Brasília de cima. Avisto a torre de televisão, algumas quadras, mas pouco a pouco tudo vai diminuindo de tamanho até desaparecer, para se transformar apenas em nuvens. No sistema de som do avião, o comandante cumprimenta os passageiros e diz como será o vôo até São Paulo. Sempre admirei esse dom de prever o futuro, que só os comandantes possuem.