quinta-feira, julho 03, 2008

“Esse fogo da alma”

É importante observar que Milton Hatoum, antes deste último livro, Órfãos do Eldorado, escreveu três outros: Relato de um certo oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte, todos ganhadores do Jabuti, um dos principais prêmios da literatura brasileira. Neste novo livro, ele volta a nos surpreender.
Ao iniciar sua história, um narrador pungente e pleno de paixão nos remete a duas mulheres: uma índia que, à primeira vista, fora atraída por um ser encantado e opta por mergulhar nas águas do rio Amazonas, “ia morar com o amante, lá no fundo das águas. Queria viver num mundo melhor, sem tanto sofrimento, desgraça”; a outra é Florita, a mulher que traduz ao narrador-personagem as últimas palavras da índia tapuia. Florita fora uma espécie de ama, cuidara dele desde criança e lhe permitiu a primeira relação sexual. Essas duas personagens femininas vão apontar para uma outra, Dinaura, que será o motor da história, mulher em que ele vai ancorar toda a sua possibilidade de vida futura.
Hatoum opta por começar o livro mostrando esse personagem, Arminto Clodovil, já num adiantado processo de decadência e alheamento. Até o menino, um picolezeiro num triciclo, vai desdenhá-lo aproximando-se de mansinho da sombra do jatobá: “Antes eu podia comprar a caixa de picolé e até o triciclo. Agora ele sabe que eu não posso comprar nada. Aí, só de pirraça, vai me encarar com olhos de coruja. Depois de uns risinhos, sai pedalando, e lá perto da igreja do Carmo ele grita: Arminto Cordovil é doido.”
A partir daí, Arminto nos conta sua história. Somos apresentados a uma Manaus do início do século XX, com sua população local composta de índios, caboclos, bêbados, brancos pobres à espera de oportunidades e empresários plenos de esperança devido às expectativas de progresso que a região anuncia.
Todo leitor ao abrir um livro deseja uma boa história. E aqui ela se apresenta plena. É uma história de perdas e decadência. Mas toda grande literatura é feita desses dois ingredientes. Hatoum reconstitui o Amazonas numa rememoração quase proustiana. Apesar de este livro ter pouco mais de cem páginas, apesar de – ao menos no tamanho – estar um pouco fora das características do autor, que é de romancista mais caudaloso, a construção da trama nos envolve e quando findamos a leitura temos a impressão de que a narrativa é bem maior do que o número de páginas comporta.
Como dizíamos, a construção do passado se revela como uma busca do tempo perdido, uma reconstrução do que fluiu, como as águas de um rio, e que só é possível ser recuperada pela arte. Essa busca está na tentativa de encontrar a mulher amada, na viagem ao Eldorado e no próprio sentido que a existência passa a ter com a arte de contar histórias.
O Eldorado, como o próprio nome anuncia, sempre foi sinônimo de riqueza, razão de vida de muitos aventureiros, de pessoas vindas de todas as partes do mundo; para Arminto, no entanto, tem outro significado. Ao se deparar com ele, em meio à extrema beleza do local e junto ao seu único habitante, uma menina, faz a pergunta decisiva: “Onde estão os outros?”, Ela não titubeia, responde: “morreram e foram embora.” Ele parece não acreditar e repete em forma de pergunta o que ela acabou de falar: “morreram e foram embora? Ela confirma.”
Talvez o Eldorado, como o leitor poderá descobrir em sua própria leitura, além de estar presente nas lendas do Amazonas, de ser o nome de um navio – cujo proprietário fora o pai desse personagem – e ainda existir na geografia explorada por Arminto, seja esse pequeno achado: a arte de saber contar uma boa história, com personagens, lendas e lugares perdidos; todos capazes de nos comover, de nos mostrar que viver é saber conviver com os danos, como diz Arminto a seu interlocutor – possivelmente nós mesmos: “aí tu entraste para descansar na sombra do jatobá, pediste água e tiveste paciência para ouvir um velho. Foi um alívio expulsar esse fogo da alma”.

Órfãos do Eldorado
Milton Hatoum
Companhia das Letras, 107 páginas


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