Livro lançado pela primeira vez em 1962 mantém força visceral
Às vezes, no
afã de procurar novidades em matéria de literatura, perdemos a oportunidade de
ler o que se convencionou chamar de clássico. É o que pode acontecer caso
deixemos de lado o romance de um ótimo autor que, apesar da idade avançada (86
anos), ainda se mantém ativo tanto escrevendo crônicas para a Folha de São
Paulo, como fazendo comentários para a rádio CBN. Falo de Carlos Heitor Cony. Trato
aqui de Matéria de Memória, sucesso
editorial desde os anos 1960, que hoje se encontra na sexta edição.
Podemos
perguntar: por que um livro torna-se clássico? Talvez a resposta não seja
apenas porque conta uma boa história, mas por estabelecer e tentar responder
questões que muitos outros não conseguiram.
Lançado pela
primeira vez em 1962, a obra imediatamente alcançou sucesso de público e de
crítica, fazendo Gilberto Amado comentar: “trata-se de um momento especial na
nossa literatura”, levando-o a comparar o romance com A náusea, de Sartre. Só que com vantagem para o livro de Cony.
O enredo em
especial resume-se à vida de três personagens. O pintor de quadros Tino, alcoólico inveterado; Selma, mulher independente que, durante o voo de volta da Europa
para o Brasil, faz o balanço de sua vida; e João, membro disciplinado do
Partido Comunista, a quem a esposa desprezou por considerá-lo homossexual.
Os três
mantêm laços entre si, mas é bom que o próprio leitor descubra que ligações são
essas. Apesar de o romance ser ambientado no Rio de Janeiro, durante a maior
parte do tempo na zona sul carioca, a história poderia ter acontecido em
qualquer grande cidade do Ocidente.
Num momento
em que a literatura acomodou-se à forma consagrada do best-seller e que muitos
autores já não tentam inovação alguma, Cony estabelece uma narrativa dividida
em três partes, onde cada um dos personagens assume a narração fazendo
transparecer seus desejos, suas frustrações e também suas idiossincrasias.
Começando
por Tino, passando à Selma, a João, e por fim voltando ao primeiro personagem,
a narração desenvolve-se com os personagens falando, sobretudo, da solidão e do
abandono em que vivem. Apesar dos subterfúgios que a sociedade sempre pôde
oferecer para que os problemas sejam esquecidos, os personagens, mesmo quando
abastados, batem-se contra certa náusea de viver. Podemos aproveitar o famoso axioma
do psicanalista Jaques Lacan: “a relação sexual não existe”. Isto é, as pessoas
são incomunicáveis, não sendo possível nenhum tipo de relação.
Tino é considerado
pela crítica especializada um pintor em decadência. Sheila foge de seus
fantasmas viajando para o exterior, permanecendo três anos longe de todos. João
esconde-se, de modo medíocre, em meio às fileiras de um partido político que,
na verdade, já não apresenta nada de novo, pois ambos, o partido e ele, tornaram-se
verdadeiros burocratas.
Quem se
salva, talvez, conseguindo uma ponta de felicidade, é a empregada doméstica
Enedina. Contratada por Tino para trabalhar apenas no período da manhã, acaba
aceitando, a princípio em troca de dinheiro e depois por afeto, tornar-se sua
amante.
Apesar de o
romance dissecar o lado psicológico de cada personagem, eles transitam pelas
ruas de um Rio de Janeiro de meados do século 20. Paira no ar certa expectativa
do que a vida na cidade é capaz de oferecer como solução existencial e material
para cada um. No fundo, o que sobressai, no entanto, é um profundo mal-estar. Nem
mesmo dinheiro, bebidas, automóveis, sexo, viagens – ou qualquer outro artefato
que a sociedade dos bem sucedidos oferece – podem lhes tirar o travo amargo da
existência e do abandono.
É
interessante ler esse romance no atual momento em que a intensa tecnologia se
propõe como solução para muitos dos problemas dos seres humanos, mas esbarra na
mesma náusea em que os personagens de Cony vivem submersos.
Deve-se
prestar muita atenção às primeiras frases do livro, principalmente quando Tino
afirma: “Não tenho mais nada. A rigor, talvez nunca tenha tido realmente coisa
alguma”. Frases emblemáticas que apontam a trajetória fugaz não só do pintor,
mas de cada um dos personagens retratados no romance. Por mais que se pense nos
bens materiais, ou mesmo na possibilidade de alguém ser suprido pelo afeto, a
narrativa de Cony desmente.
Para essa
trajetória travada, há a ligeira insinuação de que pode haver uma saída. Ela
estaria entre os humildes empregados e empregadas, que ainda acreditam na
amizade, no afeto, enfim, no amor. A matéria de memória estaria, assim, não
apenas na lembrança do que se poderia ter vivido, mas também nesse sentimento
sutil e ao mesmo tempo visceral, que é capaz de manter no ser humano o gosto
pela vida.
Matéria de Memória
Carlos
Heitor Cony
Ed.
Alfaguara, 195 páginas
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