É praxe na literatura quando nos deparamos com textos de períodos que
não o nosso, tentar-nos colocar no lugar do leitor/ouvinte contemporâneo ao autor que os produziu. Dando um salto no tempo até o barroco
brasileiro, dou um exemplo. Como devemos ler e/ou ouvir a poesia de Gregório de Matos
num mundo como o de hoje, pleno de ruídos, impregnado pela presença
ostensiva da imagem, obstáculos que às vezes nos sonegam a audição atenta à
sonoridade dos seus versos?
Em relação ao teatro, podemos dizer o mesmo. Como observar a
Medeia, de Eurípedes, aproximando-nos
dos olhos e do pensamento de um grego daquele tempo? É essa questão que me aflige quando vou ao
teatro assistir a espetáculos que fazem algum tipo de releitura de textos clássicos. Algumas delas acabam por colocar na voz dos
personagens problemas que eles não tinham e não viveram.
Não me atrevo a avaliar o mérito ou demérito da encenação de
Medeia en Promenade,
apenas discuto algumas das questões colocadas pelo texto. Medeia, que parte
para o exílio permanente após o assassinato dos próprios filhos, está, num
primeiro momento, mergulhada no esquecimento. A ama que a segue, inclusive, faz
de tudo para não lhe reavivar a memória e, numa espécie de monólogo inicial, se refere ao habitat perdido como um universo extremamente masculino e opressor. A
personagem principal é alguém que vaga por entre tempestades, em meio ao frio
intenso e à contínua procura por abrigo. O fantasma da filha do rei Creonte aflige a protagonista,
pois para mostrar o apodrecimento dos seres vivos arrasta um cachorro morto, e
acaba por revelar o próprio corpo também apodrecido, queimado por Medeia no ato
de vingança. O esquecimento de Medeia sobre o crime terrível que cometeu, no entanto, é
apenas aparente, na verdade ela está consciente de seu ato. Além disso, não o
justifica como vingança contra o marido, mas como um modo de fazer
perdurar seu nome ante às gerações vindouras.
Não só o teatro grego, mas todo teatro tem algum tipo de
moral a transmitir, mesmo independente da vontade do autor. Quando escreveu
Medeia, querendo ou não, Eurípides conseguiu nos dizer que o destino não estava
tão seguro nas mãos dos deuses. Os homens, e também as mulheres, segurariam com
mais firmeza o leme de suas naus, assim poderiam melhor aportar onde bem o quisessem. A tragédia da mulher que mata os próprios filhos por ciúme ao marido talvez fosse algo até menor diante
desse fato.
Na atual montagem, quando acossada pela pergunta do fantasma
da princesa (ela quer saber o que restou do crime que a mulher de Jasão praticou), Medeia grita-lhe em resposta seu próprio nome; a seguir, aponta para fundo da cena, onde da
escuridão acendem em luz forte as letras que compõem o nome "Medeia". Percebemos, então, ainda que de modo precário, um dos pontos fundamentais da moral da antiguidade clássica, moral
essa mais presente no teatro de Eurípedes do que em qualquer outro do período: a insurgência do humano contra a supremacia dos deuses.
Como sempre estamos presos a uma boa história, apressamo-nos
em condenar alguém que tenha praticado crimes classificados como hediondos,
alguém, sobretudo, que pratica o imperdoável ato de sacrificar os próprios
filhos. Mas esquecemos de perguntar: e para os deuses, quantos foram os
sacrifícios?
Medeia em Promenade
talvez traga a premência não da crítica ao mundo masculino, ou da crítica ao
racismo (no texto de Clara, Medeia é negra), ou mesmo à condição do estrangeiro (nas cidades
da Grécia antiga, a quarenta quilômetros de onde se morava já era terra
estrangeira), temas tão comuns hoje, mas quase impensáveis para o homem grego; mas a necessidade de se compreender o ser humano como senhor do seu destino.
O crime de Medeia é apenas o leitmotiv de toda essa questão. Depois de Eurípedes, o Olimpo já
não seria o mesmo.
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