Faço essas conjecturas no momento em que pretendo alinhavar um artigo sobre Raduan Nassar, autor brasileiro que se consagrou com a novela Um copo de cólera
e, sobretudo, com o romance Lavoura Arcaica.
Raduan nasceu em 1935, em Pindorama, São Paulo, publicou seus dois principais
livros em meados da década de 1970 e, em 1984, abandonou a literatura para
viver recluso num sítio, no interior do mesmo estado.
É consenso entre a crítica afirmar que o autor de origem libanesa,
apesar de vivo e de obra pequena e recente, já se tornou clássico.
Seus livros estão traduzidos em muitos idiomas. Nas faculdades de letras do
Brasil e mesmo em muitas do exterior, já se tornou obrigatório estudá-los.
Não precisamos, portanto, ter a mesma precaução dos circunspectos
professores de Oxford, que achavam suspeita a literatura recente. Sobre a obra
de Nassar, esse argumento é frágil e fácil de ser refutado.
Mas, para isso, perguntamos: o que torna clássico um autor?
Mais precisamente: o que tornou Raduan Nassar um clássico da literatura
brasileira?
Em primeiro lugar, um clássico é avaliado como tal pela profundidade
que sua obra alcança ao abordar temas que se relacionam com a vida, isto é,
com o âmago do humano. Uma obra também torna-se clássica quando o autor consegue
trabalhar a linguagem e elevá-la ao nível do “sublime”. Nesses dois pontos, o
autor de Lavoura arcaica é mestre.
Na abordagem da família de características patriarcais,
Raduan consegue dissecar o sistema nervoso de um grupo de imigrantes que procura sobreviver através do próprio ethos. Um pai tenta impor sua moral, sua fé, enfim, sua lei, à mulher, aos filhos e a
todos que o cercam. Mas ele tem a visão turva, não conta com o dissenso. Talvez
aqui se apresente uma das principais características do ser humano: o direito à
liberdade. Quando ela não é respeitada, surge o conflito. Portanto, a
princípio, teríamos um clássico porque o autor expõe com maestria a
questão da liberdade. Isso, no entanto, não seria suficiente para elevá-lo ao
panteão dos melhores escritores. Ainda faltariam o trabalho com a linguagem e a
elaboração da estrutura narrativa. Mas Nassar sabe trabalhá-las com perfeição,
conduzindo a língua portuguesa a meandros onde predomina o mais absoluto
requinte. Poderíamos dizer que o seu poder narrativo invade a seara da poesia, e a sua prosa convive de modo harmonioso com o gênero lírico.
Há ainda um elemento a mais, e talvez fundamental em sua
obra. Raduan Nassar explora o mito e o trabalha de modo bastante eficaz ao tocar em
concepções conceituais formadoras da civilização.
Um parêntese. Todo autor que se tornou
clássico navegou nessas águas, sobreviveu a tempestades e muitas vezes a
naufrágios. Foi assim com Homero, Eurípedes, Dante, Shakespeare, Dostoievsky, Joyce
e, para citar mais um brasileiro, com Nelson Rodrigues. Claro que há muitos outros, a
nível nacional e universal, mas interrompo a lista nesse último para não me
tornar enfadonho.
O autor de Um copo de
cólera mergulha em alguns dos principais mitos de formação e manutenção da
sociedade civilizada. Um deles é o da negação ao incesto. Numa sociedade que
precisa voltar-se para fora, que necessita de relações extrafamiliares, o
incesto isolaria os indivíduos não permitindo o intercâmbio, a negação e/ou a
aceitação das diferenças. Outro ponto que os seus livros mostram é o predomínio
da pulsão, melhor dizendo, da pulsação dos desejos, enfim, da violenta
manifestação da emoção sobre a razão.
Um assunto que pode ser bastante explorado na obra de Raduan Nassar é o da tentativa de formação da razão e
de sua superação através do transbordamento dos desejos, até mesmo dos mais recônditos.
Na história da humanidade a razão sempre se mostrou frágil, sempre se apresentou
como uma construção. Na verdade, a razão realiza-se para poucos, e acaba
por sobreviver apenas como teoria. Talvez o racionalismo nunca tenha existido,
e isso serviria de munição suficiente para dinamitar as teorias ditas
pós-humanas, que pretendem atestar a morte do "Racionalismo Clássico".
Na Oréstia, de
Ésquilo, em determinando momento, um dos personagens grita: “queira a ira de
todos os homens contra si, mas não a ira de um dos deuses”. Se até mesmo os
deuses gregos se mostraram irados, desequilibrados e tomados pela emoção, como
poderia o humano viver a razão pacificamente?
Logo, quando desejamos verificar se um autor tem a dignidade
de um clássico, precisamos observar se suas obras trabalham o fracasso da
razão; se soube mostrar que a razão é apenas uma construção sustentada por
alicerces extremamente frágeis. Assim é a vida humana, assim é a humanidade. E
Raduan Nassar, através da ira do patriarca, mostra que o ser humano sempre
esteve mais próximo de colocar tudo a perder do que de erigir um mundo sólido. Ou
melhor, nos dias conturbados de hoje, é lícito afirmar que a solidez do mundo,
ou seja, o predomínio da razão, é apenas uma questão de crença. Isso não quer
dizer que devemos abandoná-la (a razão). Essa é a tensão que sustenta o humano, a mesma
tensão que mostra a necessidade de cada obra de arte.
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