Haron Gamal - especial para O Globo (Caderno Prosa e Verso), publicado em 21/04/2012
A obra literária
– no caso, aqui, a narrativa – não apresenta sua potencialidade apenas no
relato, por mais surpreendente que ele possa parecer. O modo utilizado para
transmiti-lo é que o potencializa e surpreende. Assim se pode observar desde as
narrativas homéricas, passando pela Bíblia, caso a encaremos como literatura,
até desaguar nos autores que se tornaram clássicos. Dante, Shakespeare,
Flaubert, Machado de Assis, Proust, James Joyce, entre outros, não
surpreenderam apenas pelo conteúdo de suas obras. O que mais chama a atenção no
que escreveram e que serve de fator determinante para torná-los imprescindíveis
é, sobretudo, o artificio que utilizaram para contar suas histórias. A carpintaria
narrativa, portanto, acaba por se tornar o fiel da balança quando se deseja emitir
juízo de valor e apontar se uma obra pertence ou não ao universo da alta
literatura.
Apesar de
outras as circunstâncias e do caráter peculiar da cultura que representa,
Scholem Aleikhem bem que poderia pertencer a esse restrito clube dos clássicos.
A edição em
português de sua obra principal, Tévye, o
leiteiro, é constituída de uma carta introdutória e nove capítulos. As
narrativas apresentam-se em forma de falso diálogo. Durante as histórias que
relata, o personagem-narrador se dirige a ninguém menos do que ao autor do
livro, o próprio Scholem. Mas o autor-ouvinte, assim como o interlocutor de
Riobaldo em Grande Sertão: Veredas,
nada replica. Tal artifício proporciona à narrativa a característica de pertencer
à oralidade. Então nos vem à mente o texto “O narrador: considerações sobre a
obra de Nikolai Leskov”, do filósofo Walter Benjamim. Como bem observa a professora da USP, Berta Waldman,
na introdução: “Na novela de Scholem Aleikhem, o pretenso autor parece delegar
ao narrador a autoria da obra, porque este, além de ser o depositário da
experiência, estava, em algum momento, no mesmo nível de seus interlocutores”.
Para
Benjamim, a ação de contar uma história fazia parte de uma experiência de
sentido pleno, sentido que se tornava cada vez mais raro à medida que o
capitalismo avança e se consolida.
Outro fator
importante desse modo de narrar, com Tévye sempre a encontrar ou a fazer uma
visita ao autor, é que essas cenas nos remetem a uma prática conhecida, surgida
inclusive no meio judaico, a psicanálise. Há de se conferir que o jovem Freud é
contemporâneo a Scholem, embora nada indique que se tenham conhecido nem que o
criador de Tévye tivesse alguma informação sobre as primeiras experiências do médico
vienense.
As
narrativas do leiteiro são as de quem pertence ao universo do schtetl, uma organização comunitária
pré-moderna e pré-burguesa, de economia fechada, situada no universo de uma
Rússia ainda czarista. Percebem-se o riso, muitas vezes de si próprio, e a
constante melancolia em que os personagens se veem mergulhados. A modernidade
avança e surpreende o leiteiro através do comportamento de suas sete filhas –
elas passam a querer ser donas do próprio destino. Ao mesmo tempo, o meio
judaico sempre se sente ameaçado por pogroms
e cercado pela miséria. Desta, o personagem quase sempre se safa com o auxílio
de seu cavalinho. O animal não apenas lhe serve para puxar a carroça e levar os
potes de leite, mas também de interlocutor. Scholem, num processo de animização
da natureza, proporciona ao texto profunda reflexão sobre a solidão.
Tévye a todo
o momento está a citar as leis sagradas, o Talmud
e seus comentaristas. Mesmo sendo de pouca cultura, como a maioria dos judeus
do schtetl, ele vê no estudo e na
sabedoria um meio de superar seus oponentes.
As
narrativas, publicadas inicialmente em forma de folhetim na imprensa ídiche da
Europa oriental e depois na dos Estados Unidos, representam uma cultura que se
desagrega devido ao aumento do antissemitismo e da imigração forçada. Essa
cultura, pouco a pouco, passa a habitar apenas as prateleiras das bibliotecas,
principalmente depois do avanço do nazi-fascismo.
Embora o
périplo de Tévye tenha sido adaptado já em 1915 pelo próprio Scholem para a peça
teatral que ficou conhecida como “O violonista no telhado”, a qualidade e o
alcance dos textos narrativos originais publicados agora se situam num outro
patamar. Na adaptação para o teatro, não foi possível o diálogo de Tévye com o
próprio autor nem são bem resolvidas as situações em que a própria língua
apresenta-se como uma das principais personagens.
Capítulo à
parte teria de ser escrito a respeito da tradução de J. Guinsburg. O conhecido
professor, autor e tradutor consegue recriar em português o ritmo e a sintaxe do
ídiche, fazendo o leitor perceber, através de um texto em que o significante é
ressaltado, o lugar sempre precário a que esteve submetido o povo judeu,
sobretudo o do leste europeu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário