O autor quando diz, através de seu personagem, que dos dois
lugares possíveis para a manifestação da natureza um deles é a lírica, ou seja,
a própria literatura, ele quer dizer que essa literatura passa a ter enorme
responsabilidade. Então, é necessário aprofundar a questão.
A natureza, como algo absoluto, apresenta-se como total
impossibilidade. No filme “Matrix”, dos irmãos Wachowski, no momento em que toda
a parafernália tecnológica para de funcionar, alguém diz: “Bem vindo ao deserto
do real”. Logo, retirada toda a ilusão criada pelo homem, mesmo as ilusões mais
concretas, a natureza seria o deserto, o mar revolto, a densa floresta onde
nenhum humano penetrou, ou algum tipo de desastre natural impossível de ser
contido pelos seres humanos e por seus artifícios. Partindo-se do princípio de
que nos dias de hoje tudo pode ser previsto e medido, estão aí os instrumentos
cada vez mais precisos oriundos da avançada tecnologia, pelo menos se tornou
possível orientar as pessoas a dirigirem-se a abrigos, ou mesmo aconselhá-las a
abandonarem os locais de risco na iminência de catástrofes. Diminuída a surpresa
de a natureza manifestar-se, resta a ela a literatura. Como isso, no entanto, poderia
acontecer?
A meu ver, de dois modos distintos. O primeiro através da
poesia, do teatro e da narrativa, mesmo representando toda a violência que a
natureza humana é capaz de comportar; o segundo por meio da idealização daquilo
que costumamos nomear de catástrofe, ou seja, do sublime kantiano.
A natureza habita com pleno direito de posse, desde a mais
longínqua antiguidade, o espaço literário. Por outro lado, é certo que essa
mesma natureza, quando crua, é devoradora. Basta dizer que morreríamos caso fôssemos
abandonados a seus cuidados. Em um mundo onde tudo funciona a partir de um
clique, obter fogo com dois pedaços de madeira ou mesmo nos defender de animais
ferozes não seriam nossas especialidades.
Isso, no entanto, é uma questão apenas adjacente no livro de
Piglia. O que a narrativa aborda e discute é a natureza da literatura.
Um jovem escritor extremamente culto, que acaba de publicar
o seu primeiro livro, recebe carta de um tio que mal conheceu e que se encontra
desterrado. Ele deseja contar-lhe novos fatos, já que o livro do sobrinho tem
como tema a própria família. “Ninguém jamais fez boa literatura com histórias
de família”, afirma. A partir deste fragmento, vamos descobrindo como se deve
fazer literatura. Não apenas por causa do conselho desse tio chamado Marcelo
Maggi, mas através das situações que Piglia nos apresenta.
Cartas vão sendo trocadas até que o personagem-escritor
Emilio Renzi resolve viajar a Concordia, cidade da Argentina na Província de
Entre Rios. Sua intenção é encontrar o tio. Mas quem vai recebê-lo na estação
ferroviária é Tardewsky, um imigrante polonês que fugiu do nazismo e vive
exilado no país desde o começo da Segunda Guerra Mundial. Alguém que joga bem o
xadrez e que conheceu James Joyce. Ele, porém, é um homem deslocado, definitivamente
fora de sua terra, despossuído de sua língua materna. Tardewsky ocupa o lugar sempre
movediço e transitório do imigrante, espaço visceral de estranhamento, isto é,
ocupa na verdade o não lugar, o mesmo lugar itinerante da própria literatura.
O eixo narrativo do romance situa-se na década de 1970,
período em que vigorou uma ditadura militar das mais sanguinárias que chegaram
ao poder na Argentina. Renzi, além de receber uma caixa com escritos de Enrique
Ossorio, papéis que possibilitariam recuperar parte da história do país, discute
não apenas política, mas, sobretudo, literatura nacional contemporânea e
mundial.
Num trecho, somos surpreendidos pela seguinte afirmação: “a
literatura argentina não existe mais”. “E Borges?”, retruca o interlocutor. “Borges,
disse Renzi, é um escritor do século 19.” Aqui é introduzido Roberto Arlt
(1900-1942), escritor argentino descendentes de imigrantes europeus pobres a
quem se atribui o título de introdutor do Modernismo no país e que promoveu a
renovação nas letras portenhas. Arlt abandona o beletrismo reinante até então,
quando se cultivava uma espécie de purismo parnasiano, tentativa de manter a
identidade da literatura nacional. Seus textos abordam a sordidez do homem
comum, que vive em meio a dificuldades e num constante flerte com a vida fora
da lei. Seu estilo narra as vilezas e as grandezas de personagens que poderiam
ser chamados de indolentes. Hoje, ele é considerado o mentor de grandes autores
latino-americanos, como Bolaño e o próprio Piglia.
Nas discussões sobre literatura, entre os personagens e nas
próprias cartas trocadas entre Marcelo e o sobrinho, desfilam também Proust,
Joyce, o filósofo Wittgenstein e principalmente Kafka, a quem é atribuído um
diálogo com Hitler, no Café Arcos em Praga entre 1909 e 1910, quando o
precursor do nazismo era um obscuro pintor e desertor do serviço militar.
“Kafka faz em sua ficção, antes de Hitler, o que Hitler lhe disse que ia
fazer”.
Assim como o xadrez de Tardewsky, jogo passível de inúmeras
variações, onde as peças só estão em local fixo no início da partida, a
literatura permite infinitas combinações, e aquelas que revolvem os sedimentos
da nacionalidade acabam por potencializá-la.
Respiração artificial
Ricardo Piglia, tradução de Heloisa Jahn
Companhia das Letras, 197 páginas
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