No universo das palavras, nada acontece de muito diferente. Elas se vão multiplicando como não houvessem os fatos, como se o que
expressam não pesasse na sentença que proferem.
Alguém escreve um conto, um ensaio, um poema, ou mesmo um
romance. No momento em que se dá o toque suave da ponta dos dedos sobre o teclado,
não lhe vem à mente que suas ideias e palavras já foram por demais utilizadas,
algumas vão até desbotadas, precisando de nova cor. Todos os
textos que o pretenso escritor leu durante a vida, que ouviu, e mesmo os pedaços
de frases que lhe passaram pelos olhos aqui e ali acabam de certa forma
metabolizados naquilo que ele chama de sua obra original. Portanto, lutar com palavras é a luta mais vã. O que
há de novidade? O quê, de repetição?
Para destronar a ideologia, somente
a poesia, se mal que me exceda a rima. E veio um cineasta nos alertar sobre
isso, sobre a ideologia. Logo alguém que lida com imagens. Já pensaram na primeira aula do curso
de cinema? Cinema é feito de imagens. Truísmo? Mas é necessário dizer. Caso
contrário, alguém filma um romance stricto
sensu, inclusive mostrando as páginas do livro, e há de pensar que fez um
filme. Mas, voltando ao cineasta. Veio ele para mostrar o que só cabe à poesia
dizer. E as imagens? Não importam, o que vale é a poesia.
Assim me pareceu A febre
do rato, de Cláudio Assis. Fui ao cinema meio temeroso. Qualquer tentativa
de mexer em time que está ganhando, trata-se de pura loucura (exemplo da ideologia!). O mundo dos negócios, esse nosso. No
entanto, a poesia surge na voz de um deserdado que desfila ora pelas ruas do Recife, num automóvel velho com alto-falante na capota; ora num barco rústico
pelo rio, pelos canais, pelo Capibaribe. E a poesia é forte, ela tem a febre do
rato.
O que seria essa febre, afinal? Vendo o filme, concluímos que é a potência
das palavras, a celebração do não celebrável, o encontro com a alegria. Esta, como a poesia, só
existe se fora do lugar.
Haverá quem diga que o filme privilegia cenas chulas, que banaliza o sexo, a figura da mulher e, sobretudo, que há uma escarrada de maconha e de cachaça. Portanto, como pode haver poesia nisso? Eu responderia: perguntem a Baudelaire.
Mas as cenas do longa de Assis, são apenas suportes para a
poesia, assim como o corpo é suporte para o prazer e para a alegria. As cenas, na verdade, mostram a insignificância do cinema ante a poesia. E a voz do poeta, em constante vibração, quando soa social
lembra João Cabral; quando musical, o santo Chico que está no céu. Não o de
Assis, mas o Science.
E a ideologia? Está no subtexto, nas interseções de vários
textos. Não sou partidário da semiologia, de releituras nem de transdisciplinaridades. Nomes tão em moda, porém mais velhos que Homero. Homero, o homem; não Homero, a obra. O único modo de denunciar a ideologia é mostrar a sua
contraparte, a poesia. Mas não existe poesia ideológica? Respondamos não.
Poesia ideológica, por mais escolhidas as palavras, por mais sonoras,
não é poesia, ainda que a avalize alguma academia.
Daí, o que poderia ser mais contra-ideológico do que o corpo, utilizado para uma espécie de prazer total, o prazer não convencional? Alguns chegam a nomear as cenas do filme de orgiásticas. O prazer não é apenas a dois, mas a três, a quatro, a cinco. Entre jovens e velhos (ou velhas). Quando entra na história o amor monogâmico, entra Eneida, uma mulher, mas também uma obra. É a tragédia que se avizinha. Eneida, de Virgílio, tem uma viagem e uma guerra, a destruição de Troia e a fundação de Roma. Seriam lendas? Mas é do mito, da lenda, enfim, da narrativa, que se funda a ideologia. Mas quem virá a público denunciar suas pernas de barro?
Daí, o que poderia ser mais contra-ideológico do que o corpo, utilizado para uma espécie de prazer total, o prazer não convencional? Alguns chegam a nomear as cenas do filme de orgiásticas. O prazer não é apenas a dois, mas a três, a quatro, a cinco. Entre jovens e velhos (ou velhas). Quando entra na história o amor monogâmico, entra Eneida, uma mulher, mas também uma obra. É a tragédia que se avizinha. Eneida, de Virgílio, tem uma viagem e uma guerra, a destruição de Troia e a fundação de Roma. Seriam lendas? Mas é do mito, da lenda, enfim, da narrativa, que se funda a ideologia. Mas quem virá a público denunciar suas pernas de barro?
Então, em cena o poeta de Claudio Assis. O cineasta
conta que o descobriu nas ruas do mesmo Recife. Um poeta que canta sua poesia à
viva voz na urbe, que a distribui num jornaleco montado a mão e copiado, um
poeta que comemora a poesia no abraço entre amigos, em meio a copos de cerveja
e copitos de cachaça. Tudo tão destrutivo... Que exemplo nefasto para a
juventude! Frases de uma senhora que saía do cinema.
O que faz a ideologia? Perpetua a especulação na bolsa
de valores? Perpetua a especulação imobiliária observável ao fundo,
enquanto homens caranguejos explicam numa das margens do Capibaribe como fazem
para tirar seu sustento da lama ribeirinha?
A febre do rato,
de Claudio Assis, aponta o poder dionisíaco das palavras. A febre do rato não é cinema.
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